António Christo, Antónia Rodrigues, Vol. XIV, pp. 161-176

ANTÓNIA RODRIGUES

(A HEROÍNA DE MAZAGÃO)

EXPLICAÇÃO PRÉVIA

O presente trabalho é a modesta conferência com que em 11 de Setembro de 1946, singularmente fiz realçar os benefícios e encantos de outros serões promovidos pela Acção Cultural das Fábricas Aleluia para lição e enlevo dos seus operários.

Pouco a alterei com um ligeiríssimo esforço de lima, a adoçar-lhe uma ou outra aresta mais viva; mas acrescentei-a com muitas notas, que em lugar próprio justifico.

Tudo somado, não dará mais do que a afirmação do grande amor que voto às coisas da minha terra.

Aveiro, 1948.

A. C.


MINHAS SENHORAS
MEUS SENHORES


DISSERAM-ME que esta conferência se destinava aos operários.

Isso me obrigou a redigi-la com a simplicidade e clareza de que fui capaz, descurando primores de forma ou galas de estilo que pudessem dificultar a sua compreensão e sem mais citações eruditas do que as absolutamente indispensáveis.

Proponho-me desenvolver um tema histórico.

Só com anunciá-lo, pressinto que os meus ouvintes se ajeitam nas cadeiras, como quem se prepara para mais comodamente / 162 / suportar uma tortura; e se, por delicadeza, não bocejam desde já o seu aborrecimento, certamente pensam que seria mais agradável uma ceia bem servida ou um passeio ao ar livre do que um banho de pó soprado de velhos livros,
uma árdua peregrinação a um passado longínquo, um penoso revolver de pessoas e coisas de outrora que o tempo se esforça por decompor.

Conheço bem a aridez do assunto. E nem mesmo esqueço ter lido algures que Luís XIV, depois de bem aconchegado no seu régio leito, para mais facilmente conciliar o sono, em vez de ingerir um narcótico... mandava ler em voz alta qualquer livro de História!

Não obstante, atrevo-me a falar do passado e alimento a esperança de não vos fazer dormir.
 

Um eminente professor universitário disse um dia, com muito acerto, que «quem esquece a própria história perde a consciência de si mesmo».

Há, indiscutivelmente, um passado de treva sem vislumbre de luz, de cinza sem calor de lume, um passado morto que não interessa fazer reviver porque nada pode aprimorar na inteligência ou no coração.

Esse é o passado sem nome, sem vida, o passado que realmente... passou.

Mas há também, como diria não sei que filósofo francês, um passado-presente, «que continua em nós como a flor que brota de raiz distante». É o passado que venceu o tempo, que triunfou da morte, o passado vivo−raiz sadia que, mergulhada na fundura dos longes, alimenta de seiva o presente, dando-lhe, na memória do que foi, a consciência do que é e a estímulo para o que pode e deve ser.

Neste sentido, a História não é uma ressurreição, pois não se ocupa de reanimar cadáveres; é antes a recomposição de um todo − facto, doutrina, monumento, pessoa ou agregado − pela reunião amorável de células vivas que o tempo dispersou e, porventura, escondeu.

Reviver o passado da nossa terra, evocar as figuras que souberam enobrecê-la, descobrir em documentos ou estudar nos alfarrábios as realidades ignoradas ou esquecidas do torrão ande nascemos, − em poucas palavras: compor ou recordar a história deste burgo de encantos − deve ser para todos nós devoção e honra.

Nem será apenas amor, encantamento, deleite, porque é antes lição de exemplos e virtudes que, acorrentando-nos ao império da sua autoridade, nos abrigam em consciência ao seu louvor e ao seu exercício.

Suponho ter justificado suficientemente a escolha do assunto. / 163 /

E para que em tudo a minha pobre conferência obedeça às regras, lembro que, terminada a introdução, é a altura... de o conferente tomar água e de os assistentes tomarem fôlego!...


MINHAS SENHORAS
MEUS SENHORES

Era uma vez uma encantadora menina....

Perdão! Este começo tem o sabor de um conto de fadas e poderia induzir-vos em erro: − no que vou expor, não há fantasias; evocam-se realidades, testemunhadas por documentos ou afiançadas por bons autores.

Convêm, por isso, principiar doutro modo.

Duas placas de mármore, não há muitos anos mandadas colocar junto da Praça do Peixe e no termo da Rua de S. Roque, identificam a estreita e tortuosa artéria citadina com o nome de Antónia Rodrigues.

Quem era esta mulher de chamadoiro plebeu, tão breve e incaracterístico, e que extraordinários feitos praticou para merecer, a perto de quatrocentos anos de distância, a nossa comovida lembrança?

