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N.º 3

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1967 

 

Ecos de uma Exposição de Arte Vareira

Por José Augusto de Almeida

Director do Museu de Ovar

 

Não nos propomos tecer considerações sobre história de arte ou de civilização nem tão pouco insistir na relação notória de interdependência dos meios geográfico, etnográfico e folclórico de cada região natural do País.

Embora desde há pouco, já muito se tem dito a tal respeito. Que digam muito mais, para regalo dos estudiosos interessados, aqueles que sobre o apaixonante problema se debrucem com ciência, paciência, bom gosto e bom senso.

Que razões complexas impelem a nossa curiosidade para as regiões profundas das artes populares? Razões de preferência pelas formas simples? Simplicidade tantas vezes aparente ou ilusória que reflecte a força criadora da imaginação, a complexidade da alma humana na sua ânsia eterna de melhor, mais perfeito, mais belo!

Os instintos de subsistência e de defesa fizeram o artífice ou artesão; o Amor, a Fé, a admiração pela obra de Deus criaram o artista.

Exteriorizando o impulso imanente da sua essência divina, artesão e artista tornaram o lar mais atraente e confortável; deram à casa de Deus o máximo de beleza e grandiosidade; alaram o engenho e a imaginação a alturas imprevisíveis, se recuarmos até às primitivas mãos, já voluntariosas mas desajeitadas, que toscamente modelaram os primeiros barros.

Nesta ascensão artística através dos séculos, qual o papel activo da mulher, além de doce companheira e inspiradora?

A exposição de Artesanato Regional realizada no Museu de Ovar em 1965, a admiração dos visitantes perante a beleza, riqueza e raridade de muitos dos trabalhos femininos expostos atiçaram a nossa curiosidade, sugeriram-nos a ideia de rebuscar no passado as origens da arte popular feminina da região e sobre ela, enquanto é tempo, tentar recolher alguns elementos.

A mulher vareira, profundamente crente, de vida modesta e recatada, muito madrugadora, ia à igreja e regressava a casa, noite ainda, para um longo dia de intensa actividade repartida entre os deveres religiosos, os trabalhos domésticos, a criação dos filhos e a sua distracção preferida: – os trabalhos de mãos.

   

Outras distracções – festas, passeios – eram muito poucas na roda do ano; as solenidades religiosas do Natal, da Semana Santa, da Páscoa; as majestosas procissões do Senhor aos Enfermos, dos Santos Terceiros, do Senhor dos Passos, do Coração de Jesus com a comunhão solene das crianças, para as quais a mulher envergava o elegantíssimo trajo regional de gala e ostentava os seus melhores atavios. Vinham depois os arraiais e procissões de Santo António, S. João, S. Pedro, S. Miguel, nos Largos das respectivas capelas, e a grande Festa do Mar, no Furadouro, em honra do Senhor da Piedade, cuja imagem de pedra o mar engoliu há muitos anos, por incúria dos responsáveis, juntamente com a sua velha capelinha branca.

Saía pouco, a mulher de Ovar. O seu lar era o seu mundo. Nos longos serões de inverno, rodeada dos familiares, acalentada pela fogueira crepitante e cheirosa de pinhas e podas, à luz suave da candeia de azeite ela reinava, conversando, rezando, sonhando, e descansava a trabalhar, sempre a trabalhar, que as suas mãos ligeiras e dextras não podiam perder tempo!

Dotada de particular habilidade, dum bom gosto inato, de imaginação fértil, manejava rapidamente o fuso, os bilros e as agulhas de toda a espécie com que costurava, bordava, marcava, abria crivos, fazia meia, manta, tapete ou as mais variadas rendas.

Abençoadas mãos que assim utilmente entretidas vestiam a família fiando, tecendo, cosendo, e enfeitavam o bragal que enchia a arca perfumada a rosmaninho e alfazema.

Do tear manual saía a manta grosseira de lã para agasalho e a rica coberta de cama dos dias de festa ou de doença e luto; as grossas estopas e ásperos tomentos de uso diário; os finos linhos dos guarda-camas / 24 / e lençóis de luxo enfeitados com rendas, folhos de cambraia ou bordados; a bela toalha de linho rematada com franjas, recortes ou rendas, que enxugava na pia baptismal a cabecinha do neófito, cobria o peito do doente para auscultação médica e resguardava da terra negra e fria o rosto do defunto querido; a toalha de altar trabalhada a primor para a vinda do Santíssimo a casa na hora angustiosa dos últimos sacramentos...

Fiada, urdida e tecida com linho de casa havia a grande toalha de mesa, com desenhos levantados, destinada às alegres consoadas em família, às bodas, aos baptizados; às primeiras comunhões.

Os tapetes, as passadeiras, as cortinas das alcovas, os cortinados dos leitos de bilros, os panos de renda de cómodas, mesas e mesinhas – tudo que alindasse ou desse conforto ao lar era obra das mãos diligentes e da sensibilidade artística das nossas avós, pobres ou ricas, lavradeiras ou senhoras.

