Liturgia Pagã

 

Pagador de Promessas


3º Domingo de Páscoa (ano B)

1ª leitura: Actos dos Apóstolos, 3, 13-15.17-19

2ª leitura: 1ª Carta de S. João, 2, 1-5

Evangelho: S. Lucas, 24, 35-48

 

Foi uma história triste, mas respirámos fundo. A partir daquela Páscoa a seguir à morte de Jesus, podiam ficar ultrapassadas as milenárias histórias de deuses, cheias de medos, de castigos e de onerosos rituais para conquistar as boas graças desse ser ou seres superiores, como se estes fossem “divinamente corruptos”.

Na história do Judaísmo, Deus encontrava-se a salvo deste comércio. Os custos rituais eram tabelados. Só a esmola era livre e Jesus (como se lerá no evangelho de outro domingo) chamou a atenção para a moedinha da viúva, que valia, aos olhos de Deus, muito mais do que uma choruda contribuição só para dar nas vistas, sem a menor vontade de “dar o corpo ao manifesto”.

Essa moedinha, saída do orçamento de subsistência, correspondia à força da esperança no sucesso final dos nossos actos de empenhamento na construção de um mundo de justiça.

Mas a relação dos Homens com Deus também levanta muitos problemas. Valha-nos acreditar, sem ofensa à razão, que Deus é a nossa ilimitação e a Palavra silenciosa e amiga a acompanhar-nos do nascimento à morte – fazendo-nos ver que a vida não é só «isto» e que, se pensarmos deste modo, «isto» até passa a ser muito melhor!

Com o tempo, foi crescendo o sentimento de que era preciso um salvador a cem por cento, acompanhando a experiência espiritual da ligação entre Deus e os Homens.

A ideia de Messias aí estava. Os textos litúrgicos deste domingo, aliás, outra coisa não fazem senão gritar aos quatro ventos que era mesmo ele, aquele Jesus que tinham crucificado.

Porém, não era fácil para os Judeus, como continua a ser difícil hoje em dia, aceitar que esse salvador não pusesse em primeiro lugar a libertação das condições sociais opressivas. Honestamente, quem acredita em lindas cerimónias religiosas, se realizadas sob o auspício de poderes opressores, ou até de conluio com eles?

Todavia: por que não havemos de ser nós a corrigir o mal que fazemos e as situações de injustiça que dele nascem? Se é verdade que temos o dom da consciência que nos torna responsáveis e capazes de projectos de mudança, também é verdade que tendemos a descansar na esperança que há-de aparecer alguém (que não nós…) com a sabedoria e coragem necessárias para pôr tudo em ordem.

Desde o tempo da Grécia Clássica até hoje, não faltam pensadores a clamar contra esta preguiça interior, que nos faz preferir engolir as ideias dos outros a ter que pensar no que é que vale a pena (admitamos que pode ser perigoso querer dar boas ideias ao patrão…). É o grave problema do doutrinamento. Sem dúvida que é mais fácil seguir o carreirinho das leis e costumes do que desbravar, e sem ser à toa, caminhos novos; e que seja o Messias a romper as sebes espinhosas e então, se a paisagem for do nosso agrado, segui-lo-emos alegremente e com promessas de fidelidade…

Pois quem quer um Messias que nos leva a pôr tudo em questão, à luz do critério de só querer bem para todos – pondo em risco certos negócios e projectos políticos? Esta «paisagem» não pode agradar a toda a gente – sobretudo quando se aposta em ter sucesso e dinheiro a todo o custo.

Até que podemos dizer: o próprio Messias, com todo o seu arrojo, não destruiu a injustiça no mundo. E não é que é mesmo verdade? Todo o arrojo dele se centrou em destruir a injustiça – mas no interior de cada ser humano. Não foi também ele que disse: «o resto virá por acréscimo»?

Não, o Messias “não veio”: está sempre a chegar – até ao «fim dos tempos» da injustiça.

Bem vistas as coisas, ele não quer ser o único pagador de promessas…
 

A palavra «Messias» provém directamente do aramaico, significando «ungido». Aplicava-se sobretudo ao Rei e só por extensão ao Sumo-sacerdote. Ao ser ungido com óleo, o rei passava a ser «o Messias do Senhor», um representante do «poder» de Deus. Se o rei se tornasse indigno, «o espírito de Deus» afastar-se-ia dele e perderia o fundamento da autoridade. Em grego, ungido diz-se «cristo» e David poderia ser chamado «Cristo de Javé» (1 Samuel, 16, 13) «Filho de Deus» (como se designaram muitos reis e imperadores) e «pastor» de todo o povo. Reis e sacerdotes eram os «medianeiros» na interacção entre Deus e os homens. A existência de reis iníquos e de falsos profetas, juntamente com as tragédias políticas de Israel muito antes de Cristo e a pergunta cada vez mais angustiante sobre o sentido da vida, motivaram outro nível de esperança, voltada para um futuro indefinido e centrada num misterioso «príncipe da paz» «salvador». Quando este aparecesse, chegaria «o fim dos tempos» imperfeitos e o começo do «reino de Deus», ou seja dos tempos de justiça e felicidade plenamente garantidas. O Novo Testamento juntou intimamente «Cristo» a «Jesus», descobrindo neste adjectivo um alcance extraordinário e único: Jesus agiu radicalmente em sintonia com o «espírito» de Deus. Por isso, ele é o verdadeiro «Messias» e «Filho de Deus». Outros títulos profundamente simbólicos na cultura judaica se acrescentaram: «Filho do Homem», «Senhor» e «Logos» («Palavra» ou «Verbo»). O título mais importante é o de «Senhor», que também se aplica a Deus. «Logos» é a sabedoria de Deus “dirigindo-nos a palavra”. Todos os outros títulos designam funções de mediação, que a um nível modesto podiam ser desempenhadas pelos reis e profetas (embora «Filho do Homem» evoque também uma misteriosa figura humana que, no «fim dos tempos», partilhará da dignidade divina). «Messianismo» passou a ser entendido, mesmo fora do registo religioso, como a esperança de uma mudança radical no nosso mundo e a projecção, num futuro indeterminado, da imagem possível de sociedade perfeita.

 

 24-04-2009


  Página anterior Página inicial Página seguinte