Liturgia Pagã

 

Emprenhar pelos ouvidos

 

15º Domingo do Tempo Comum (ano A)
1ª leitura: Livro do profeta Isaías, 55, 10-11
2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Romanos, 8, 18-23
Evangelho: S. Mateus, 13, 1-23


A sabedoria popular atesta este espantoso milagre de ouvidos férteis assim... Semente, nem vê-la: abalou com o vento, o mesmo vento que encheu os balões dos Santos Populares, espalhando beijos e cantigas. Mas há quem se queira enganar e enganar os outros, teimando que é o pai dos manjericos. Porém, foram-se as festas e tudo murchou. Se cantaram de galo, não encontramos galinhas poedeiras.

Há sim palavras férteis. Só que não emprenham de um dia para o outro e raramente dão nas vistas. Lembram as «palavras grávidas» de Paulo Freire: não valem pelo som que produzem, mas pela vida que provocam. De pouco interessa discutir as palavras: só engravida quem tem acesso à vida e não tem medo das dores de parto.

O psicólogo poeta Evaristo de Vasconcelos viu um dia a morte como o parto dolorosíssimo em que cada um de nós é a mãe geradora de si próprio.

Precisamos de tratar a morte como semente de vida. As palavras que ouvimos ao longo da nossa vida, as palavras que enchem e encherão os tempos do universo... são a expressão das dores e alegres esperanças na vida da Humanidade.

«A mulher em dores de parto sente a sua hora como uma hora triste. Mas logo que dá à luz, esquece as suas dores, tamanha é a alegria de ter trazido ao mundo mais um ser humano» (João, 16, 21).

O profeta Isaías, ao falar da palavra de Deus («o vento», sopro ou espírito de Deus), vê-a dando a volta à terra inteira mas nunca em vão: será «como a chuva que desce do céu e não volta à sua origem sem ter fecundado a terra» (1ª leitura).

A palavra de Deus é uma semente, contou Jesus Cristo. Deus semeia a semente da vida, mas a vida não é a semente. Quem julga ter a vida porque tem a semente, apenas emprenhou pelos ouvidos. No lugar das sementes, encontrará pó seco.

Porque é preciso vida para gerar vida: «e àquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado» (Evangelho). Este estranho provérbio, que aparece noutros lugares do evangelho atribuído a Jesus (como na parábola dos talentos, Mateus, 25, 28-29), serve para nos lembrar que, se não queremos investir na promoção da vida, não merecemos sequer ficar com o que nos foi dado de início. Por muita razão que tenhamos, não podemos cruzar os braços e entregar-nos à amargura estéril. É o suor da nossa vida que aduba a semente da vida.

A quem não se quer esforçar, aplica-se o comentário de Jesus, no evangelho de hoje, citando o profeta Isaías: «ouvindo ouvireis, mas sem compreender; olhando olhareis, mas sem ver».

Como de costume, S. Paulo leva-nos ao encontro dos conflitos da época, com palavras tão grávidas que é difícil descrever o torvelinho de vida que arrastam. S. Paulo é um homem angustiado perante todas as manifestações de decadência: não só no ser humano e na organização social como também na própria natureza, tão frequentemente inimiga do ser humano, como este é por sua vez inimigo da natureza.

As suas cartas desenvolvem frequentemente a oposição «carne-espírito» (ver janela no fim). Esta oposição tem sido interpretada com pessimismo por parte de muitos líderes espirituais do Cristianismo, como se descarregassem a sua frustração condenando a vida presente, sobretudo «os prazeres da carne» (seriam ou serão freudianos avant-la-lettre?). A exegese actual já sabe ler nessa díade a angústia de uma vida que morre, e vivida num mundo frequentemente hostil, entre pessoas ardilosas, incongruentes, malvadas e inconscientes de que estão sujeitas à morte, elas que jogam com a morte de tantos outros. A vida e morte de Jesus Cristo, não foram elas sentidas com a maior tristeza e frustração pelos discípulos de Emaús? Com Jesus morto daquela maneira, sentiram bem como tudo acaba e, o que é mais doloroso, como tudo o que é bom parece acabar mais depressa.

Por isso, diz S. Paulo que não vale a pena «semear na carne», semear na corrupção. Porém, o espírito é a vida que não morre, é a vida que se afirma continuamente mesmo entre a destruição. É a vida que se afirma na própria «carne», cobrindo de esperança as nossas dores e os nossos prazeres: uns e outros só valem enquanto são vida e uns e outros simbolizam a alegria de quem colhe o fruto da sementeira trabalhosa (João 4, 36-38), num novo céu e numa nova terra onde a dor e a injustiça foram superadas.

A tradução desta carta de S. Paulo é muito discutível: no texto do missal dominical, Deus parece ser o autor da corrupção, apenas deixando-nos nos bolsos o rebuçado da esperança. Ora o texto original é mais um desenvolvimento da oposição carne-espírito: os seres humanos é que não quiseram investir bem na criação e provocaram uma catadupa de esquemas de morte. Apesar disso, a vida não deixa de estar presente, persistindo no seu trabalho paciente e – esperança fundamental – vencedor.

Deus é vida – e «se Deus está por nós, quem pode alguma coisa contra nós?» (Carta aos Romanos, 8, 31). Não pode haver razão para nos resignarmos à morte. Nem faz sentido que a natureza inerte seja condenada à destruição. S. Paulo espera no triunfo da beleza do universo, no esplendor da «carne», num «corpo livre» (2ª leitura). Não faz sentido que a maravilha do universo e da vida seja destruída com um delete. Ou que essa maravilha, percebida por todos quantos a querem sentir, não caminhe para o seu esplendor. Porém, tal só é possível se não fugimos perante as dores de parto.

Não podemos emprenhar demasiado depressa. A terra só é boa se a preparamos cuidadosamente: então, sim, o fruto vale mesmo a pena.

 

A «carne» (grego sarx) e o «espírito» (pneuma), nos escritos de S. Paulo, representam a plena dimensão do ser humano, em luta permanente perante a sua consciência de finitude, de ideais, do bem e do mal, do prazer «infantil» contra o prazer «adulto» («adulto» significa «alimentado», «crescido»). Junto com os conceitos de corpo (soma) alma (psyche), mente (nous) e coração (kardia), designam mais propriamente modalidades da relação do ser humano com os seus semelhantes, com o mundo em geral e com Deus. O corpo designa o «eu visível» (um cadáver «não é corpo»), o «eu corpóreo» (no pensamento do Antigo Testamento, a díade corpo e alma é designada por um único termo), que pode seguir ou não as suas tendências naturais (que a «mente» pode ajuizar como boas ou más); «carne» designa a natureza frágil da humanidade, que por si está longe da realidade divina ( «seguir a carne» implica não se importar com Deus, não tirando proveito da força divina); o termo de «alma» (psyche) refere a vitalidade, inteligência e vontade da pessoa, sublinha a «vida» da carne, mas não abarca o conceito de «espírito», que aponta para a união do ser humano com a «Vida» (ou Espírito) de Deus; «mente» e «coração» designam sobretudo a nossa capacidade de emitir juízos, como animais conscientes, cabendo ao «coração» a dimensão afectiva. Porém, os próprios peritos reconhecem a grande dificuldade de definições claras. O que sobressai é justamente a complexidade do ser humano, cuja actividade física e mental regista a extraordinária escala de valores em que se pode mover numa luta contínua, entre a dor e o prazer.
 

 

 11-07-2008


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