Liturgia Pagã

 

Cuidado com este menino

 

2º domingo do Advento (ano A)

1ª leitura: Livro de Isaías, 11, 1-10

2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Romanos, 15, 4-9

Evangelho: S. Mateus, 3, 1-12


São densos, os textos de hoje. Cheios de segundos sentidos, que ao longo dos séculos urdiram um «túnica sem costura» como aquela que foi sorteada aquando da crucificação de Jesus – esse menino que muito em breve recordaremos sossegado e contente no aconchego do regaço da mãe. Toda a Bíblia, e particularmente o Antigo Testamento, ganha mais sentido e profundidade ao ser posto em contra-luz com o Novo Testamento. A missão de Jesus aparece iluminada desde o Livro do Génesis, e rasga, nesses textos sagrados, um horizonte só agora perceptível. A essa «túnica sem costura» se referem alguns exegetas, ao afirmarem que «a Bíblia se explica pela Bíblia».

Todos os bebés despertam o nosso afecto, com o encanto da sua fragilidade. Mas até do Jesus mais crescido e adulto, continuamos a ver sobretudo o filho querido numa família tranquila ou o homem bom, cheio de palavras e de acções de consolação para todos.

E não é o que Isaías nos parece querer dizer? Quando brotar o rebento prometido à descendência de Abraão e de David, «o bezerro e o leãozinho andarão juntos e um menino os poderá conduzir». Isaías continua, nesta e noutras passagens, a descrever enlevado uma suspirada «idade de oiro», quase com as mesmas imagens que o poeta Virgílio utilizará para a descrever, poucos anos antes do nascimento de Jesus, mas aplicando-as a um desejado herói romano (Écloga IV das Bucólicas). Sempre todas as culturas sonharam com um salvador.

Mas já o evangelho do domingo passado nos apresentava um Jesus severamente juiz. E hoje, S. João Baptista fala do Cristo forte, que «tem a pá na sua mão: há-de limpar a eira e recolher o trigo no celeiro; mas a palha, queimá-la-á num fogo que não se apaga». Os próprios escribas e fariseus, que não «praticavam as acções correspondentes ao arrependimento» que apregoavam hipocritamente, sendo assim responsáveis pela «cegueira» do «povo escolhido», são visados com palavras duríssimas, de teor escatológico, anunciando um julgamento que se aproxima continuamente.

Porém se atentarmos bem nas leituras, vemos como Isaías só fala da «criança de leite que brincará junto ao ninho da cobra» e do «conhecimento do Senhor que encherá o país», depois de apresentá-la como um adulto de sabedoria e de fortaleza e que, «animado do temor de Deus, não julgará segundo as aparências»: «julgará os infelizes com justiça e com sentenças rectas os humildes do povo. Com o chicote da sua palavra atingirá o violento e com o sopro dos seus lábios exterminará o ímpio». Quando o fará? Desde sempre, desde então, desde o nascimento de Jesus, agora e até «ao fim dos tempos». «O Deus da paciência e da consolação» (2ª leitura) dá-nos o exemplo de paciência para com a liberdade humana mal administrada e de consolação pelas conquistas da justiça e do amor. O significado principal de «paciência», no Novo Testamento, é de «perseverança» nos tempos bons como nos tempos maus, quando elogiados e bem tratados, e quando humilhados e perseguidos. Quantas vezes não falará Jesus desta paciência ou «fidelidade» de Deus?

A 2ª leitura aparece muito fora do seu contexto: S. Paulo estava preocupado com as diferenças de cultura e do conhecimento da nova fé, entre os cristãos. Os que tinham uma fé mais adulta, mais fundamentada, não deviam perturbar a fé dos mais “simples”. Por isso fala do exemplo de Jesus, que passou a sua vida entre os judeus, provando assim a «paciência» de Deus com o «povo escolhido»; mas não se esqueceu de falar aos “pagãos” e de lhes prometer o conhecimento da verdade e a salvação suspirada – aliás, quase no versículo seguinte, cita a passagem da leitura de Isaías: «Virá o rebento de Jessé, que se levantará para governar as nações: é nele que as nações hão-de pôr a sua esperança».

Mas os violentos sofrerão violência, e os «ímpios» (os que não têm o afecto de bem querer) são como gente sem terra sólida, que um sopro dispersará.

O «temor de Deus» (a consciência da grandeza inimaginável do seu amor) leva-nos à verdade e ao «conhecimento do Senhor». Do nascimento à morte, a vida de Jesus é identificada a uma palavra de amor e de julgamento. Só o amor infinito pode julgar o amor – e só rejeitará a quem não estiver para amar (como se vê na parábola dos talentos).

Todo o poder humano de emitir juízos, de julgar, é reflexo da pura presença da Verdade divina. É próprio do Homem julgar, e a correcção do seu juízo depende da familiaridade com que se aproxima da Verdade. Não custa pegar num menino ao colo? Mas cuidado com este Menino…

 09-12-2007


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