Liturgia Pagã

 

Antes só que mal acompanhado

1º Domingo da Quaresma (ano C)

1ª leitura: Livro do Deuteronómio, 26, 4-10

2ª leitura: Carta aos Romanos, 10, 8-13

Evangelho: S. Lucas, 4, 1-13

 

Tinham sido um povo numeroso e bem considerado no Egipto, para onde haviam começado a migrar, por volta de 1700 a. C.. Mas cedo descobriram, os descendentes de Abraão, que o paraíso de Adão e Eva foi efectivamente eliminado do cenário humano. De facto, não podemos confiar que sociedade alguma ponha o céu ao nosso alcance: cada um de nós é que é o único construtor dos alicerces do que pode vir a transformar-se num céu onde não entram nem ferrugem nem ladrões (Lucas, 12,33).

Quantas vezes o Antigo Testamento aponta o dedo contra a imprudente confiança do «povo escolhido» na presumida aliança com nações poderosas! Os poderosos, infelizmente, sucumbem facilmente à tentação de só quererem quem lhes preste um tributo cada vez mais pesado e frequentemente aviltante.

Foram precisos 400 anos de muitos e repetidos desenganos (pois até nos habituamos a uma situação de “infelizes”…), para que os Israelitas se unissem eficazmente contra a opressão e largassem o Egipto. O seu líder era Moisés e o caminho conveniente era o deserto. Longe da riqueza do Egipto, Israelitas e Deus pareciam seguir o provérbio: «antes só que mal acompanhado».

Quanta gente não sente o desejo de conhecer o deserto? É sempre uma experiência radical. É o lugar sonhado de plena libertação: de burocracias, guerras de poder, slogans de toda a ordem; dos horários para comer, para dormir, para trabalhar, para descansar... É a imaginação pura sobre lagos e tempestades de areia, sobre impressionantes rochedos áridos, sobre venenos escondidos, sobre “moiras de encantar”… é a imaginação livre para criar miragens e falar com elas e perder-se nelas.

Desde o começo da História, o deserto é a situação por excelência em que a pessoa se encontra só consigo. Os célebres «padres do deserto», e grandes figuras ao longo dos séculos, procuraram o deserto para aí poderem avaliar a autenticidade da sua força interior.

O livro do Deuteronómio (palavra que significa «segunda lei», referindo-se à renovação da espiritualidade do «povo de Deus») estabelece que ao longo do ano haja dias de festa para lembrar a fidelidade do Deus libertador e fortificar a identidade histórica e cultural, contando-se às novas gerações as experiências radicais – desde uma «luta com Deus» (Génesis, 32,23-33), até ser namorado por Deus durante «quarenta anos» de deserto, cheios de promessas, desquites, ameaças e perdões.

«Hei-de castigá-la (à «filha de Sião», a nação eleita) por correr atrás dos seus amantes e me esquecer. É por isso que a vou seduzir, levando-a para o deserto e falando-lhe ao coração. E ela se encantará comigo como nos tempos da sua juventude, e me chamará “meu marido”» (Oseias, 2, 15-18).

Jesus Cristo veio-nos lembrar da necessidade deste namoro com Deus. No deserto, enfrentando todos os ventos. S. Lucas sublinha como Jesus teve que superar as normalíssimas ambições humanas de prazer, glória, riqueza e poder. Ganhou assim credibilidade: deu prova do realismo e prudência que devem acompanhar os mais incansáveis ideais; e forjou com segurança um projecto suficientemente sólido para vencer as investidas do comodismo.

O Êxodo é uma narrativa em que não se descrevem factos com exactidão, mas que nos faz compreender o que é uma “joint-venture” do Homem com Deus.

Mas… será que Deus é boa companhia?

A imagem de um Deus controlador e até castrador é própria daqueles que não compreendem o que levou Jesus a resistir à tentação de sucesso imediato. Mesmo num sentido apenas vagamente religioso, a noção de Deus alia-se à noção do que é ser “adulto”, suficientemente independente do que enche os olhos à primeira vista para os poder encher de um modo avisado, atento ao que preenche o nosso profundo e por vezes recalcado desejo de realizar em “trabalho de grupo” o sentido da nossa vida. Quando é mesmo Deus que nos acompanha, o saldo é a descoberta da força de cada um de nós – «criados à imagem do próprio Deus» (Génesis, 1,27). Sentimos Deus quando ele nos abre os olhos – para nós próprios e para a vida.

Para os Israelitas, o Êxodo era impensável. E mesmo quando começou a caminhada, parecia impossível o sucesso. A «ressurreição» é impensável e o sucesso não é visível. Mas por que é que a Humanidade, como no Êxodo, não desiste de viver sempre mais?

17-02-2010


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