Um animador da natação aveirense - Homenagem efectuada em Novembro de 1992.


ATITA

Em continuação das intervenções sobre natação, feitas no Semanário "O Aveiro", em que temos vindo a fazer emergir do passado e do silêncio figuras e feitos que o tempo em longo abraço tem abafado, mas que agora cedeu, à força dos grandes exemplos que nos tocou e fez fraquejar a tumba do esquecimento, vamos falar hoje duma figura carismática da nossa natação:

 

EDUARDO RAPOSO RODRIGUES DE SOUSA conhecido desde sempre por "ATITA".

 

Vulto dum passado mais recente, com corpo e rosto no presente do nosso quotidiano, o ATITA, nascido a 1/12/1932, é um caso "sui generis", como expressão das simbologias que animam algumas razões objectivas de ontem e de hoje, todas elas retratos caracterizadores duma personalidade, cujos galardões, não sendo muitos, alguns ostenta a merecerem-nos o maior respeito.

De registar também é a sua postura de há muito catapultadora da imagem da natação e dos interesses que ela arrasta, a partir desse fogo intenso que o ATITA mantém permanentemente vivo, agora já sem querer ou continuamente apostado, que tem feito e continua a fazer de si uma figura mítica da nossa natação!...

 

O COMEÇO

A história oficial do ATITA, como nadador, começou em 1951, nos Campeonatos Regionais de Aveiro, realizados em Águeda pela ASSOCIAÇÃO DE NATAÇÃO DE AVEIRO, tendo-se classificado em 3º lugar nos 100 metros livres, Iniciados.

Esta sua aparição em registos estatísticos do Organismo que supervisionava, nessa altura, a nossa natação a sério segue-se a uma outra anterior do ATITA, brincando às natações, mas já a dar nas vistas! E aqui os registos vêm dos arquivos ainda existentes nas prateleiras da memória, que continuam a fazer ver com nitidez os saltos de "Anjo" e os de "Carpo", seguindo-se muitas vezes a cabeça partida ou enterrada na lama, quando a teimosia ou o entusiasmo faziam "voar" da Ponte de S. João ou do simples cais, com a maré a um terço do seu limite, quando cheia, acompanhando dum grito grave que fendendo o seu espaço, era fragor continuado sobre as pequenas ondas que se perdiam ao longe!...

Mais para trás tinham ficado já, nos seus tempos da "Primária", os jogos da "bandeira", da "bilharda" e das "espadas" de pau, bem como outras cargas vivenciais trazidas da "Mestra" com as suas "Ladainhas", que o ATITA substituiu sempre pelas histórias do "Sabú" e do "Tarzan"!

Depois, após ter conseguido "fabricar" uma cabana em cima duma das árvores ainda hoje existentes no largo do "Adro", frente à Escola da Vera-Cruz e ter-se especializado em gritos que para seu azar atraiam quase sempre o "Evaristo" da Câmara ou o "12" da polícia, o ATITA, que a si mesmo se baptizou ou pela /pág. 20/ pequenada do seu séquito de admiradores começou a ser assim chamado, devido ao seu grito de "guerra" não possuir os agudos do pequeno Indiano ou do forte Rei da Selva, o ATITA, dizíamos, desceu aos canais da ria, sem crocodilos nem "chetas", mas abundando de "Janes"! Só que o Cabo do Mar, como era chamado o fiscal do boné branco, já o tinha avisado que não tolerava ver ninguém como "Adão", o que fez com que o ATITA tivesse de regressar muitas vezes a casa com as mãos em concha, tapando a "toca funda da trincheira" e toda a "artilharia", após ter corrido e nadado entre viveiros, porque a multa doía tanto ou mais do que os "tabefes" paternos, embora muito menos do que as cargas de cinturadas!...

Ficou, entretanto, a paixão da ria e das águas cheias de histórias, alimentadas permanentemente pelos antigos tritões que pareciam dialogar com as enchentes e as vazantes, como era o caso do Tobias de Lemos, no seu estaleiro construindo barcos ou do Domingos Calisto que vinha a nadar da "marinha" ou ainda do Serafim Moreira, do Mêgáto, do Felisberto Fortes, dos Ravaras, do Acácio e seus irmãos Agostinhos da Costa, bem como outros, todos estrelas do nosso meio, que contribuíram para a entrega total do ATITA às águas da ria, passando a vivê-las como uma paixão de tal modo embriagante que jamais se calou, até hoje, qualquer poro do seu corpo!...

