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N.º 3

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1967 

 

Antologia Aveirense

ALBERTO SOUTO

NOTAS

BIOGRÁFICAS

 

Nasceu a 23 de Julho de 1888, no lugar do Bonsucesso, a quatro quilómetros de Aveiro.

Filho de Manuel Germano Simões Ratola e de D. Rufina Amália da Gama Souto, era neto pelo lado paterno do professor Francisco Simões Ratola, figura que marcou na sua época por uma arejada actividade pedagógica; e pelo lado materno, era neto do Dr. António Ferreira Souto, de Angeja, formado em Direito e condecorado com a cruz de Cristo.

Por morte da mãe, transitou com 3 anos para a casa de sua madrinha, viúva do jurisconsulto Dr. Agostinho Fernandes Melício, que residia na quinta da Boa-Vista, nas ladeiras de Verdemilho. A essa senhora, que muito admirava, ficou a dever o precoce contacto com os bons livros da sua biblioteca e a educação inicial da sua sensibilidade tão rica.

Foi da janela do seu quarto, na Boa-Vista, que começou a olhar as serras altaneiras Arestal, Talhadas, Estrela, – e a querer percorrê-las, numa curiosidade permanente, que o havia de levar mais tarde a escrever sobre elas algumas das suas mais belas páginas.

Entretanto, entrou para o Seminário onde fez os preparatórios de 1899 a 1904, com distinções em Geografia e Filosofia.

Em 1904 frequentou o 1.º ano do Curso Teológico, onde foi aluno de D. João de Lima Vidal, de Eugénio de Castro, etc.

Abandonou então a carreira eclesiástica e passou a cursar o liceu de Aveiro, em 1906, onde evidenciou a sua propensão para a oratória. Em 1909 matriculou-se na faculdade de Direito, em Coimbra.

Eleito às Constituintes de 1911, foi deputado pelo círculo de Aveiro de 1911-15, interrompendo por isso os seus estudos em Coimbra.

Como deputado, tratou da elevação do liceu de Aveiro a central; do pedido, que obteve, duma 2.ª época de exames para os pilotos; fez reclamações intensas sobre algumas das estradas do distrito, que percorrera e achara intransitáveis; combateu a extinção das escolas normais; trabalhou pela dotação de uma verba ao Museu de Aveiro, o que conseguiu; interessou-se pela criação duma estação piscícola; pediu a rede telefónica; tratou o problema da Biblioteca Pública e apresentou o plano da reforma da Escola Fernando Caldeira, de que foi também professor; apresentou o projecto de lei para a aquisição dum rebocador para a barra, e viveu apaixonadamente em intensa campanha jornalística o problema das suas obras, entre outros de interesse económico e de fomento.

Volta depois à Universidade de Coimbra. Cursa em Direito o chamado período transitório, com algumas distinções e frequenta também cadeiras da Faculdade de Letras.

Começa a advogar em 4 de Fevereiro de 1919. Interrompe daí a tempo por motivos de saúde, e vive em Davos-Platz na Suíça, horas de saudoso apego aos seus e à sua Aveiro, que exprime nas «Cartas dum Peregrino», em páginas de requintada beleza.

Em Janeiro de 1927 volta a advogar. Da sua passagem pelos tribunais ficou conhecido de todos a correcção de trato, que foi seu apanágio, a honestidade dos seus processos e o nome que deixou ligado a causas defendidas em Setúbal e Aveiro, sendo particularmente falado o seu triunfo em 1958 na defesa dum inocente condenado em 1939 por crime grave, conseguindo que se obtivesse a confissão do verdadeiro culpado, que com o primeiro mantinha impressionante semelhança. / 74 /

Muitos mais processos o notabilizaram, se bem que não fosse um apaixonado pelo Direito. Apaixonado foi-o pela sua terra, pelo seu distrito, traçando-lhe o perfil, quando mostrava aos outros o seu folclore Viana do Castelo lembra certamente Aveiro dessa época, – desenvolvia os seus aspectos etnográficos, – organizou na cidade e dirigiu dois cortejos, – (famoso o de 1949) – que muito disseram das actividades e costumes da região –, ou ainda quando o percorria em investigações sistemáticas de arqueólogo e de geólogo, publicando os seus estudos sobre o espólio encontrado, em infatigável pesquisa. Conhecedor profundo da História Universal, apaixonaram-no as campanhas napoleónicas e sobre elas publicou o seu «Waterloo», depois de uma visita feita ao próprio local das operações, fazendo também da História local e regional desenvolvido e profundo relato.

