Liturgia Pagã

 

Justiçado há dois mil anos

Domingo de Ramos (ano C)

1ª leitura: Profeta Isaías, 50, 4-7

2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Filipenses, 2, 6-11

Evangelho: S. Lucas, 22,14 – 23,56

 

Por que é que não foi apenas mais um crucificado entre os muitos do seu tempo?

A «Paixão de Jesus» impressionou de tal modo os discípulos que, mesmo dezenas de anos após o acontecimento, o relato dos 4 evangelistas coincide em muitos aspectos. Mas os sentimentos e maneira de pensar de cada evangelista estão bem presentes, não só na diferença de estilo mas também na recolha e arranjo do próprio material, e sobretudo pelas interpretações desenvolvidas já à luz da experiência posterior de «Jesus ressuscitado».

Falam todos do mesmo «homem bom» (Actos, 10, 38) que marcou tão fortemente os que lidaram com ele. E como acontece a todos os «homens bons» (e sobretudo aos melhores…), não era «bom» para toda a gente: ou porque incomodasse os preconceitos e a consciência, ou sobretudo porque incomodasse o modo de vida e estratégias de poder da maioria da classe dominante.

De facto, pelas suas palavras e acções, pondo a lei e os costumes (e portanto a religião) ao serviço do bem-estar das pessoas, perturbava o «bom andamento» dos que detinham o governo efectivo do povo judeu – praticamente a classe sacerdotal. O simbolismo (ainda hoje mal conhecido) de muitas das palavras e acções de Jesus (abusivamente utilizadas para o condenar) revelava que estava iminente uma mudança na relação entre os Homens e Deus. E a ideia de «mudança» incomoda.

Quando quase de repente surgiu uma ocasião para prender Jesus, esta foi aproveitada com a mesma celeridade com que as autoridades do nosso tempo aniquilam uma «persona non grata». E com o mesmo nível de corrupção, num processo bem orientado para a mais dolorosa e humilhante das penas capitais.

Enfim, nada de novo: uma boa jogada para que não perigasse a qualidade de vida de um grupo coeso de dirigentes da nação.

«Legalmente» justiçado.

Os relatos da paixão ficam-se pela morte e sepultura de Jesus, acompanhadas pela tristeza e carinho de quem o amava, e por um clima de medo que impedia muitos discípulos de se mostrarem amigos. Também aqui, nada de novo para o nosso tempo.

Mas houve algo de muito novo, sim: a descoberta progressiva de que o «justiçado Jesus» vivera de uma maneira tal que alterou a vida das pessoas e lhes abriu os olhos para um novo conceito de «história da minha vida»: afinal, contra muitas evidências, somos amados por Deus, e há sempre uma maneira de fazer nascer o bem – particularmente, vendo em cada um dos outros não «o meu limite» mas «o campo de forças» do amor. É uma vida de liberdade para agir, olhando para as necessidades e condicionalismos existentes, mas nunca atraiçoando o grande princípio de acção.

Na história da humanidade, quantos «processos de Jesus» podemos encontrar! E quantos deles, de gente que vive e morre sem dar nas vistas – todos heróis, porque fiéis ao que aceitaram como missão ao serviço do bem. E que dizer do «Bom Ladrão»? Só ao ser crucificado, por ter atentado contra o bem da sociedade, é que reconheceu que partilhava o destino daquele a quem se podia chamar «o Filho de Deus» – um título a que ninguém se podia arrogar e que implicava ser dotado de autoridade divina (o que perturbava seriamente as «autoridades» do tempo).

Bem vistas as coisas, um final esperado. Mas os evangelistas sublinham todos que Jesus Cristo não fugiu a esse fim, embora o previsse. Não atraiçoou os amigos nem a sua missão divina. E deixou-nos o exemplo de que um ser humano pode ser forte até ao fim e de que a vida passageira de cada qual não é só um tempo da vida da humanidade, mas sinal de que a Vida não é só esta sucessão de tempos.

No início do evangelho, S. Lucas põe como seu objectivo relatar cuidadosamente os «acontecimentos» principais da vida de Jesus. De longe, a história do «justiçado» é o acontecimento principal. Porquê?

A resposta começará no domingo que vem…

24-03-2010


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