 

A GRANDE PROVA

Se em 1951 acabou oficialmente em terceiro, os anos que se seguiram mostraram-no algumas vezes em primeiro lugar, situando-se o ano de 1955 como o marco indicador do seu mais espectacular feito como nadador, ao conseguir realizar com êxito a travessia de S. Jacinto/Aveiro.

Efectivamente, em 25 de Setembro de 1955, EDUARDO RODRIGUES DE SOUSA, mais conhecido por "ATITA" e "MEIA-MILHA", fez a ligação de S. Jacinto/Aveiro a nado em estilo livre, numa distância de cerca de 10 kilómetros, "gastando no percurso cerca de duas horas e meia. Manuel Moreira de Castro, que foi o animador e orientador do atleta, acompanhou-o durante a prova, que cronometrou".

Esta Travessia pôs cobro aos "Adamastores" que se tinham instalado desde 1923, data da sua última realização, levada a efeito com êxito por TOBIAS DE LEMOS, que segundo o "Democrata" de 29 de Setembro desse ano, assim nos diz:

"No Domingo passado, realizou-se uma prova de grande fundo — natação ­entre S. Jacinto e o cais da cidade, ou sejam mais de 9 kilómetros. Foram 4 os competidores, chegando apenas à meta TOBIAS DE LEMOS, que correu pelo Galitos, gastando no percurso 2 horas precisas".

O tempo do ATITA, nesta prova, não se poderá considerar famoso; mas isto é sempre uma resultante de muitas outras coisas, importando mais (quanto a nós) registar outras grandes verdades desta prova: é que não é a sua distância, só por si, o factor mais relevante, se tomarmos em conta, à luz dos dias de hoje, as distâncias que se nadam em treinos, somadas as suas parcelas, e que assim possibilitam a melhor defesa como resposta aos grandes desgastes dispendidos. A verdade maior desta Travessia será a das grandes dificuldades provocadas /pág. 21/ pelas variações de temperatura da água, naturalmente que também uma grande resistência para ultrapassar remoinhos "vadios" e, a par da preparação física e técnica, uma preparação psicológica que possibilite a predisposição mental consentânea com essa grande aposta que é a própria vencida da Travessia.

No Correio do Vouga, saído à estampa em 6/10/56, Higino Gonçalves, grande amigo da natação e redactor desportivo, começaria:

"Quando, nos fins do mês de Setembro de 1955, Eduardo Raposo fez com pleno êxito a travessia da Ria entre S. Jacinto e Aveiro, os jornais noticiaram o acontecimento, mas a maior parte das pessoas ignoraram quem era o nadador, porquanto Eduardo Raposo é conhecido pela alcunha de ATITA. O acontecimento ficou sendo do conhecimento público, mas o seu autor continuou sendo uma incógnita para a maior parte dos aveirenses

A apresentação do ATITA é quase desnecessária: toda a gente o conhece. Se, realmente, trouxéssemos para aqui o seu verdadeiro nome, tornava-se imprescindível a sua apresentação que, diga-se de passagem, se resumiria numa palavra apenas — ATITA".

E seguindo-se toda uma intromissão consentidamente amiga, pelo espaço desportivo do ATITA, este diria, entre aplausos ao seu Beira-Mar que, desde a primeira hora representou sempre, "incontestavelmente acarinhado" e a "quem devo em parte os meus triunfos", também o seguinte:

"Quando fiz a travessia S. Jacinto/Aveiro, senti algumas dificuldades porque a água, devido à época (fins de Setembro), encontrava-se já muito fria e, além disso, apanhei contra água desde os Moinhos até Aveiro. Mesmo assim, fiz o percurso em 2,45 horas. Na próxima tentativa conto baixar o tempo para 2 horas".

Não chegou o ATITA, todavia, a realizar mais nenhuma tentativa da Travessia, embora a preparação física não faltasse, como são disso testemunhas outros feitos que conseguiu nos Campeonatos Regionais de Natação de Aveiro, que fixaram as suas marcas de Campeão nos seguintes anos:

 

SEGUINDO E SOMANDO

Em 1956, de acordo com os registos visuais e oficiais, o ATITA venceu os 400 e os 1.500 metros livres, Seniores, realizados em Águeda.