Aveiro e a sua ria foram contudo o seu maior amor.

Da ria, disse ele algures: «...é um delírio de velas, de luz, de água, de vida!» De Aveiro, propriamente, sentiu-lhe o pulsar, quando contactava de perto com a sua gente, numa popularidade irradiante, que o tornou Presidente da Associação Humanitária dos Bombeiros, presidente honorário do Clube dos Galitos, etc.

Tornou conhecida a sua terra, sempre que pôs em evidência a sua arte e a sua paisagem, ou mostrando sempre e em toda a parte, pela pena jornalística ou pela palavra fluente, quanto a achava bela e como deviam descobri-la.

Foi o fundador do Banco Regional de Aveiro, com António Máximo, em 1920, e dirigiu-o até 1928; presidiu à Associação Comercial e Industrial de Aveiro e ao Senado Municipal; foi o primeiro presidente da Junta Autónoma da Ria e Barra de Aveiro, (em 1921), e promoveu com o engº Sá Melo, a criação da Comissão de Turismo da cidade. Sobretudo a partir de 1930, dedicou-se a estudos geográficos e arqueológicos, explorando castros como os de Cacia, Cristelo da Branca, Arões, Cambra, etc., estudando várias estações de arte rupestre da serra do Arestal, com trabalhos que mereceram citações, entre outros, aos Drs. José Leite de Vasconcelos, Mendes Correia, Amorim Girão, P.e Eugénio Jaillaye, Dr. João Corrington da Costa, que em honrosa homenagem deu o seu nome a uma tartaruga fóssil do cretácico de Aveiro, Rosacia Soutoi, que se encontra no Museu de Geologia da Universidade do Porto.

Em 1925, nomeado Director do Museu Regional, por Augusto Gil, então Director-Geral do Ensino, após a ocupação do cargo por Marques Gomes e Dr. José Pereira Tavares, ocupou o lugar durante 23 anos, atingindo o limite da idade em 27-7-1958, depois de o ter ocupado com o maior esforço de valorização e pugnado pelas obras da sua condigna instalação, o que lhe mereceu louvores expressos em carta do Eng. Henrique Gomes da Silva, quando Director-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Ali foi condecorado em 1932, com a Ordem de S. Tiago da Espada, grau de Comendador, pelo Presidente da República General Carmona que veio a Aveiro inaugurar algumas salas do Museu e por proposta do Ministro das Obras Públicas, engenheiro Duarte Pacheco, sendo-lhe depois oferecidas pela cidade em sessão pública, no Teatro Aveirense, as respectivas insígnias, onde foi calorosamente aclamado e elogiado por Mendes Correia, Querubim Guimarães e Magalhães Lima, facto a que a imprensa diária da época deu grande relevo.

Foi ainda Alberto Souto nomeado, em 1927, Director da Biblioteca Pública, e nomeado para o primeiro Conselho Municipal de Aveiro. Mais tarde, Vogal correspondente do Conselho Superior de Belas-Artes, foi também delegado concelhio da Junta Nacional de Educação, sócio da Associação dos Arqueólogos Portugueses, da Sociedade Geológica de Portugal e da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia. Foi ainda Membro Correspondente da Universidade de Cultura Tradicionalista de S. Paulo, Brasil, e membro do Instituto Internacional de Antropologia.

Foi convidado pela Sociedade «Pro-Monte» de St.ª Tecla para ali proferir uma conferência sobre Neolítico, Chelense e Asturiense; tomou parte em vários congressos, e fez conferências que ficaram célebres, como a de Talábriga, na sociedade de Antropologia, no Porto, a da Festa das Beiras, em 1932 na Sociedade de Geografia, de Lisboa, a do Homem e o Barro, no cinquentenário das Fábricas Aleluia, etc.

