Liturgia Pagã

 

«Emprenhar pelos ouvidos»

15º Domingo do Tempo Comum (ano A)

1ª leitura: Livro do profeta Isaías, 55, 10-11

2ª leitura:  Carta de S. Paulo aos Romanos, 8, 18-23

Evangelho: S. Mateus, 13, 1-23 

 

A sabedoria popular atesta este espantoso milagre de ouvidos férteis assim... Semente, nem vê-la: abalou com o vento, o mesmo vento que encheu os balões dos Santos Populares, espalhando beijos e cantigas. Mas há quem se queira enganar e enganar os outros, teimando que é o pai dos manjericos. Porém, foram-se as festas e tudo murchou. Cantaram de galo, mas não encontramos galinhas poedeiras.

A estes se aplica «ouvindo ouvireis, mas sem compreender» (evangelho). Gritam aos quatro ventos o que gostaram de ouvir, sem distinguir o que vale do que não vale. Apenas suscitam gritos de fãs, que se juntam ao barulho, perdendo o fruto das palavras que, essas sim, podiam gerar riqueza.

Mas as palavras férteis não nos emprenham de um dia para o outro e raramente são as mais mediáticas. Não valem pelo som que produzem, mas pela vida que provocam. Precisam de amadurecer dentro de nós, adubadas pela dor e pela alegria. Lembram «a mulher em dores de parto: logo que dá à luz, esquece as suas dores, tamanha é a alegria de ter trazido ao mundo mais um ser humano» (João, 16, 21).

O profeta Isaías, ao falar da palavra de Deus, vê-a dando a volta à terra inteira mas nunca em vão: «como a chuva que desce do céu e não volta à sua origem sem ter fecundado a terra» (1ª leitura). Porém, quantos têm a coragem de «dar à luz»?

Também Jesus disse que a palavra de Deus é uma semente – a semente da vida: mas quem julga ter a vida só porque tem a semente, apenas emprenhou pelos ouvidos. No lugar das sementes, encontrará pó seco.

Porque é preciso vida para gerar vida: «e àquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado» (Evangelho). Estranho provérbio! Aparece noutros lugares, como na parábola dos talentos (Mateus, 25, 28-29). Serve para lembrar que, se não queremos investir na promoção da vida, não merecemos ficar sequer com o que nos foi dado de início.

Na 2ª leitura, e no seu conhecido estilo exótico, S. Paulo, na continuação do domingo anterior, surge como homem angustiado perante todas as manifestações de decadência: não só no ser humano e na organização social como também na própria natureza (que parece inimiga da gente – quando somos nós que a tratamos mal!). Sente a morte nesta vida, passada num mundo frequentemente hostil, entre pessoas ardilosas, incongruentes, malvadas. A vida e morte de Jesus Cristo, não foram elas sentidas com a maior tristeza e frustração pelos discípulos? Com Jesus morto, e daquela maneira, sentiram bem como tudo acaba e, o que é mais doloroso, como tudo o que é bom parece acabar mais depressa.

Por isso, S. Paulo quer afirmar a vida, mesmo entre a destruição. É a vida que se afirma na própria debilidade humana (ou na «carne»), cobrindo dores e prazeres com a esperança – e com a alegria de quem colhe o fruto da sementeira trabalhosa (João 4, 36-38), a caminho de um novo céu e nova terra onde a dor e a injustiça foram superadas.

A tradução desta passagem de S. Paulo é muito discutível: no texto do missal, Deus parece ser o autor da corrupção, deixando-nos apenas o rebuçado da esperança. Porém, o texto original aponta noutro sentido: os seres humanos é que não querem investir bem na criação e provocam uma catadupa de esquemas de morte. Apesar disso, a vida não deixa de estar presente, persistindo no seu trabalho paciente e – esperança fundamental – vencedor.

Vem a propósito lembrar o psicólogo poeta Evaristo de Vasconcelos (padre jesuíta), ao dizer que a própria morte é como o parto dolorosíssimo em que cada um de nós é a mãe geradora de si próprio.

Deus é vida – não pode haver razão para nos resignarmos à morte. Nem faz sentido que a própria natureza seja condenada à destruição. S. Paulo confia no triunfo e no esplendor da beleza do universo, sentidos na «carne», liberta de tudo o que seja corrupção (2ª leitura).

Não podemos emprenhar demasiado depressa, nem recorrer a cesarianas… Homens e mulheres, igualmente, terão que saber enfrentar as dores de parto. E igualmente partilhar a alegria de dar fruto a cem por cento.

10-07-2011


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