No ano de 1957, foi apenas vice-campeão dos 200 e 1.500 metros livres, igualmente realizados em Águeda, mas em 1958, volta a subir o pódium por 3 vezes, embora no centro mais alto, uma só vez recebesse as maiores palmas: 1º nos 1.500 metros livres, Seniores; 2º nos 400 e 3º nos 200 metros, sempre livres e Seniores e novamente em Águeda, com organização da ASSOCIAÇÃO DE NATAÇÃO DE AVEIRO.

Mas não se ficam por aqui, como nadador, as provas deste nosso vulto do passado e do presente da nossa natação!...

Eduardo Raposo Rodrigues de Sousa, o ATITA, foi o 1º numa prova de 100 metros livres, integrada num festival realizado no antigo "Tanque-Piscina" do Beira-­Mar, em 4/8/1956 e onde também nadou "Mariposa", chegando em 2º lugar, classificações que repetiria em 1957, nos 400 metros livres, na mesma piscina, /pág. 22/ durante um Festival de Socorros a Náufragos.

Em 1958, após os Campeonatos Regionais de Aveiro, com o ATITA no pódium, três vezes nesse mesmo dia, como já referimos, perspectivava-se já no horizonte o fim da sua carreira como atleta (não podemos esquecer que um nadador de competição tem uma vida desportiva muito curta), assim também o entendendo o Sport Clube Beira-Mar que resolveu organizar um festival a que chamou "A FESTA DE DESPEDIDA DE ATITA".

Sobre esta "Festa de Despedida", diz-nos o "Litoral de 11/10/1958, que "O Sr. Carlos Gamelas, dirigente do Clube, ao iniciar-se a interessante reunião desportiva, referiu-se às qualidades de "Atita", enaltecendo a sua dedicação pelo Beira-Mar e os enormes serviços que prestou à natação, como praticante valoroso, quer ainda, e muito principalmente, como paciente preparador de nadadores.

No final das diversas competições, Atita recebeu algumas prendas, entre elas uma oferecida pelos nadadores do Clube dos Galitos.

De referir ainda que nesta "festa de Despedida de Atita", foram realizadas 14 provas que envolveram cerca de setenta (70) nadadores, tendo o ATITA vencido nos 200 metros (especialidade nadores-salvadores) e ficado em 4º lugar na prova de Manequim.

Em 1959, o mesmo ATITA, com a sua entusiasta alma que o tinha celebrizado já, como grande animador da natação, continuava a competir, pois tomou parte no "BEIRA-MAR—BELENENSES", realizado em 15 de Setembro, voltando a competir, integrado em equipa, numa Travessia do Douro.

Em 25 de Setembro de 1961, num "FESTIVAL NÁUTICO DA RIA DE AVEIRO", em que foi realizada a "VI MEIA-MILHA", como foi chamada essa grande prova, o "nosso" ATITA voltou a competir entre a "fina flor" do Algés e Dafundo, do Futebol Clube do Porto, do Fluvial, do Algés e Águeda e do Beira-Mar, sendo o 3º melhor classificado do seu clube, que apresentou em prova 5 destacados nadadores.

O ATITA voltou a competir, dissemos, mas foi também para se despedir das competições.

 

NO GIRAR DA RODA

Mas a natação não tem somente as suas provas competitivas, que são estímulo e referência avaliadora do progresso dos nadadores, mas também outras fases de permeio que vão desde a aprendizagem ao aperfeiçoamento e da manutenção ao simples recreio. E nestas não deixou nunca o ATITA de igualmente estar presente, levantando a voz e os braços, mergulhando e fazendo mergulhar nas águas, gente e mais gente, cuja conta se perdeu há muito no tempo, já que em 1955, primeiro para os lados das "Pirâmides", depois no "Paraíso" e mais tarde no "Poço de S. Tiago", aqui fazia férias no verão, mas para continuar a ensinar na "Biarritz"!

Foi assim desde 1955 a 1968, após os seus treinos e também após o tempo sobrado da Fábrica Campos, onde trabalhava, até ao momento em que o Tio Sam americano o atraiu com os seus dólares e onde o ATITA se manteve até Setembro de 1981.