Fundou e dirigiu o jornal «A Liberdade» e colaborou em várias revistas, como a Pátria, o Arquivo do Distrito de Aveiro, etc.

É vastíssima a sua colaboração nos jornais diários e nos periódicos locais, onde versou temas filosóficos, históricos, científicos, culturais e regionais. Em 1956 redigiu e apresentou à Câmara o parecer da Comissão de Arte e Arqueologia sobre a razão do Monumento a João Afonso de Aveiro, que lhe mereceu do então Presidente da Câmara, Dr. Álvaro Sampaio, a classificação de Aveirense número um. Veio a ser também presidente da edilidade aveirense, – última das suas actividades públicas , de 1957 a 1961.

Publicou, entre outras, as seguintes obras:

As Pescarias da Terra Nova na Economia Portuguesa 1913;

A Educação de Sparta 1921;

Marmitas Eolianas na Serra da Estrela 1922;

Origens da Ria de Aveiro 1923;

O Museu de Aveiro - Notícia Sumaríssima 1926;

Joaquim de Melo Freitas - Despedida Fúnebre 1924; / 75 /

Etnografia da Região do Vouga; Sobre a criação de um Instituto de Estudos e de Museu Etnográfico com sede em Aveiro 1929;

A História, o Drama e Graça da Água 1929;

A Estação Arqueológica de Cacia 1930;

A Pelagia Insula de Festus Avienus 1933;

Waterloo!... O epílogo da epopeia napoleónica 1935;

Arqueologia Pré-histórica do Distrito de Aveiro 1938;

Aveiro na obra de Camilo 1943;

Geologia e Geografia do Distrito de Aveiro Blocos erráticos na mesopotâmia da Beira-Mar ao Norte de Aveiro e Sul de Cantanhede 1949;

Aveiro (vol. 16 da Colecção A Arte em Portugal) 1952.

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INÉDITO

A PLÁSTICA DAS SENSAÇÕES

            De «Notas íntimas», a publicar

O espírito e o corpo humanos são como uma argila maravilhosa, rica e variada de tons, que se pode moldar ao sabor do génio e da arte de quem como eles lida. São filões complicados que é preciso procurar, seguir, desvendar, no segredo e no mistério que os envolve. mas onde se descobrem, procurando, veios dos mais preciosos metais, nódulos radicativos brilhando como estrelas, nos recônditos da terra, pepitas de oiro resplendente, gemas magníficas, diamantes excelsos, maravilhas desconhecidas cheias de magia.

Modelar o barro dum corpo ou dum espírito, que belo!

Pôr, sobre a roda do oleiro, a argila divina, a começo informe, hostil, grosseira e depois fazê-la crescer, tocá-la com os dedos, apertá-la com as mãos, engrandecê-la, diminuí-la, dar-lhe forma, arrancar-lhe beleza, apropriá-la, aos nossos desejos, torná-la escrava da nossa fantasia, torná-la útil, dar-lhe alma e mudar-lhe o corpo, conservando a mesma matéria, que belo!

Ir acordar sensações desconhecidas, tocar toda a gama das impressões, dos gostos, dos prazeres, das sensações agradáveis que existem num corpo ou numa alma, que belo!

Mãos grosseiras, almas inferiores ou fúteis não podem descobrir, nem acordar essas sensações e essas maravilhas! Só o génio que por vezes incarna em nós, inspirado pelas paixões, o pode fazer. Como um artista contemplando a sua obra, o homem sente-se envaidecido quando vê que, sob as suas mãos, ou ao contacto da sua carne, ou sob o eflúvio da sua palavra, do seu olhar, do seu amor, o barro esplendoroso do corpo duma mulher, da alma duma multidão ou do espírito dum público que o escuta, o lê, o atende, ou o segue, se alegra e anima, sentindo um prazer novo ou uma emoção desconhecida.

É o prazer de Deus criando, vendo a luz surgir das trevas à sua voz e vendo dos abismos surgir, movendo-se, palpitando e cantando, a vida gloriosa.

Criar é a paixão indomável que Deus pôs dentro de nós!