Filha da arraia miúda, dela se têm ocupado com interesse os cronistas, os historiadores, os cientistas e os literatos.

O licenciado DUARTE NUNES DE LEÃO, historiógrafo da primeira época da literatura clássica, que bem a conheceu, dedica-lhe longas páginas da Descripção do Reino de Portugal.

Na sua estimada Corografia Portuguesa, o Padre ANTÓNIO CARVALHO DA COSTA não esquece a heroína aveirense − «famosa heroína», diz ele, «que podia ser timbre das de Grécia e das de Roma».

DAMIÃO DE FROES PERYM, anagrama que oculta o nome de Frei João de São Pedro, celebra também, no Theatro Heroíno, o valor da intrépida cavaleira: «donzela que, nascendo humilde, morreu ilustre», «contando, em poucos anos de idade, largos séculos de merecimento».

Nas Memórias de Aveiro, do benemérito escritor JOÃO AUGUSTO MARQUES GOMES, não falta larga referência a Antónia Rodrigues, «valente soldado que tão galhardamente combateu em Mazagão».

Um outro paciente investigador, JOSÉ REINALDO RANGEL DE QUADROS OUDINOT, dedica-lhe um curioso artigo − o trigésimo quarto da série publicada no semanário local Districto de Aveiro sob o título Aveirenses notáveis − nele pondo em relevo que Antónia Rodrigues, «celebridade deste país», «fez a admiração de nacionais e estrangeiros». / 164 /

D. ANTÓNIO DA COSTA, apreciado escritor da era romântica, louvou-a em algumas páginas do seu livro A mulher em Portugal, apresentando-a como «formosa, simpática, toda ela pilhas de graça», valorosa mulher que «não comprou os seus brilhantes nas pacíficas ourivesarias do tempo» mas «ganhou as suas esporas de ouro nos campos em que dantes se conquistavam».

O nobre CONDE DE SABUGOSA, num delicioso capítulo das magníficas Neves de Antanho, ocupa-se largamente da heróica amazona aveirense.

Refere-se-lhe também o sábio Professor Doutor JOAQUIM PIRES DE LIMA, no estudo que publicou sobre os Vícios de conformação do sistema uro-genital.

Ainda recentemente, num trabalho dado à estampa na revista "Brotéria" acerca das Mulheres na Conquista e Navegação, o Dr. HIPÓLITO RAPOSO louvava a aveirense ilustre, que alcançou renome em assinalados feitos.

E tantos outros!....

Se não houvesse notícia das suas façanhas, das simpatias que despertou, dos aplausos que mereceu e das honras que lhe tributaram donzelas e infantes, plebeus e fidalgos, governadores e reis, esta cuidadosa atenção dos escritores pela biografia de uma pobre e humilde mulher seria, só por si, índice seguro de assinalados méritos.

 

Depois de tantas falas que pouco dizem sobre o assunto escolhido, compreendo a vossa impaciência, a fazer-vos bailar no cérebro a ansiosa pergunta:

− Mas quem era, afinal, Antónia Rodrigues?

Não respondo que neste despertar de interesse é que está a habilidade do artista, porque o não sou. Mas confesso ser por manha que assim espevito a vossa curiosidade, ajudando-vos a triunfar de sonolências e bocejos...

No último quartel do século XVI, a «muito nobre e notável vila de Aveiro» tinha caído em extremos de penúria, chorando então os fartos esplendores de outrora.

Em remotíssimas eras, frotas sem conta demandaram-lhe o porto e as suas águas, segundo pretendem alguns escritores, coalhavam-se de navios fenícios e cartagineses.

Romanos e mouros mandaram à foz do Vouga os seus barcos, em busca de riquezas.

No reinado de EI-Rei D. João II, ancoravam aqui navios estrangeiros de grande tonelagem.

E ainda em tempos de D. Sebastião, segundo informa o douto BARBOSA MACHADO nas suas Memórias, o porto de Aveiro aparelhava muitos navios diversos, tanto para a navegação / 165 / de África como para a pesca do bacalhau, só nesta empregando mais de sessenta barcos.

Em 1575, um tempestuoso inverno modificou profundamente as condições da barra e do porto, obstruindo-os e originando a decadência de Aveiro.

As areias invadiram as águas, as cheias inundaram os campos, arrasaram os viveiros e empobreceram as marinhas.

Decresceram ou paralisaram as pescas, as produções, os transportes e as variadíssimas actividades que determinam ou condicionam. Aveiro tornou-se insalubre e as doenças e epidemias alastraram, ceifando sem piedade os seus habitantes.

Por forma que no desgraçado ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1580, a vila continuava a despovoar-se e os que se viam forçados a morar nela atravessavam, por via de regra, horas sombrias de luto e miséria.

