Liturgia Pagã

 

Encontros imediatos de terceiro grau


4º Domingo da Quaresma (ano B)

1ª leitura: 2º Livro das Crónicas, 36, 14-23

2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Efésios, 2, 4-10

Evangelho: S. João, 3, 14-21

 

Não é fácil falar de olhos nos olhos. Sobretudo para quem se debate com sentimentos de culpa ou de inferioridade. Esta fraqueza é bem explorada por muitos a quem o poder desequilibrou: sofrem e fazem sofrer.

Nos encontros apaixonados, é que não custa ficar de olhares embevecidos. Nesses momentos, não importam erros e defeitos, como não importam os nossos feitos mais heróicos ou de maior dedicação: «apenas» nos amamos, e este «apenas» é tudo. Quem nos dera estar assim por toda uma eternidade…

Coisas do amor: faz-nos sair do tempo mas também faz o tempo passar mais depressa…

E quando caímos no tempo real, por muito que arregalemos os olhos, por vezes não vemos sombra do que passou.

É isso: o amor precisa de tintas garantidas contra o desgaste do tempo.

Quem diria que a receita se encontra num belíssimo poema atribuído a S. Paulo? Vem na 1ª Carta aos Coríntios, no capítulo 13, mas aqui apenas deixaremos uma espécie de sketch publicitário: é uma tinta que tudo suporta; não tem manchas de inveja nem de fanfarronice; tudo perdoa, e as cores são ainda mais festivas quando olha o bem dos outros; crê na bondade de todos os olhos e não perde a cor, por muito tempo que fique à espera.

Bem na linha do Cântico dos Cânticos (8, 6), não dizemos nós que a força da morte é superada pela força do amor? 

A 1ª leitura lembra-nos que, cerca de 600 anos antes de Cristo, teve lugar a grande reforma religiosa do rei Josias, contemporâneo do profeta Jeremias. Um rei que «agradou a Deus», mas que não evitou a tragédia: teimou em fazer frente ao rei do Egipto, quando este se preparava para atacar o reino da Babilónia. O cronista sublinha que Josias não soube ver o sinal de Deus na promessa do rei do Egipto de não batalhar contra o reino de Judá, se este ficasse calminho (2º Livro das Crónicas, 35, 22). Porque não é só nos profetas e sacerdotes «oficiais» que encontramos o olhar de Deus. Procurando olhar com os olhos de Deus, em tudo teremos maior discernimento do que é falso ou verdadeiro.

Josias morreu no combate, e poucos meses depois caía o reino de Judá, às mãos dos Caldeus. Começara o cativeiro de Babilónia. O «povo de Deus», que não tivera nem coragem nem a humildade da sabedoria para olhar nos olhos os profetas enviados por Deus, viu-se obrigado a procurar os olhos de Deus através do sofrimento de um «descanso forçado» de 70 anos, até ser libertado pelo edito de Ciro, um rei pagão. Só então é que o «povo escolhido» voltou a construir uma sociedade onde houvesse um templo incentivador da justiça: pois só quem «tem fome e sede de justiça» é capaz de um confiante “olhos nos olhos” com Deus (Mateus, 5, 3-12).

O autor da 2ª leitura fala entusiasticamente de Deus e de Jesus, o Cristo. A carta aos Efésios é considerada uma empolgada visão global da doutrina de S. Paulo. (O estilo leva os especialistas a concluir que não foi redigida por S. Paulo mas sim por um discípulo muito chegado, que usou o nome do apóstolo – no tempo, era um processo aceitável, manifestando apreço e garantindo o sucesso).

A carta enfatiza a novidade de Cristo: Deus relaciona-se connosco como um pai com os filhos e não como um patrão em cujas boas graças tentamos cair (religião não é comércio). Basta que os filhos se assumam como filhos, sem calar nem a revolta nem a confiança.

Os cristãos são referidos como já participantes da ressurreição e triunfo de Cristo (Efésios, 2, 6). Como acontecera com os cativos de Babilónia, o sofrimento tanto nos pode subjugar e aviltar como fazer-nos crescer e encontrar a sabedoria do olhar de Deus. Ao longo de todos os seus discursos e escritos, S. Paulo deixa-nos a impressão de alguém que tinha a honestidade de olhar a Deus nos olhos: mesmo quando perseguia os cristãos, levado pelo seu ardor religioso algo fanático (1ª Coríntios, 15, 9; Efésios, 3, 8); ou quando discordava de S. Pedro (Gálatas, 2, 11-14); ou ao apresentar-se, sem arrogância, como exemplo de um discípulo de Jesus (2ª Tessalonicenses, 3, 7-9); ou ainda no meio das aventuras mais espinhosas (1ª Coríntios, 4, 9-13). S. Paulo olhava para Deus como um filho, e com simplicidade não escondia nem defeitos nem virtudes. Como fariseu letrado que era, mantinha o entusiasmo do cronista (como o da 1ª leitura) desejoso de uma sociedade perfeita, sem castas sociais ou religiosas. E não se inibia de falar, «oportunamente e inoportunamente» (2ª carta a Timóteo, 4, 2), sobre essa pessoa extraordinária, que afinal, e contra certas aparências, era o Messias.

Olhar nos olhos é saber que temos a capacidade de sustentar o olhar de quem nos olha. É não ter medo dos «encontros de terceiro grau».

 É por isso que podemos olhar nos olhos quem olhou nos olhos a Nicodemos (Evangelho): nos olhos de alguém que amou como nós, sofreu como nós, morreu como nós... mas dando-nos «a extraordinária riqueza» da Vida (2ª leitura) que dá sentido a todos os acontecimentos da vida (cfr. 2ª carta a Timóteo, 2, 3-13).

Nicodemos veio de noite – mas não terá sido um acto de prudência para proteger a amizade? Na Bíblia, quantas vezes lemos que Deus se queixa de lhe dedicarem solenes festividades, bem à luz do dia, mas sem os olhos procurarem aquele para quem devíamos falar?

O evangelho atribuído a S. João cultiva especialmente o símbolo da luz. Aceitar Deus é não ter medo da luz. Só prefere as trevas quem não faz jogo limpo. Aceitar Deus é confiar no sucesso final de quem trabalha para que a humanidade não se envergonhe da maneira de gerir a sua história, aprendendo com os erros e fortificando-se com estes «encontros imediatos».

 

 20-03-2009


  Página anterior Página inicial Página seguinte