O homem é um oleiro modelando o barro das sensações!

Alberto Souto

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INÉDITO

NA PRAIA

Estive examinando com uma lupa a areia da praia. Que coisa bela! As grutas, as cavernas maravilhosas que ela forma!

Pedras preciosas - cristais lapidados, foscos, quebrados, brilhantes; lâminas de espelho, basaltos, rubis, esmeraldas, ametistas, topázios, cristais de rocha, toda a gama das cores, dos reflexos, aqui se encontra!

Depois... os cataclismos! Num momento as montanhas desfazem-se. As rochas desprendem-se. rolam, tombam. As grutas obstruem-se, desaparecem. Os Alpes tornam-se Sahará. A aragem ergue e volteia estes colossozinhos tão belos de forma e de cor. O Sol fá-los cintilar. No seu meio há uma dança estupenda de luz e de cores.

*

*   *

Donde veio isto? Que serranias se esboroaram para que esta areia aqui seja hoje assim? Que tragédias e que epopeias se têm passado no decurso dos séculos, para que o mar aqui hoje se debata neste leito de destroços e de fragmentos de velhas penedias?

*

*   *

O livro único que comigo trouxe, foram Os Lusíadas. Uma pequenina edição de luxo, de algibeira, como um livro de orações, que comprei como o melhor livro / 76 / de orações que um português pode deixar à sua descendência.

À beira do mar, Os Lusíadas têm um sabor mais genuíno e mais português.

Só o mar serve bem de acompanhamento para a sua divina toada.

Junto ao mar, a alma ajoelha e reza; ergue-se e voa e canta!

Pequenina como um grão de areia nesta vastidão, um nada junto do oceano imenso e do Céu infinito, a alma portuguesa – a minha alma! – desprende um voo, meditando na nossa epopeia sublime e ergue-se ao alto, mais alto que as nuvens, tão alto como o sol e abraça o mundo, por onde o sangue português escreveu fúlgidas e imorredoiras páginas de História.

Os Lusíadas – canto eterno que eternamente se há-de erguer das nossas praias são o hino da raça e estas ondas ainda hoje nos embalam com o mesmo sonho e com as mesmas aventuras!

Julho de 1918

Alberto Souto

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A HISTÓRIA, O DRAMA E A GRAÇA DA ÁGUA

Excertos da Conferência proferida em 1930

A Água...

Mas a água terá efectivamente história, drama, graça?

Direi eu, apenas, o pouco que dela sei, como a olho e a tenho visto, o que dela me rezam as pedras, as terras, as praias, as veigas; um pouco do que dela a ciência nos assegura, um exemplo do que a literatura dela nos narra e do que a poesia a seu respeito nos conta.

E o que é a Água?

Um agregado, um somatório de moléculas formadas da combinação de dois gases na proporção de O1 e H2 com gases e sais em dissolução e normalmente no estado líquido, meramente relativo, todos o sabem e particularmente os nossos pequenos escolares.

– Então é possível extrair-se dela um drama?

– Sim, é!

Há coisas tão comuns que, em verdade, largo tempo nos passam despercebidas e que pela sua vulgaridade nem nelas demoramos, por um instante a nossa atenção.

Ao contrário do que fazemos com Santa Bárbara quando dão trovões, só a Água, em regra, nos lembramos quando ela nos falta e quando, então, o interesse vil e vil egoísmo nos levam a procurá-la nas profundezas, a amealhá-la nas cisternas, a canalizá-la das goteiras, dos córregos, das levadas, dos caudais; aproveitá-la nas fontes, dividi-la nas leiras e nas courelas como herança apetecido e alimento precioso; e implorá-la à divindade, a invejá-la ao vizinho que dela farta o seu agro, a disputá-la em pleitos, a comprá-la em almoedas, e conquistá-la em batalhas sangrentas e guerras demoradas.

Os super-homens perdem a grandeza diante do seu criado de quarto...

Se o Nilo decorresse em permanente regime de inundação, talvez o Egipto antigo não festejasse a sua cheia nem o adorasse como um Deus.