Estava então o bairro nobre da vila abrigado pelas muralhas outrora mandadas construir, à imitação das de Jerusalém, pelo Infante D. Pedro, filho de El-Rei D. João I − duque de Coimbra, senhor de Aveiro e, segundo todas as probabilidades, meu ilustre... vizinho, pois consta ter vivido na casa da Rua Direita, hoje pertencente à família Casal Moreira, onde se conserva ainda uma pedra com a cruz da Ordem de Avis − muralhas que, mais tarde, El-Rei D. Manuel I reedificou e das quais podemos admirar os restos da chamada Porta do Sol, entre as casas da antiga Rua de Jesus e as que olham para o lado das Olarias.

Abro um parêntese para esclarecer que, segundo a tradição, o Rei Venturoso mandou sob a guarda de uma força de oitenta soldados o dinheiro necessário para a reparação dos muros, 10.000 reis − importância hoje tão mesquinha que não chega para um quilo de arroz ou meio litro de azeite do obsequioso «mercado negro»...

Fora de portas, ao norte do canal, ficava ao tempo a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, onde se situava o bairro piscatório − aglomerado de casario modesto, em grande parte coberto de colmo.

Ali nasceu, em 31 de Março de 1580, conforme a opinião ordinariamente seguida, a nossa Antónia Rodrigues.

Seu pai, Simão Rodrigues ou Simão Rodrigues Mareares, era marítimo de profissão. Não errarei supondo-o, com bons autores, embarcado nos navios que daqui partiam, carregados de sal, para longínquas paragens ou entregue aos árduos trabalhos da pesca do bacalhau − peixe de saudosa memória! − nos bancos da Terra Nova.

A mãe, Leonor Dias, ocupava-se nos trabalhos domésticos e não teria lugar para ócios: vivia rodeada de filhos e de miséria. / 166 /

Neste ambiente cresceu e se educou a pequena Antónia Rodrigues que o CONDE DE SABUGOSA − numa evocação, «amorosamente acariciada pela fantasia», da sua mocidade − nos apresenta com o sangue a ferver tumultuosamente nas veias, envolta com a garotada em perigosas excursões pelos canais da Ria ou em lutas monumentais pelas estreitas vielas da antiga vila, destra, ágil, dominadora, tormento da mãe e enlevo do pai.

A verdade é que, em seus verdes anos, determinou a mãe levá-la para a companhia de uma filha casada que tinha em Lisboa, «para viver em sua pobreza com menos uma boca», como deliciosamente escreveu Frei JOÃO DE SÃO PEDRO.

Não teria Antónia Rodrigues mais de dez ou onze anos de idade quando a arrancaram ao convívio dos pais, forçando-a a abandonar amizades e folganças e escondendo dos seus olhos os encantos duma paisagem maravilhosa.

Em companhia da mãe, lá fez a longa e dolorosa caminhada de Aveiro à capital do reino − viagem árdua e perigosa por estradas, veredas e atalhos infestados de ciganos e ladrões, só de muito em muito longe se descobrindo o aconchego de uma albergaria ou de um convento.

Creio que por terra seguiram as duas; mas nem, se me engano, seria a viagem em qualquer embarcação menos perigosa e arriscada, numa época em que, no mar, eram de temer os ataques de corsários ingleses e holandeses.

Pelo que das crónicas se infere, foi contrariadamente que a filha mais velha de Leonor Dias, cujo nome se ignora, aceitou o encargo de hospedar a irmã.

Era aquela «de pesada condição», como diz o bom frade de São Jerónimo, «sizuda e rebarbativa», «azeda e violenta de índole», como se exprime outro escritor.

Sabe-se positivamente que Antónia Rodrigues era mal tratada.

Falam uns em «reparos, proibições e repressões que, em vez de alcançarem o recato e a compostura requeridos, mais excitaram no ânimo da insubmissa Antónia o espírito de revolta».

Afirmam outros que a irmã e o cunhado a admoestavam constantemente, a repreendiam com aspereza e a ameaçavam de mandá-la para Aveiro, mantendo-a sob uma pressão contínua de ralhos e contrariedades.

Avançam até que o cunhado a espancava muitas vezes e levantam a suspeita de que a dureza e frequência dos castigos eram motivadas pelo facto de Antónia Rodrigues se esquivar aos seus galanteios.

Se nisto pode haver fantasia ou exagero, a verdade é que a pobre rapariga levava «com obediência forçada uma vida desgostosa», para usar das palavras de Frei JOÃO DE SÃO PEDRO, / 167 / «não podendo sofrer a aspereza da irmã e o mau tratamento que lhe dava», como assegura DUARTE NUNES DE LEÃO.