Diz a tradição que, por estas bandas, só mesmo as «pescadeiras», tão exuberantes no gesto, tinham mãos pesadas, «mãos de cepo», para os lavores femininos.

Seria repouso compensador da demasiada actividade das pernas e da língua? É sabido que aquelas, num passo rápido, leve, cadenciado, elegante, lhes permitiam calcorrear sem esforço enormes distâncias e que esta, a língua, sempre pronta e afiada, se permitia os maiores desaforos.

 

FIAÇÃO E TECELAGEM

A fiação e a tecelagem eram a base do trabalho feminino das nossas avós. Muito se fiava e muito se tecia.

Teciam até os homens por seu principal mister: os cesteiros, os canastreiros, os esteireiros. Teciam para preencher as horas vagas os que ganhavam o pão arando a terra ou o mar.

Os vimes tecidos davam o cestinho da costura, o balaio do pão, o cesto da roupa, das regueifas, das compras; as correias de madeira, bem encanastradas, transformavam-se nas canastrinhas rasas e esguias das peixeiras, nos canastréis das cangalhas dos vendedores de peixe, nas canastras burriqueiras dos feirantes e almocreves, nos gigos de diversas formas e tamanhos para o transporte dos estrumes nas terras, dos cereais nas eiras, dos entulhos e materiais nas obras. «Andar ao gigo» era expressão corrente.

Uma canastra podia servir de berço em que os filhos se criavam e eram transportados à cabeça altiva das mães.

   
 

Vestido de baptizado

 

Com os juncos e os bunhos das margens da Ria teciam-se esteiras, esteirinhas e esteirões; faziam-se ainda as palhoças ou coroças – capas de palha que abrigavam da chuva. Na cómoda poltrona de bunho sentavam-se os velhinhos e os doentes. O pescador era, e é, tecelão de redes e de rapichéis para o peixe e para as pinhas.

   
 

Quarto antigo

 

As mulheres, essas, fiavam e teciam a lã e o linho, produto agrícola da região. Obtinham assim as «dinhas» com que cosiam, faziam meias, rendas e crivos; e os fios de diferentes grossuras que depois teciam.

As maçarocas de lã fiada em casa convertiam-se, nos teares manuais, em mantas para o inverno ou no «p'ra tudo», tecido de lã que, como o seu nome indica, tinha as mais diversas aplicações no vestuário masculino e feminino.

As teias de linho, depois de primorosamente costuradas à mão, forneciam o bragal: lençóis, guarda-camas, fronhas de travesseiros, cabeceiras e cabeceirinhas muitas vezes ornamentados com bordados a crivo e a cheio ou com rendas de agulha ou de bilros feitas com o fio do mesmo linho; toalhas de rosto, de mesa, guardanapos; roupas femininas interiores, camisas de homem, mana ias de pescador, etc....

Muitas das toalhas de mesa e de rosto saíam já dos teares artisticamente ornamentadas com desenhos lavrados por meio de fios mais grossos ou levantados. Nos mesmos teares e pelos mesmos processos se teciam, de linho, as mantas ricas, verdadeiras obras-primas pela perfeição e variedade dos motivos ornamentais de grande originalidade: gregas, barras, motivos geométricos, flores, a cruz de Cristo, o cruzeiro com flores, a coroa real, o escudo português, brasões de armas, insígnias de corporações, siglas e até nomes de família.

As chamadas mantas de trapo, os tapetes e as passadeiras com fios de linho no urdume e tiras de trapo no tapume, obras mais modestas, tinham quase sempre um cunho de arte e bom gosto pela combinação de farrapos de várias cores.

/ 25 / Faziam-se também liteiros brancos em que o relevo artístico era conseguido deixando mais levantados, em conformidade com o desenho, os trapos do tapume.

Destes trabalhos existem exemplares no Museu de Ovar.

 

COSTURA

Na exposição de Artesanato a que já nos referimos tivemos o ensejo de observar a admiração das ovarinas de hoje pelos trabalhos de costura das suas antepassadas.

Eram peitilhos de camisa de homem completamente guarnecidos de preguinhas milimétricas, distanciadas com uniformidade pela contagem de fios, cosidas à mão de modo invisível, mas resistente ao uso, à lavagem, à goma.

Eram vestidos de baptizado, exuberantemente enfeitados, com milhares de pontinhos seguros, mas de leveza etérea.

Eram pregamentos de rendas e de folhas de cambraia finamente embainhados e franzidos com arte formando centenas de conchinhas uniformes.

Sendo estreitos os linhos saídos dos teares manuais, havia lençóis de dois, três ou quatro panos. Uniam-se estes por meio de ponto de luva tão miudinho que mal se notavam as costuras, graças, também, à perfeição das ourelas do tecido. Resistiram estes pontos ao uso e ao rodar dos séculos, sendo ainda quase impossível descosê-los sem cortar o pano. As bainhas, feitas à mão, a miúdo e escondido ponto de bainha, ou a posponto de um único fio, são obra de extraordinária paciência.