Ora entre nós que demoramos voltados ao oceano, a Água abunda de tal forma, de tal forma nos abraça, nos espelho, nos fala a toda a hora, nos aparece a todo o canto, nos corta o passo a cada Instante, tanto a vemos da meninice à decrepitude, do berço ao túmulo, que se nos afigura um elemento sem valor estético, sem história. sem drama, sem graça.

E em vez de a deificarmos, amando-a, votamos-lhe desprezo, olhamo-la com indiferença, passamos por ela sem a saudarmos e nem num segundo do relógio da vida lhe dedicamos uma oração ou um simples, profundo e recolhido pensamento!

Gabriel d'Annunzio disse da flor, citando um filósofo grego, que ela devia ser contemplada com os olhos bem abertos!

Pois eu ouso dizer o mesmo da Água!

A Água: eis aí uma maravilha que é preciso meditar e ver com os olhos bem abertos!

Mas aí começa a dificuldade: o mistério e o tormento!

O mistério que acompanha e nimba todas as divindades e o tormento que experimenta e sofre todo o que tenta desvendar os arcanos da divindade!

Se a quisermos ver bem, mal a descobrimos.

Ela é transparente, incolor, informe, inconstante.

O seu mistério vai mais longe: se a tomarmos na mão para bem a vermos, sentirmos, palparmos, e segurarmos, ela escorre, foge, cai, dispersa-se, evapora-se!

Toma a forma das fronteiras que a encerram, dos depósitos em que se armazena, dos receptáculos onde se recolhe, dos sacrários onde se guarda, dos fundos onde repousa, mas se lhe não roubarem o ar e o espaço ou não a guardarem vigilantes, ela daí se põe em fuga, trespassando as paredes, correndo tormentosa, evadindo-se por um interstício ou mudando-se... em hálito, fumo, vapor, neblino! / 77 /

Desce dos cimos, procurando sempre os fundos, o caminho que for mais baixo e mais humilde, mas formando os grandes caudais, chegando às grandes bacias, aos lagos ou aos mares, torna-se poderosa e dominadora e daí foge logo, como uma figura alada da mitologia, e voa para os céus, para cima de todos os montes para mais alto que toda a Terra, formando as nuvens em que sentam os Deuses!

Depois regressa. Uma paixão eterna feita de carícias e de brutalidades, de golpes e de beijos, de imprecações e de meiguices, de ralhos e de carinhos, de proveitos e de malefícios, de riquezas e de devastações, de noivados e de divórcios, de punhaladas e de abraços a prende... entre os abismos da crusta e o vácuo da atmosfera.

Uma lei do equilíbrio do mundo, a reconduz aos mares, às terras, às montanhas, amassando-a, misturando-a, casando-a com a Terra; e o seu ciclo volta, num drama eterno, numa eterna tragédia, numa rotação contínua, como parece ser, afinal, a rotação dos mundos na curva infinita dos Universos!

O vai-vem eterno da Água!...

Vai-vem eterno da matéria!..., a enormidade deste mistério absorve-nos e esmaga-nos tanto, como, por exemplo, quando ao contemplarmos o nosso Sol, nos lembramos que ele nada é no universo da Via Láctea e que essa espiral de poeira luminosa feita de milhões de estrelas, vagueia no turbílhão dos mundos que enchem uma pequena parcela do espaço etéreo onde apenas se aventura, em hipóteses ou digressões numéricas, o nosso mísero pensamento!...

A Água não tem cheiro, não tem fisionomia e não tem cor, mas toma a expressão dos corpos que a circundam e muda de parecer a toda a hora, quando rutila o sol, quando passa a nuvem, quando toca a brisa, quando surge a tormenta, quando a luz morre, quando a noite cai, quando o luar lhe bate, e toma a cor dos vasos e dos reflexos das terras, das rochas, das escarpas e das margens, dos animais e das plantas que nela se miram e nela se banham.

Verde ou azul nas grandes massas, é amarela num mar, vermelha noutro, glauca nas nuvens, branca na espuma e na neve, rubra no sangue, verde na clorofila!