Azougada e independente, Antónia Rodrigues suportou pouco tempo − escassos anos, dizem uns, alguns meses apenas, afirmam outros − aquela indesejável hospedagem.

Escreveu o CONDE DE SABUGOSA que, «deslumbrada com as aventuras narradas pelos capitães de navios, que regressavam de remotas paragens», a pequena Antónia «sonhava com os esplendores do Oriente, com os jardins de Ceuta, com os dramáticos encontros afrontando piratas no alto mar e com os cercos famosos das fortalezas de África e da Índia, em que as mulheres representavam por vezes tão insigne papel».

O certo é que, como bem notou o Dr. HIPÓLITO RAPOSO, a sua índole aventureira foi estimulada pela tentação do longe.

E um dia − feliz dia, sem dúvida! − Antónia Rodrigues soltou animosamente o brado da sua emancipação.

Juntou o pouco dinheiro que tinha, fugiu da casa sombria da irmã e, dirigindo-se «à rua onde vendem vestidos feitos», ajustou com um algibebe ou roupavelheiro «um vestido conforme ao trajo dos moços que servem no mar em navios mercantes».

Cortou então o cabelo − «os seus bastos e longos cabelos pretos», como dizia, não sei com que fundamento, um escritor nosso.

E assim «se foi ao campo e em um lugar escuso despiu o trajo de mulher que trazia e se vestiu como moço: e indo ao longo da praia se pôs com o mestre de uma caravela que estava carregada de trigo para Mazagão em a qual se embarcou».

Estas afirmações do cronista permitem-nos recompor a cena curiosíssima: − um pimpolho vestido de marujo, vivo, esperto, decidido, no meio das algaraviadas do velho Cais da Ribeira, inculcando-se sabedor da arte de marear, apto para todo o serviço de bordo, e convencendo o mestre experimentado de uma caravela, pronta a levantar ferro, a engajá-lo!

Tinha então Antónia Rodrigues quinze, como pretendem alguns, ou doze anos somente, como assevera DUARTE NUNES DE LEÃO, digno de maior crédito.

As suas formas, «começavam a desenhar-se em linhas felizes» e os exercícios a que se votara tinham-lhe dado «uma elegância especial».

Houve já quem a retratasse de fartos cabelos pretos, olhos negros e brilhantes, feições regulares, tez morena e corada, dentes alvos e lábios carminados, evidentemente sem o artifício do bâton que as senhoras agora usam... / 168 /

O que não sofre dúvidas é que Antónia Rodrigues era elegante e formosa.

Quando já em Mazagão, «parecia um mancebo mui gentil-homem e de muita graça», diz o cronista; e ao conhecê-la mais tarde, «mulher ainda moça de menos de trinta e cinco anos de idade», era Antónia Rodrigues «bem parecida», com «muita graça no que fala e grande viveza de espírito», pelo que, acrescenta, «justifica bem o que dela se diz».

Embarcou, pois, na caravela que lhe seria amparo e caminho de libertação − por interessante coincidência denominada Nossa Senhora do Socorro − transmudada em marujo e com o nome suposto de António Rodrigues.

Serviu na viagem de grumete, «tão destramente como se fora homem que fizera sempre aquele ofício, trepando pelo mastro a tomar as velas e fazendo tudo o mais como um destro marinheiro».

Não é necessário supor tempestades ou calmarias, fúrias dos elementos ou ataques dos piratas, para encarecer a dureza do trabalho, que todos sabemos bem custoso.

O que seguramente pode dizer-se é que o desembaraço, a agilidade e a perícia do pequeno grumete causavam o espanto da tripulação.

Trabalhou e dormiu de envolta com rudes mareantes, triunfando de concupiscências, preservando de mácula a branca açucena da sua pureza, recatando-se por forma que nenhum companheiro de beliche ou camarata suspeitou o seu verdadeiro sexo.

Chegou, enfim, a caravela a Mazagão − praça do norte de África, na costa marroquina, que os portugueses da Conquista acrescentaram, como diamante magnífico, à refulgente coroa de D. Manuel I.

O sítio era ameno, a baía excelente e a fortaleza, construída para senhorear a rica província de Dukala, obra «mui grande e mui poderosa».

«Plana a terra, plano o rebordo da larga baía de que a praça ocupa uma ponta, perdido de vista o outro extremo dela ao longe, num tom claro onde há desfazer de vaga e iniciar de duna», o pequeno grumete encontrava para os seus lindos olhos estimável compensação da paisagem a que andavam habituados e tão cedo lhes roubaram.

