Liturgia Pagã

 

As coisas da vida

24º Domingo do tempo comum (ano B)

1ª leitura: Isaías, 50, 5-9

2ª leitura: Carta de S. Tiago, 2, 14-18

Evangelho: S. Marcos, 8, 27-35

  

Comecei por dar o título de «5ª dimensão» – porque há pessoas que parecem não andar neste mundo:

Umas nem sequer se preocupam com as injustiças comuns – aldrabices na construção, compadrios nas autarquias e ministérios, subornos, «imunidade ética» dos poderosos que atropelam as leis elementares, desinteresse pelas pessoas da parte dos mais variados tipos de serviços … e um sem fim de atentados diários mais assassinos que os de 11 de Setembro (só que menos mediáticos);

Outras que julgam ouvir Deus perfeitamente, só porque se preocupam com um ritual mágico de limpeza dos ouvidos;

Mas há pessoas «de outro mundo» que não desarmam de modo algum. E que gritam bem alto que ser bom é agir bem (2ª leitura) – tão alto que há sempre uns «desgraçadinhos» que se deixam convencer e chegam a morrer por excesso de honestidade. Será que ao menos morrem felizes? Será que, de verdade verdadinha, acreditam até que «não morrem»?

Quem são estes que parecem descarrilar da dimensão em que vivemos?

Muitas religiões têm profetas infractores dos nossos códigos de felicidade. E mais do que gastar o tempo a contabilizar qual será «maior» no «reino de Deus» (Marcos, 9, 34), a atitude mais sábia é descobrir as riquezas do terreno que melhor conhecemos e reflectir sempre mais – e o bom fruto será aumentar o apreço e caminhar de braço dado com todos os que querem «trabalhar com Deus», entendendo o que é ser «o servo de todos» (Marcos, 9, 35).

O grande profeta do cristianismo é Jesus Cristo. Quando João Baptista apareceu a pregar no deserto e a baptizar no Jordão, foram-lhe perguntar: «Quem és tu? Serás tu o Messias?» E ele responde que não, que não é mais do que um batedor rasgando o caminho para «aquele que há-de vir» (João, 1, 19-28). E no entanto, o próprio Jesus dizia de João: «é um profeta, sim, e muito mais do que um profeta»; leva um estilo de vida muito estranho, sem o menor conforto, mas está longe de ser «uma cana agitada pelo vento» (Lucas, 7, 24-28).

Outro profeta desajustado foi Isaías (1ª leitura). Queixa-se de que os contemporâneos lhe fazem as piores patifarias, mas não deixa de acreditar na fidelidade de Deus – o único verdadeiro defensor da sua vida. E por isso é capaz de resistir ao sofrimento causado pela sua dedicação à felicidade de toda a gente.

Jesus foi ainda mais além: evitou a publicidade, para dificultar jogadas de vaidade ou interesse; e, apesar da grande angústia que sentiu, não recuou perante o abandono de amigos e a ameaça do suplício da cruz.

E depois dele, muitos amigos, que não se limitaram a limpar os ouvidos, não lhe quiseram ficar atrás em generosidade: procuraram fazer os outros felizes mesmo à custa da própria vida.

A acreditar em S. Marcos, Jesus terá dito: «Quem me quiser seguir, negue-se a si mesmo». Como quem diz: liberte-se da inclinação automática e «a-racional» (isto é, sem o trabalho de pensar), que nos leva a fazer o que é de imediato mais agradável.

Mas não é verdade que «as pessoas de sucesso», as pessoas que se «preocupam por ganhar o mundo» (evangelho) também são notável exemplo deste poder de dizer «não» ao prazer imediato? Mesmo quando o que interessa é uma vida com um «final feliz». Quando Jesus mostrou consciência de que se expunha a um final de vida «trágico», para ser fiel ao seu projecto de vida, não é de apreciar a «estratégia política» de S. Pedro, «tomando Jesus à parte» para mais eficazmente o fazer mudar de ideias? E não é verdade que Pedro é que tinha razão? Não defendia ele o valor mais caro a um ser humano: defender a própria vida e viver o melhor possível? (O «reino de Deus» é um estado de «bem-estar», como prova a acção do próprio Jesus e se tem visto noutras leituras).

No entanto, Jesus chamou a Pedro de «Satanás» («tentador»): por não ser capaz de se libertar da noção corrente de «vida com sucesso».

Porém, o evangelista joga com o termo hebraico «vida»: tanto significa o nosso estado de tensão com a morte como significa «o verdadeiro eu». Que interessa viver arrastado por estratégias de sucesso quando se destrói o prazer de viver a própria vida?

«Levar a sua cruz» ganhou por vezes um sentido de fatalidade, como se fôssemos lançados por Deus a um «vale de lágrimas». Já as primeiras comunidades cristãs sentiam na pele o peso da sua escolha, e refugiavam-se muito na consolação da chegada iminente do «novo mundo».

São naturais e bem compreensíveis os momentos de tristeza e descontentamento perante as coisas da vida. Levam-nos a cair na conta de que «a vida não pode ser isso» e de que tem um valor independente de tristezas e alegrias.

«Levar a sua cruz», porém, tem mais o sentido da força empreendedora de um projecto, em que sabemos gerir as dificuldades inerentes. Ganha o sentido optimista de concentrar energia para pegar nas pesadas realidades da vida – que podemos utilizar para mostrar aos outros como se pode ser feliz «apesar de tudo» e como «o peso de tudo» pode ser aproveitado para formar os mais sólidos alicerces do que vamos descobrindo ser a felicidade.

 13-09-2009


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