Liturgia Pagã

 

Safari à volta do tempo


1º Domingo da Quaresma (ano B)

1ª leitura: Génesis, 9, 8-15

2ª leitura: 1ª Carta de S. Pedro, 3, 18-22

Evangelho: S. Marcos, 1, 12-15

 

Rude ou suave, acolhedora ou destruidora, a natureza foi desde sempre um meio privilegiado para o enriquecimento da experiência religiosa. Na 1ª leitura, podemos ver como os antepassados do povo judeu sentiram Deus a interpelar os Homens tanto nas catástrofes como nas maravilhas da natureza.

O célebre «dilúvio universal» foi interpretado como castigo, como se Deus se tivesse arrependido de ter criado a Humanidade ao ver a injustiça humana. Porém, mesmo nesse texto antigo, Deus reconhece a força do Bem, por mais escondido que pareça na pessoa e na organização social, e declara solenemente que criou o Homem para existir para sempre. O seu anel ou «Arco da Aliança» até pode ser visto sempre que o sol vence o mau tempo... Ainda hoje, como desde o início da Humanidade, precisamos de descobrir o Espírito de Deus no mundo à nossa volta, onde há tempestades de amores e de ódios, de água e de fogo.

É a vez de S. Pedro, na 2ª leitura, dar o seu testemunho: aquele Jesus de quem ele gostava tanto (embora o tenha renegado ao ver as cosas virarem para o torto) era afinal a pessoa escolhida para nela Deus se revelar.

Contra muitas aparências, a cultura judaica percebeu que o Homem existe para ser feliz para sempre, embora Deus não pareça estar sempre connosco. S. Pedro precisou de chorar a fraqueza da sua amizade por Jesus, chorou a morte do seu Amigo, ficou destroçado pelo trágico fim de uma aventura empolgante, mas pouco a pouco descobriu o «arco da aliança» sobre a morte e o medo, descobriu o Espírito de Deus que sabe «escrever direito por linhas tortas» e que nos ensina a decifrar essas linhas, se quisermos aprender.

S. Pedro não deixou morrer o desejo de sabedoria com que seguia Jesus: e o Espírito da Sabedoria (ou Espírito Santo – são tudo expressões diferentes do modo como Deus está connosco) ensinou-o a ver Vida onde lera morte, a ver uma missão estimulante e incansável pelos tempos fora onde lera um fim trágico; ensinou-o a ver o mesmo Deus dos tempos de Noé e a tirar lições ao longo do tempo – porque o mais importante é o sentido que damos às coisas (mesmo hoje em dia, em que pretendemos exactidão factual nos relatos históricos). Cabe-nos a nós escolher «o compromisso de uma boa consciência».

E com a morte de Jesus, os discípulos aprenderam que o valor dele era a Vida própria de Deus, que se revelou especialmente nesse filho de um carpinteiro (e por isso também se usa a expressão «o Espírito de Jesus»).

A linguagem de S. Pedro está cheia do imaginário do tempo e não nos devemos prender a essas imagens, como as gerações futuras não se devem prender ao estilo do tempo de hoje: a história da Humanidade é uma história da aprendizagem para ler a vida com métodos de leitura sempre actualizados.

            No evangelho segundo S. Marcos, o mais primitivo, vemos como a Sabedoria ensinou aos evangelistas a importância do deserto na formação humana de Jesus como «Messias».

No deserto, a vida é dura e estamos expostos aos perigos dos elementos, das feras e do tropel das nossas ideias, sonhos e desejos. Na história dos símbolos, o deserto é o vazio no qual podemos encontrar a realidade única. Porque é estéril, sentimos melhor a presença de Deus. Porque é hostil, sentimos melhor a força de Deus. Porque tem miragens, ensina-nos a ser prudentes. No deserto, podemos encontrar o equilíbrio ou harmonia entre as nossas limitações humanas e a imensidão do projecto de vida que espera por nós.

O tempo da Quaresma convida ao esforço para criarmos pequeninos desertos ao longo do dia, onde aprendemos a discernir o que é fundamental. Quando deixamos que Deus nos leve ao deserto é para nos ensinar o que é a Paz e como a devemos construir – estimulados pelo exemplo de Jesus, que desafia todos os homens, de todos os tempos e lugares, a querer a sério a justiça. Porque o Espírito de Jesus é o mesmo Espírito que presidiu à criação do mundo e se delicia em estar com os seres humanos (como se lê, por exemplo, no Livro da Sabedoria, 1-9, e no Livro de Ben Sira, 1 e 24). É o mesmo Espírito que nos convida a passar 40 dias (número simbolizando expectativa, preparação, e a plenitude da riqueza do tempo de vida de uma geração) a meditar sobre esse Jesus humilhado e crucificado e que está vivo como Deus é vivo, desafiando-nos, «até ao fim dos tempos», a defender a nossa própria dignidade. É a humanidade inteira que está em causa, no chamado «mistério da ressurreição»: Deus apresenta-se como garante do sentido da nossa vida.

O tempo do deserto é símbolo de depressão. Mas se o vivermos com o espírito aventureiro de um safari, encontramos não o tempo esfacelado dos relógios mas a solidez do «tempo sem tempo» que sustenta o universo; o tempo de uma visão sem obstáculos, porque não somos obstáculo ao «sopro de Deus» (significado real da expressão «espírito santo»), que liberta a nossa energia e sabedoria, sem cair nos calhaus do deserto ou nas areias movediças.

 

 27-02-2009


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