   
 

Almofadas

 

Aqui observa-se uma curiosa colcha, muito antiga, feita com dezenas de amostras de chitas diferentes – pequeninos rectângulos – de desenhos e cores suaves combinadas com bom gosto e pacientemente cosidas à mão!

Ali, uma outra, mais rica, confeccionada com tirinhas de seda natural de todas as cores formando artísticos azulejos!

Na parede, uma cena de caça colorida, de desenho perfeito – tapeçaria feita com centenas de minúsculos trapinhos de seda cosidos, um a um, sobre serapiIheira previamente quadriculada pela tiragem de um fio de 2 em 2 em toda a superfície, paralelamente aos dois lados rectangulares de 2.80 x 0,85 mts.

Pertence ao Museu de Ovar esta bela obra de arte e paciência.

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BORDADOS

Bordados antigos, verdadeiras preciosidades, foram desencantadas de velhos armários e arcas para serem expostos no Museu de avaro Alguns nele ficaram como generosas ofertas.

Bordados a branco, a «ponto real» de inexcedível perfeição, «a canutilho», a «ponto de veludo», a mil pontos de fantasia em que a variedade e a beleza pedem meças:

uns em relevo bem enchumaçado, outros baixos; arrendados estes, tapados aqueles; uns de desenho simples e ingénuo, outros de risco complicado e de grande riqueza ornamental.

Bordados a retrós, a ponto de cruz, sobre talagarça, interessantes pelo colorido e variedades de motivos.

Bordados a matiz de cores tão bem combinadas e esbatidas que folhas e flores têm naturalidade e a frescura que lhes dá o brilho dos ténues fios de seda com que foram executados.

Bordados a lã, a cabelo, a escumilha.

Preciosos bordados a ouro, ouro velho, brilhante, cada vez mais belo.

Mãos delicadas de senhoras nossas conterrâneas bordaram a ouro e seda, sobre preciosos tecidos, bandeiras, pendões, túnicas e mantos de santos e santas, sanefas e andares, baldaquinos, paramentos que ainda hoje enriquecem as festividades religiosas ou são guardados como relíquias de família.

 

RENDAS

Mulheres e rendas sempre foram inseparáveis. Usavam-nas dos pés à cabeça. As meias arrendadas de linho branco contrastavam com o negro da chinelinha de bico e a orla da saia preta, assim como as dos alvos lenços de cambraia e das pescoceiras das roupinhas sobressaíam nas cabeleiras negras.

Elas gostavam de as usar e também de as fazer: rendas de duas agulhas e de uma só, rendas finas e rendas grossas para as mais variadas aplicações.

Como rainhas, as rendas de bilros. Estes, bem torneados, alguns de marfim, regidos por mãos hábeis, dançavam sobre os «piques» a toque de castanholas e iam despindo o fio de linho que os envolvia para criar rendas maravilhosas – espuma delicada que guarnece / 27 / as mais lindas roupas como as ondas bordam a areia da praia.

   
 

Toalha de mesa

 

 

FLORES

Ovar sempre foi, e é, terra de muitas flores.

As mulheres amam-nas e cultivam-nas.

Na falta de jardim há vasos de barro, que oleiros a dar à roda sempre as houve na nossa terra, e em qualquer cantinho bate um raio de sol.

Vê-las, sentir-lhes o perfume dá prazer. Mas fazê-las com as próprias mãos (de seda, de veludo, de cera, de gaze, de escamas de peixe, ou mesmo de papel), imitar com arte a obra de Deus é dom de artista que não faltou às nossas avós.

Fizeram-se flores tão belas, tão naturais, que não houve coragem de as deitar fora. Já velhinhas, são ciosamente guardadas, razão por que não faltaram na Exposição de Artesanato.

As flores artificiais eram indispensáveis nas silvas dos andores, nos palmitos que donzelas e crianças levavam no caixão, nas jarras das igrejas e oratórios, nos ramos de noiva, nas coroas funerárias e na ornamentação da casa.

Lógico era, portanto, que houvesse muitas floristas em Ovar, entre as quais uma se distinguiu e deixou fama – Rosa Brites.

Já velhinha, teve a alegria de saber que flores da sua autoria, enviadas sem seu conhecimento à Exposição de Paris de 1900 por alguém que soubera devidamente apreciá-las, tinham conquistado, naquele exigente certame, uma Menção Honrosa, cujo diploma lhe foi enviado.

Interrogada sobre como, onde e com quem aprendera tais primores, respondeu simplesmente:

– Mas... o meu Mestre é o meu jardim!

* * *

Que o eco longínquo da voz desta artista desperte na sensibilidade das mulheres vareiras o interesse e o zelo pela conservação de tantas preciosidades, julgadas inúteis, que se vão perdendo e que tão bem ficariam no Museu de Ovar, o seu Museu!

E calem-se já os pobres e difusos «ecos de uma exposição de arte vareira» para que, bem alto e bem longe, possa ressoar este apelo.

 

páginas 23 a 27

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