/pág. 23/ Esta paragem, no entretanto, iria roubar ao ATITA a possibilidade de ser o homem que mais gente ensinou a nadar em Aveiro (mas isto pensamos nós e podemos estar enganados) e também de ser o homem que há mais tempo está ligado à natação (e aqui temos a certeza absoluta), dado que em 1972 é reactivada a natação de competição e de ensino, que não parou mais até hoje, sendo de relevar o ano de 1976, pela grande arrancada das classes de aprendizagem, dado que o Governo de então, na altura o Socialista, criou o chamado "Desporto para Todos e efectivamente a todos estendeu a natação, entretanto organizada e rapidamente desenvolvida pelas Direcções-Gerais dos Desportos,

A necessidade de técnicos para essa grande aventura fez que fossem dadas preferências a antigos nadadores e técnicos com determinado curriculum, quer desportivo, quer pedagógico, pois havia cursos antigos de natação que o ATITA e outros também possuíam, afim de se reciclarem, face aos progressos técnicos e científicos da natação de hoje.

E o que vai acontecer? Enquanto outros antigos nadadores e treinadores retomavam o ensino e novos nomes e valores nele se iniciavam, a natação ganha um desenvolvimento (estamos a falar da natação de Aveiro) e um interesse geral até aí nunca experimentado e que tem vindo a desenvolver-se até aos nossos dias!...

O ensino da natação começa, pois, a partir dessa altura (1972), de manhã à noite, com classes organizadas, sucedendo-se urnas após outras durante dias, meses e anos, com tantas e tantas centenas de alunos (diariamente) que os seus monitores ou professores, rotinados já nessa grande via, não só fazem caso como não alardeiam esse facto, por considerarem ser absolutamente natural a sua função de ensinar!...

 

A OUTRA FACE

Temos de dizer, por respeito à verdade e à história de alguns esforçados e dedicados nomes da nossa natação, que existem entre nós grandes figuras como, por exemplo, um José João Quintela Costa Lobo (grande reanimador, desde 1972, da natação aveirense, após anos de estagnação em termos competitivos e o “Pai” dos grandes êxitos do Sporting de Aveiro, onde também passou a existir o ensino infantil, depois se mudando para o S. Bernardo, onde efectiva ainda hoje um trabalho exemplar, por ser de alta qualidade tudo o que faz; como por exemplo um José Luís Corte-Real (a grande revelação, mantida ainda hoje, que atingiu o topo do ensino de natação a determinado tipo de crianças como as inadaptadas, sendo actualmente e desde 1988, o Treinador da Selecção Nacional, com passagem em Campeonatos do Mundo — 1988 — realizados na Suécia e Campeonatos Olímpicos — 1992 — realizados em Madrid), bem como outros que agora se nos escapam e que merecem de nós o mais elevado respeito, já que numericamente e qualitativamente, em termos de ensino da natação, não têm ninguém que os ultrapasse.

Em face disto e do que mais atrás se disse sobre o ATITA, em que ficamos afinal?...

/pág. 24/ 

A DISTINÇÃO DO MÉRITO

Continuamos a reconhecer no ATITA o que afirmámos ao princípio: as grandes simbologias que marcam os grandes retratos e fazem de si uma figura carismática e mítica da nossa natação, independentemente do seu tempo de ensino, do seu número de instruendos e da sua qualidade e capacidade profissional, que em nada se afectam, já que o seu valor é intocável, em termos dos grandes serviços que aos outros e à natação tem prestado.

E assim sendo, podemos afirmar que o ATITA, em termos gerais, na nossa natação e até talvez na natação em Portugal, é a sua melhor voz e o seu mais entusiástico representante.

E se tivermos presente que o ATITA, mesmo calado, só por si consegue atrair e "dominar" as atenções, em permanente evocação da natação, conseguindo ser "herói" na atracção de muitos, para quem continua a ser seu "maior", se tivermos em conta que muita pequenada, de ontem e de hoje, é por si atraída, não só para nadar, mas também influenciada para comer frutas, saladas e o prato com mais sopa, é por si tudo já o fazia merecer há muito uma distinção e um prémio invulgar, já que ele, ATITA, consideradas todas as coisas, também não é um caso vulgar!

E mais não poderei dizer, porque muito disse já, aqui lhe deixando, a terminar, um abraço misturado com as folhagens que o tempo mais entrelaça, quando se não perde, como no nosso caso, o amplexo do seu sopro.

Carlos Baptista Coelho
(Carbaty)


 

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