Disse-se já que a construção da fortaleza e a fundação da vila − como os cercos da praça, com sérias arremetidas de mouros que os portugueses sacrificada e heroicamente repeliam − eram tema magnífico para um canto de epopeia.

Não me sobra o tempo para detalhadas notícias, que qualquer encontrará na História do cerco de Mazagão, de AGOSTINHO DE GAVY DE MENDONÇA, no estudo Lugares dalém Azemôr, Mazagão, Çafim, do professor Doutor VERGÍLIO / 169 / CORREIA, ou em qualquer das muitas obras por este ali indicadas.

Logo à chegada, foi o Capitão-Mor, como então se chamava ao Governador da praça, informado de que «o mestre da caravela fizera furto e falsidade no trigo que levava: e tirando-se do caso testemunhas foi o grumete António uma delas que descobriu a verdade».

Organizou-se, portanto, um processo; procedeu-se a um inquérito; ou, para usar a terminologia do tempo, abriu-se 'uma devassa para averiguar do roubo.

O grumete António Rodrigues, honrado, inteligente e decidido, sem temer rancores ou represálias, pôs logo tudo em pratos limpos, como soe dizer-se: culpou o mestre da caravela, descobrindo-lhe a desonestidade.

«Pelo que − diz o cronista − o Capitão não consentiu que tornasse na caravela por o mestre lhe não fazer mal: e o assentou no número dos soldados».

Bons tempos, esses, em que o alistamento dos militares se fazia sem necessidade de inspecções prévias.

Ficou, pois, António Rodrigues em Mazagão, agora como :soldado de infantaria.

Em pouco tempo se tornou tão destro no manejo das armas que a todos se avantajava; e de tal modo que nenhum conseguia vencê-lo.

Esta reconhecida superioridade e a sua «branda condição» tornavam-no particularmente querido dos soldados, que com ele procuravam acamaradar.

Pelo que reza a crónica, era exemplar o seu comportamento. Nela se diz que António Rodrigues «fazia suas vigias de noite sem nunca faltar nelas, e com os soldados comia e se deitava na cama e dormia entre eles vestido porém sempre com gibão e ceroulas, que nunca andava sem elas, por onde não foi conhecido».

Serviu, assim, durante pouco mais de um ano, como peão ou soldado de infantaria. Tinha, porém, adquirido tal renome e era tão benquisto do Capitão-Mor que este o incorporou na cavalaria «e lhe deu soldo e mantimento como aos mais cavaleiros».

Começou então o período mais famoso da sua brilhante carreira militar.

Em tempos de El-Rei D. Sebastião, durante a regência de sua avó D. Catarina, os mouros cercaram a praça com numerosas forças, que foram brilhantemente repelidas.

Data de 1562 o memorável assédio, do qual PEDRO DEMARIZ escreveu o seguinte: «... e foi este cerco havido pelo mais estupendo e maravilhoso e apertado que todos os mais que em nossos tempos se viram, nem na Índia, nem em África, nem em toda a Europa». / 170 /

Foram tão importantes os combates e tão assinaladas as nossas vitórias que não só em Mazagão, como em todas as igrejas do reino, se celebraram solenes festas em agradecimento a Deus. O Santo Padre Pio IV ordenou aos cardeais Hércules Gonzaga e Jerónimo Seripando que fizessem celebrar missa de pontifical em acção de graças por havermos vencido os infiéis, missa para a qual se escreveram orações especiais e a que assistiram os Prelados reunidos para o Concílio de Trento!

Conta Frei LUÍS DE SOUSA que no ano seguinte, estando o santo Arcebispo de Braga D. Frei Bartolomeu dos Mártires em Roma, numa das vezes que jantou com o Papa e durante toda a refeição «não tratou o Chefe da Igreja de outra coisa senão louvar e engrandecer os portugueses, encarecendo aos assistentes o seu esforço e valentia e a famosa vitória que no ano atrás haviam alcançado dos mouros de África no cerco de Mazagão, de que mostrava tivera particular gosto».

Assim desbaratado o inimigo, que sofreu mais de vinte e cinco mil baixas, não terminaram, porém, os assédios, as sortidas, as correrias, multiplicando-se os longos e duros combates, que proporcionaram aos portugueses luzentes vitórias sobre os mouros infiéis.

«No acometer aos mouros e em todas as facções de maior perigo e importância, sempre António Rodrigues era quem por ordem do capitão precedia aos mais, e o merecia pelo valor intrépido e disciplina militar com que dispunha e pelejava».

Em parte alguma o vejo tratado por adail ou simplesmente por almocadem, cujo ofício era guiar ou encaminhar o exército marchando na sua frente e que, segundo Frei JOAQUIM DE SANTA ROSA DE VITERBO, devia «ser mui prático e esforçado na guerra, ter perfeita notícia do país, dos seus caminhos e vales, montes e rios, ser muito fiel, acautelado e expedito».