Se o não verificássemos, poderíamos acreditá-lo? Revolta, turva, límpida, cristalina, gelada, tépida, vaporosa, fosforescente, orvalho ou choro, glaciar, iceberg ou oceano, hulha branca, hulha verde, hulha azul quando produz força e movimento, é a mesma numa molécula ou numa quantidade imensa, no sangue ou na seiva, na lágrima ou na onda... – sempre – a Água!

Que outro ser existe na Terra com tais qualidades? Nossa irmã Água, lhe chamou S. Francisco de Assis, o cantor admirável desse adorável poema dos Laudes.

Talvez seja mais que irmã, talvez seja mãe de toda a Vida, nossa Mãe portanto!

Tão boa, tão útil, tão precisa, tão desejada, tão prestimosa... e sem nunca pensarmos na sua origem, na sua história, no seu drama e na sua graça!

Fluida, é incomparável, mas é mais fofa que as penas e tão dura como a rocha; se a resfriamos, congela-se; se a aquecemos, vaporiza-se; e em ambas as crises experimenta mudanças de volume e adquire forças de expansão que a igualam aos mais poderosos explosivos.

Elemento do orbe em alguma filosofia antiga e na concepção dos alquimistas, a mitologia pagã só a divinizou na figura de Neptuno e nós modernamente fazemos dela força, movimento, calor, electricidade escravizando-a!

Deu ninfas às fontes e aos rios, fez o deus do mar, mas ninguém a adorou como alguns povos adoraram o sol e o fogo e no entanto bem merecia ela ser entronizada e adorada como uma grande deusa ao mesmo tempo prudente e louca, fecunda e terrível, mansa e implacável, mas de cujo ventre a Vida tivesse brotado e a cujo seio a Vida se alimentasse no decurso tormentoso e obscuro dos incontáveis tempos que vêm até nós desde a época azóica!

Não quer cárcere, ama a liberdade e a vida, suspira pela luz.

Se no âmago da terra se cavar um poço, ela resuma, borbulha e surge e vem respirar o ar e vem olhar o céu.

Desenvolveu-se a civilização à sua vista e os povos andaram à sua volta como, no dizer do velho escritor, as rãs à volta do charco...

Tanto lhe devemos!...

Pois esta palestra é uma oração à Água!

E em nome da Humanidade – mau sacerdote que eu sou! – venho hoje aqui pedir-lhe, simplesmente, o perdão do nosso esquecimento!

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Pode não ter existido a Atlântida, mas o que é facto, é que o Atlântico não foi sempre o grande oceano que hoje é.

Aí se travou tremenda batalha entre a Terra e a Água, em que a Água venceu, afundando-se terras de vastíssima extensão nos fins do Terciário.

Nem isto deve admirar. A fisionomia do globo, a distribuição das terras e das águas, a sua posição relativa, não foi sempre aquela que pelos mapas hoje se nos afigura.

Mas nos sítios dos continentes, continentes no lugar dos mares, lagos profundos onde hoje se erguem serras, montanhas onde hoje se vêem depressões, emersões e imersões, regressões e transgressões marinhas, / 78 / têm sido através da história da terra as cenas continuamente repetidas que hoje a geologia nos revela.

Construção da Água são todos os terrenos estratificados, todas essas assentadas de calcário, de argilas, de grés, que a vegetação recobre, que se levantam em colinas e cordilheiras, que o homem abre, rasga e explora.

Construção da Água essas vastidões de areias dos desertos, das dunas, do subsolo.

Construção da Água os amontoados incríveis de calhau rolado que a cada passo se topam.

Construção das Águas, o alto do Buçaco e os picos dos Alpes!

Que dramas tudo isso traduz e aos geólogos relembra e rememora!

Das encostas que bordam o parque da elegante Curia, é fácil arrancar conchas de ostras e de moluscos vários que noutros tempos antes de aparecer o homem sobre a terra, ali viveram no seio de águas marinhas em cujos fundos se formaram os seus calcários.

Mas por outro lado também a Água é implacável na sua fúria destruidora.

Para fazer as suas construções sedimentares ela precisa de destruir e então usa da erosão no relevo e do embate ciclópico nas penedias das costas, infiltra-se nas rochas mais duras da crusta e estala-as e corrói-as e pulveriza-as e decompõe-as.

