Liturgia Pagã

 

«Vida por vida»

20º Domingo do tempo comum (ano B)

1ª leitura: Livro dos Provérbios, 9,1-6

2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Efésios, 5,15-20

Evangelho: S. João, 6,51-58

 

Apesar de tudo, ainda hoje é um lema respeitado e admirado – este dos «soldados da paz». E os tempos nem são muito favoráveis a desenvolver uma atitude de apreço pela dedicação ao bem da comunidade, ao ponto de arriscar morte dura para salvar a vida de outros.

A força deste sentimento heróico talvez se enraíze na vibração entusiasmante com que se capta o aspecto empolgante da própria vida e de como a vida do outro pode depender da minha – a estranha percepção de que a vida de cada um de nós se entrelaça no espaço e no tempo, em particular a vida do «herói» e a vida que ele quer salvar.

Deixar-se surpreender por este «mistério» da vida, é sem dúvida essencial para garantir o nível da Humanidade. É ele que favorece a tendência para prestar ajuda e para realizar projectos de vida que enriqueçam a vida dos outros; e que gera atitudes heróicas de dedicação, quantas vezes em benefício de uma pessoa desconhecida. Falando de si e do que desejava para os seus discípulos, Jesus disse que «ninguém tem mais amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos» (S. João, 15, 13). (A questão é: como se poderá partir do princípio que todos os outros são amigos?...)

Mas o que mais parece preocupar o nosso evangelista é a situação dramática da comunidade cristã à sua volta. Com efeito, nos finais do séc. I, sentiam-se as perseguições quer por parte de chefes da sinagoga quer por parte do imperador romano (um e outros sentiam o poder posto em causa, e a sinagoga considerava o cristianismo um desvio da verdadeira fé). Por sua vez, o forte simbolismo deste evangelho favorecia a proliferação de facções de pensamento e até de rituais. Era mesmo preciso muita coragem para arriscar a vida presente por uma vida futura – a noção de vida e a própria figura concreta de Jesus Cristo apareciam envoltas de uma aura de misticismo quase impossível de ser compreendida pelo «cristão comum», desde então até aos nossos dias.

 Existe um elo fortíssimo entre a vida do herói e a vida que ele quer salvar, um elo de proximidade crescente que potencia a força do salvador. Esta proximidade pode ter um alto valor religioso e não apenas na cultura judeo-cristã. Mas como fazer sentir a ligação entre o cristão e Cristo, entre a vida que vivemos e uma vida que (ainda) não vivemos?

Aos cristãos mais não resta do que sentir a realidade de Jesus como dispensador da verdadeira vida (sendo que a sua existência terrena se afasta cada vez mais no tempo).

Mas o que é a verdadeira vida? Nem Jesus o disse claramente. Todavia, as suas parábolas são intensamente sugestivas: nelas se fala de crescimento, de persistência, de trabalho, de consciência do dever (mesmo sem dar nas vistas), de dedicação e prudência. E todas parecem apontar para um final, também ele expresso em parábolas, de alegria e convívio – alegria e convívio bem enraizados na experiência que temos de um banquete ou encontro de amigos.

Porque não conseguimos evitar o mal, queremos saber-lhe resistir. Nada mais destroçador do que haver pessoas verdadeiramente aniquiladas, no corpo e no espírito, porque ao lado delas faltam pessoas dignas desse nome. Coisas que nos lembram «o silêncio de Deus». Acontece, porém, que o 4º evangelho sublinha o reconhecimento de Jesus como «palavra de Deus», de «misteriosa» intimidade com Deus (tudo o que se refere a Deus é misterioso…).

Ora foi esse Jesus que, congruentemente com as suas parábolas, se quis despedir dos discípulos numa última refeição: durante a qual procurou enfrentar, com a ajuda dos amigos (que mostraram bem as suas fraquezas …), e num ambiente propenso à partilha de sentimentos, o final dramático que sentia aproximar-se.

Recordando o modo como Jesus selou a sua vida, desejando amizade, alegria e fidelidade ao projecto de fazer bem, os cristãos reúnem-se em «eucaristia», isto é, de acordo com a etimologia, uma acção de louvor perpassada de alegria e amizade. Nela se partilha a sabedoria de Deus (1ª leitura) – aquela sabedoria que parece jorrar quando nos sentamos à mesma mesa e que nos ensina a dar sabor aos altos e aos baixos da vida, onde ecoa o convite do estranho banquete da própria Vida.

Para a comunidade do 4º evangelho, estava a ser difícil manter bem viva esta alegria e vontade de conviver, que permitem dar o corpo ao manifesto por um mundo mais agradável e justo.

(O capítulo 6 do «Evangelho de S. João» nasceu provavelmente de uma «homilia eucarística» de alto valor simbólico e místico).

Os cristãos do «evangelho de S. João» não podiam encontrar a vida nem na sinagoga nem muito menos no imperador. Ambos representavam segurança e o sonho de inserção num grupo de sucesso. Mas agora, em vez da Lei (impessoal e estereotipada), é apresentada «a graça e a verdade» de Jesus Cristo (João, 1,14; Carta a Tito, 3,4), na aventura de um frente-a-frente com Deus, que em vez de respostas dogmáticas nos leva a abrir os olhos, em permanente inquietação por cada vez mais e melhor.

Jesus Cristo é apresentado como uma vida que alimenta a nossa reflexão e entusiasmo de acção. Mas o convívio, com troca de ideias e sentimentos, é essencial para manter a abertura de espírito e encontrar caminhos sábios.

Quando será que a comunidade cristã saberá oferecer à humanidade o exemplo de com-viver e portanto de com-morrer, fazendo passar à frente de tudo (de guerras, de angústias…) o sabor do entrelaçamento das nossas vidas?

Quando será que, resistindo a tentações como as de poder ou de auto-justificação, fará sentir ao mundo que «o seu grande herói» deu a «vida por vida»?

 14-08-2009


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