Certo é que tais qualidades não faltavam ao moço cavaleiro e que, se de direito não tinha o posto, de facto por muitas vezes o exerceu. Claramente o mostra DUARTE NUNES DE LEÃO no seguinte passo:

«Sendo de cavalo se avantajou dos outros na destreza e bom ar e ligeireza com que cavalgava do chão: e no cometer aos inimigos nas empresas maiores e de importância, sempre o Capitão o nomeava e mandava na dianteira como ao mais destro cavaleiro que tinha. E assim se achou em muitas pelejas e encontros onde foram cativos e mortos muitos mouros principais e seus cavalos de que António Rodrigues participava como o melhor cavaleiro da companhia».

A dar crédito ao que leio num trabalho omisso na indicação de fontes, que não consegui encontrar, já durante o / 171 / primeiro ano de serviço, como peão, o valente militar praticara extraordinários feitos, um dos quais o impôs à admiração de todos.

Arguto, perspicaz e sempre vigilante, António Rodrigues descobriu a tempo uma conjura dos mouros, que se preparavam para, em determinada noite, fazer uma grande sortida, matando com ímpetos de ferocidade e destruindo as searas com requintes de malvadez.

Preveniu o Capitão-Mor e, ardendo em ânsias de alcançar maior glória, solicitou-lhe o comando de um troço de tropas.

Foi, então, ao encontro dos infiéis, dirigindo as manobras do ataque com tanta mestria e combatendo com tal denodo que infligiu ao inimigo uma derrota completa e vergonhosa.

Coroado de louros, reentrou em Mazagão por entre aclamações, delirantes.

Foi, porém, na arma de cavalaria que António Rodrigues se tornou verdadeiramente célebre, espalhando o terror nas fileiras inimigas, assombrando os combatentes portugueses e conquistando gerais simpatias e aplausos.

Estão neste ponto de acordo os escritores, um dos quais assevera que se contam autênticos prodígios de valor e audácia do aguerrido militar, em inúmeras correrias que comandou e durante as quais combateu encarniçadamente, como o mais destemido cavaleiro das hostes lusíadas.

As suas preclaras virtudes e os seus feitos heróicos alcançaram-lhe honrosos cognomes. Crismaram-no de Terror dos Mouros; chamavam-lhe, em Mazagão, A Cavaleira, pelo esforço que nas armas mostrou; e os que apontam e louvam os triunfos do «jovem fronteiro de África» comprazem-se em sobrepô-lo à animosa Cloélia ou em compará-lo ao destemido Eurico, à célebre Brites de Almeida e até à doce Joana d'Arc!

Nos lazeres dos seus admiráveis feitos guerreiros, o brioso cavaleiro cumpria escrupulosamente as suas obrigações militares, velando de noite nos aquartelamentos e saindo repetidas vezes aos arraiais inimigos, a cavalo e de espingarda, «a fazer lenha e feno».

Sobrava-lhe ainda o tempo para as sortidas aos campos dos mouros, onde ia frequentemente matar porcos bravos, de que trazia sua parte.

E também lhe não faltava para falar de amores...

A fama das suas proezas, a sua elegância e distinção, a viveza do seu espírito e o seu trato gentil, franquearam as portas das melhores casas da vila ao moço cavaleiro, que por sua galanteria enfeitiçava as damas. / 172 /

Regista a crónica que António Rodrigues «era mui bem olhado e favorecido das donzelas de Mazagão, mormente de uma filha de um cavaleiro principal em cuja casa tinha tanta familiaridade... que todos cuidavam que havia de casar com ela. E por a muita familiaridade que os pais da moça viam nele que não passava de requebros e galanterias não se receavam dele: pelo que era mui servido de lenços e camisas, e todos tinham para si que casaria ali».

Nada a este respeito acrescenta DUARTE NUNES DE LEÃO. Da sua pena, somente fica a saber-se que a donzela loucamente apaixonada pelo garboso António Rodrigues era filha de um cavaleiro principal.

Supôs o CONDE DE SABUGOSA que a História lhe não registara o nome, talvez para a não vexar pelo seu equívoco. Mas uns investigadores de antiqualhas, sem qualquer receio... de afoguear as faces da enamorada senhora, afirmam que esta era D. Beatriz de Mendonça, filha de D. Diogo de Mendonça, um dos principais fidalgos que ao tempo viviam em Mazagão.

E esclarecem que D. Beatriz chegou a adoecer gravemente, pelo que o pai solicitara os bons ofícios do Capitão-Mor no sentido de obter que António Rodrigues a desposasse.