Tenaz e persistente é a água mole que tanto dá na pedra dura até que a fura!

Parte os granitos, esfolia-os, desfá-los.

Desgasta as rochas mais resistentes, arredondando-as, brune-as, pule-as, redu-las a areia e a pó, a limo e a vasa.

Quando o não pode fazer apenas com a sua acção mecânica directa, ataca-os com o seu oxigénio e envenena-as, deixando-as.

Espera o momento da descida da temperatura e congelando-se nos seus interstícios, rompe-os e esmigalha-os.

O seu trabalho de erosão de que resulta o modelado do relevo, como o arranque das falésias e o desgaste das costas, é formidável.

Lá no alto dos montes é neve que cai leve e mansa ou chuva apenas, que inocentemente escorre em fio pelo declive.

E num instante já é avalanche que tumultua e ressoa no vale como um trovão e tudo subverte e tudo abismo; e é regueiro e torrente, cascata e catadupa, rio ou lago ou golfo ou mar!

Ser nuvem do céu ou vaga do oceano, dominar no firmamento roubando à Terra a primazia da luz do sol e olhando-a sobranceira, ou juntar-se numa massa infinda que a avassale e submeta, parece serem, entretanto, os seus desejos supremos, as suas supremas e insaciáveis ambições.

É no mar onde ela mais repousa e mais permanece, e aí, que correntes, que vagas, que marés, que grandezas e que tragédias!

A riqueza do seu seio, então, onde miríades de seres vivos, desde a minúscula alga ou microrganismo da fosforescência e do plâncton de que se alimentam os peixes, até ao enorme cetáceo que espadana nas ondas, desde a concha das pérolas aos recifes de madrepérolas e corais, desde o pequenino búzio das praias aos colossais e disformes peixes da fauna abissal, desde os limos das rochas aos mares dos sargaços, a sua riqueza é incalculável e imensa.

Faz rendas de espuma nas praias fulvas, douradas pela areia, e ondeia em cumeadas medonhas nos vagalhões do alto.

Estrada da civilização, o mar é hoje o laço que une os continentes e confraterniza os povos.

Factor essencial de progresso, aspiram por ele todas as nações, e assim Mahan e Bonamico construíram a teoria célebre do domínio do mar como condição essencial da vitória.

E no entanto, que tragédias se têm desenrolado, que lágrimas por causa do mar se têm chorado!

A história trágico-marítima está cheia de lutos, de angústias, de desesperos, de mortes, de horrores!

É um campo de epopeia e um cemitério de náufragos, o mar!

Salamina e Lepanto, o caminho das índias e a descoberta das Américas, Trafalgar nas lutas napoleónicas, as Falckland na última guerra, páginas de vitórias brilhantes e hecatombes terríveis, tendo por campo a água e por cenário o mar!

E então o poema de trabalho, de arrojo, de coragem e heroísmo e o drama intenso, a confrangente tragédia, que todos os dias se desenrolam nessas águas inquietas, onde os humildes, os anónimos, os ignorados – os marinheiros e os pescadores passam a vida, embalados pela onda, batidos pela tempestade, vencidos pela morte, tragados pelo mar?

O naufrágio do «Sepúlveda», a catástrofe do «Titanic», a tragédia misteriosa do lugre «Aveiro» , a angústia dos poveiros, a morte dolorosa dos pescadorzinhos do mexoalho, o luto constante das famílias dos marítimos de Ílhavo, o dantesco desastre do «Deister», os desgraçados do «Pensativo», para não mais relembrar, meu Deus! se não há palavras que descrevam tais lances, nem voz que as conte, para que hei-de eu pretender revivê-las?

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A graça da pérola gerada no fundo dos mares na valva das conchas, tem sido assunto muitas vezes tratado em literatura.

/ 79 / A graça das pérolas, tão finas, tão mimosas e tão cobiçadas pelo colo das mulheres, anda ligada à graça da água que as abriga e esconde.

Os poetas e o povo dizem que os aljôfares e as pérolas ou são feitos de lágrimas ou de orvalho, que tudo é – Água!