Que não se levante do seu túmulo, onde há séculos dorme, a ilustre senhora, se por acaso a calunio: − limito-me a reproduzir o que li e só há que pedir contas a quem o assoalhou...

Seja como for, o certo é que em Mazagão começaram os carros a andar adiante dos bois − quero dizer, principiaram as donzelas a requestar o moço cavaleiro, a ponto de uma por ele se apaixonar, o receber como noivo em casa de seus pais, o amimar com prendas e se dar como certo na vila que os dois se uniriam pelos sagrados laços do matrimónio.

Havia de ser lindo, não resta dúvida!...

Enquanto a pobre rapariga vivia neste equívoco, notava o falso António Rodrigues que, ao lado das suas numerosas admiradoras, havia um militar de boa família que o olhava estranhamente, que a furto o contemplava e que, em suas raras conversas, lhe falava sempre com visível comoção.

Aventou um autor, neste passo, que lhe andariam talvez na memória aqueles versos do lindo romance A donzela que vai à guerra:


«Tende-los peitos mui altos
Filha, conhecer-vos-hão.
. . . . . . . . . . . . . , . , . . . . . .
Senhor Pai! Senhora Mãe!
Grande dor de coração:
Que os olhos do Conde Daros
São de mulher, de homem não!».

/ 173 / Complicavam-se as coisas.

Havia cinco anos que Antónia Rodrigues, ocultando cuidadosamente o seu sexo, servia em trajo de homem como valoroso soldado que, em repetidos feitos heróicos, ganhou esporas de oiro.

Ou porque repugnasse à rectidão do seu carácter o embuste em que forçadamente vivia; ou porque se apiedasse da doce apaixonada que via enredar-se no seu engano; ou porque temesse «ser descoberta por outrem, se se lhe enxergassem algumas mostras de mulher»; ou porque os impulsos do seu sexo, despertados no convívio de marujos, e soldados e longamente reprimidos, lhe pediam que se mostrasse o que por natureza era; ou porque se sentisse tocada no coração pelos olhares do moço militar que furtivamente a admirava − por qualquer destas razões, ou por todas elas; Antónia Rodrigues sentiu necessidade de tudo descobrir.

Lembrou-se então de que, entre os clérigos que na praça faziam cristandade, havia um, o Padre Provisor, sobejamente austero, reputado como o mais hábil para tranquilizar espíritos conturbados e resolver casos difíceis de consciência.

«... E indo ao Provisor se lhe descobriu e lhe disse as razões porque até ali andara naquele trajo.»

Facilmente se calcula o espanto do bom Padre ao ser-lhe desvendado o segredo!

Mais surpreendido ainda, se possível, ficou o Capitão-Mor, ao que parece Diogo Lopes de Carvalho, quando aquele e a heroína o procuraram e lhe fizeram a estranha e inesperada revelação!

Vale a pena repetir o que Frei JOÃO DE SÃO PEDRO, em perfeita concordância com DUARTE NUNES DE LEÃO, sobre este ponto escreveu:

− «Eram passados cinco anos de serviço naquela praça, vivendo sempre com recatos de donzela na licenciosa vida de soldado, e temeroso que algum incidente descobrisse o segredo, da sua heróica resolução, voluntariamente se deu a conhecer ao Provisor do Eclesiástico, que dando parte ao Governador, a obrigaram ambos a largar com o exercício das armas os trajes de soldado, e vestidos de varão.

Invejando todos em tão humilde fortuna, tão nobre coração, não cessavam de encarecer a honra, que soubera ganhar, menos vencendo tantas vezes o inimigo na campanha, que triunfando da mesma natureza nos viciosos quartéis da soldadesca, virtude, que se deve contar nesta heroína por primeira entre outras muitas, que lhe fazem oposição no lugar, força em a primazia.»

Antónia Rodrigues despiu a farda que tanto enobrecera e retomou os vestidos de mulher, com eles mais realçando os seus naturais encantos. / 174 /

«Correu logo a notícia com admiração de todos, que a estimavam soldado, e agora reconheciam donzela.»

D. ANTÓNIO DA COSTA refere-o assim: «Se correra a fama do militar, a fama da mulher que fora guerreira ressoou mais ainda: toda a gente a queria ver. Então mudaram-se as cenas: se até aí as donzelas requestavam o brioso mancebo, passaram os homens a apaixonar-se pela formosa donzela».

Foi Antónia Rodrigues recolhida em casa de família 'honesta, a «de um cavaleiro principal da praça.

Assevera o cronista que ali a iam visitar «as donzelas a que ela falava amores, as quais mudaram o amor que lhe tinham em amizade e lhe pagaram as galanterias que lhes dizia com presentes de rocas e fusos e outros tais ditos».

Não alimentaram rancores as que se viram logradas.

Quis Antónia Rodrigues voltar para o reino, se encontrasse mulheres que lhe fossem boa companhia. «Mas − diz a crónica − era tão benquista do Capitão e de todos os da vila, assim homens como mulheres, que lhe não consentiam falar nisso».

Esta expressiva maneira de dizer revela claramente a grande consideração e as gerais simpatias que a nossa conterrânea soube conquistar por suas muitas virtudes e assinalados feitos.

Entretanto, aquele que de há muito olhava escondidamente Antónia Rodrigues, pessoa de qualidade, filho de gente nobre, «cavaleiro mancebo dos principais da vila», triunfou de quantos amaram a esbelta rapariga que nascera humilde numa pobre casa de Aveiro e fora coroar-se de invejáveis louros a Mazagão.

Casaram e partiram para o reino pouco tempo depois do casamento.

Entre as jóias do seu enxoval, por muito rico que fosse, a mais valiosa e a que Antónia Rodrigues, por certo, mais estimaria, era «a certidão de seus serviços que fez pelas armas», com que o Capitão-Mor a presenteou.

É de crer que o rei tivesse já notícia dos seus brilhantes feitos ou que a heroína se apresentasse no paço «com a relação de seus grandes serviços, autorizados por certidões.»

Seja como for, sabe-se que o monarca lhe fez mercê de duzentos cruzados para ajuda de custo, uma fanga − ou seja quatro alqueires − de trigo em cada mês e uma tença de 10.000 reis em sua vida.

Isto assegura o cronista, e não é para aqui a explicação de um pretendido desacordo entre o que afirma e o que consta de um documento que o General Brito Rebelo encontrou no Arquivo da Torre do Tombo e de que enviou cópia ao CONDE DE SABUGOSA. / 175 /

Este refere-se à concessão de nova tença com que se premiaram os feitos da afamada guerreira.

Desconhece-se o nome do marido de Antónia Rodrigues. No regaço de ambos brincou um filho que a munificência régia, para mais honrar a mãe, elevou à dignidade de moço da real câmara.

Se não erram os autores, estavam a heroína e seu marido novamente no reino quando, em 1619, Filipe II visitou Lisboa.

Antónia Rodrigues gozava então de grande fama e extraordinário prestígio, que por seus feitos brilhantes tinha muito justamente granjeado.

Por simples curiosidade ou por senso político, o monarca intruso desejou conhecê-la.

Ignora-se o tempo que durou a audiência, que se afirma ter sido longa e extremamente interessante.

Novo galardão que, na altura, lhe fosse concedido, é problema de esclarecimento demorado.

De outros filhos que teve, como alguns pretendem, nada positivamente se sabe.

Apostou-se o tempo em esconder-nos os demais caminhos que a heroína trilhou na vida até que Deus a levou do mundo.

Antónia Rodrigues, porém, continua a viver nos seus nobres exemplos, como na nossa enlevada admiração e comovida saudade.

MINHAS SENHORAS
MEUS SENHORES

 

Dou-vos a grata notícia de que vou terminar.

Não haja menina que tome a lição da ilustre aveirense tão ao pé da letra que se ponha agora a fugir à família, a cortar os cabelos, a vestir-se de homem, a dormir com marujos e soldados − ainda que recatadamente − e a matar inimigos, cavalos e javalis em paragens distantes...

Suponho ter posto em relevo as qualidades de carácter de Antónia Rodrigues, a sua decisão, a sua energia, a sua independência, o seu aprumo, a sua abnegação, o seu heroísmo.

Estas são as virtudes que a enobreceram; e são elas que, como vos dizia ao princípio, nos acorrentam ao império da sua autoridade, obrigando-nos a louvá-las e a exercitá-las. / 176 /

Num apreciado alfarrábio, que muitas vezes compulsei, onde se registam e enaltecem os predicados de Antónia Rodrigues, encontra-se esta saborosa passagem:

«O que desta mulher mais se pode louvar é a continência e honestidade com que sempre procedeu andando entre tantos soldados feita soldado, comendo e dormindo na cama entre eles, vencendo-se a si mesma; que é a maior das vitórias.

O espírito gentil de uma famosa heroína, com tão brilhante folha de serviços, ensinando aos seus conterrâneos, a perto de quatrocentos anos de distância, que a maior de todas as vitórias... é vencerem-se a si mesmos!

Decididamente: − se ponho mais tintas no quadro, arrisco-me a estragar a pintura.

Por isso termino.

Tenho dito.

ANTÓNIO CHRISTO

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