A água meteórica caindo em chuva, pode produzir alegria pela sua utilidade mas não tem beleza, nem nos causa a impressão delicada e a admiração do orvalho, da neblina, da neve, da água das fontes, dos rios e do mar.

Bastas vezes, pois, a chuva, aliás tão útil e solicitada até em preces à Divindade, nos aborrece e deprime. Mas já a névoa nos longes dá graciosidade e doçura à paisagem, como um véu ténue que tudo anima o escalvado dos montes, a aspereza dos cerros, a sensaboria dos plainos.

Erguendo-se e juntando-se nas regiões mais altas da atmosfera, o vapor de água forma as nuvens, de formas tão várias e tão bizarros aspectos. Tanta graça dão as nuvens ao horizonte que a arte da fotografia tem de recorrer ao artifício para compor com falsas nuvens a paisagem a que elas faltam.

Mais sugestiva, ainda, é a neve, água meteórica também, congelada e cristalizada em caprichosíssimas formas geométricas, depois reunidas e aglomeradas em pequenas folhas e farrapos que tombam do Céu, constituindo um espectáculo singular e verdadeiramente encantador.

Para nós, da beira-mar e da planície, a neve é uma coisa quase lendário e misteriosa e como tudo o que é lendário e misterioso, o espectáculo da neve torna-se apetecível como o de uma paisagem afamada, dum fenómeno raro, de um géiser ou de um vulcão, duma Gruta Azul ou do Sol da Meia Noite.

Em toda a minha vida, uma só vez em 1918, eu vi a neve cair sobre a terra da Beira Mar, em farrapinhos brancos que uma aragem desfez de pronto, deixando em todos nós uma impressão de espanto e maravilha, como a surpresa de um aerólito, de um eclipse ou de um cometa.

Porque aquilo que aqui chamamos neve, não é mais que uma ligeira geada, simples congelação da humidade atmosférica à superfície das coisas nas noites calmas, sem vento e sem nuvens, que impeçam a irradiação.

Nas estações climatéricas e de altitude, a neve é benfazeja e desejada. Sem ela, o frio e insuportável e não haveria sports de Inverno, nem descidas vertiginosas em bob, trenó ou luge, nem passeios e saltos em skis, nem jogos de hóquei, nem festas de patinagem.

Quando ela cai nos altos, que lindas se tornam as nossas serras, vestidas de branco, tocadas no cimo dos cabeços e alargando pelos ombros das lombadas o seu manto de arminho e o seu véu de gaze, como se fossem noivar ou comungar.

Branca, alvíssima, fofa, leve como penugem, quando cai, parece que nos sacodem das nuvens enormes arregaçadas de penas de anjo.

A Água parada, a Água morta, a Água encarcerada, causa-me sempre tristeza e compaixão, ou mágoa ou dor.

É a Água dos charcos e dos canais impuros e imóveis, dos tanques pútridos, dos lagos miasmáticos, onde a prenderam, coitadinha, deixando-a morrer!

A Água dos canais precisa de movimento, maré ou corrente, agitação da brisa ou impulso do remo, ondulação, barcos, velas para expulsar a tristeza que nos causa sempre ver essa Água, silenciosa, inerte, turva e melancólica, ao contrário da Água que flui e canta ou sussurra ou ruge, seja mar revolto, rio caudaloso, torrente ou regato, jogo de água ou fonte obscura.

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Como poderia eu, filho de uma terra, que tanto quero, adoro e amo, exactamente por causa da sua ria, do seu mar, da sua água, que me encanta e me seduz, me inebria e me alucina, como poderia eu esquecer a Água e não sentir a sua beleza e não cantar a sua graça e não agradecer os seus dons e não impetrar os seus benefícios e não desejar os seus tesouros e não chamar ao seu culto todo o Povo meu irmão?!

E eis o motivo porque eu quase me ia perdendo na vida e porque, insensivelmente, ia também, sem querer ser poeta, quase que fazendo poesia, – por mero milagre da Água!

Desta água, fada de tanta magia e deusa de tantos milagres, que nos gerou, nos dessedenta, nos alegra e nos purifica.

Alberto Souto

 

páginas 73 a 79

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