Liturgia Pagã

 

Quem viu por aqui um homenzinho baixinho?

 

31º Domingo do tempo comum (ano C)

1ª leitura: Livro da Sabedoria, 11, 22- 12, 2

2ª leitura: 2ª Carta de S. Paulo aos Tessalonicenses, 1, 11-2,2

Evangelho: S. Lucas, 19, 1-10

 

Cada vez mais nos medimos em centésimos de segundo ou de milímetro ou pelo número de linhas que escrevemos ou que outros escrevem sobre nós – para não falarmos dos meios de informação que têm o poder de nos transformar em heróis, pelo número de boas (ou más!) façanhas. E que dizer das medidas da mulher «bem feita», do «senhor músculo» e das estatísticas tão manipuláveis ao sabor do «político mais musculoso»?

Esta situação, só por si, requeria uma boa reflexão, pois todos sentimos que alguma coisa está errada, mas sem sabermos exactamente o que devemos e podemos mudar. Este problema é um exemplo de como a nossa grandeza e a nossa pequenez andam sempre juntas. «À imagem e semelhança de Deus», somos, como Ele, um mistério. Mas por isso Deus não se deixa enganar com as medidas humanas e manifestações de honrarias. Quando o profeta Samuel procurava um homem bom que substituísse o rei Saúl, ficou muito impressionado com um dos irmãos do futuro rei David. «Mas o Senhor disse a Samuel: Que não te impressione o seu belo aspecto, nem a sua alta estatura... o homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração» (1º livro de Samuel, 16, 7). E escolheu o irmão mais novo, que andava no monte com os rebanhos.

Como era pequeno Zaqueu, chefe de cobradores de impostos! Mas por ter consciência da sua pequenez, não teve vergonha, apesar do seu posto, de subir a uma árvore para ver Jesus.

Surpresa: para escândalo de muitos que se julgavam “os bons”, Jesus faz-se convidado para casa desse «pecador» – que não podia competir, quanto a «boa figura», com alguns dos grandes figurantes que mais encobrem Jesus em vez de abrir caminhos de encontros. Mas Jesus é bom caçador… e acertou-lhe em cheio entre os ramos da árvore…

Outra surpresa: Zaqueu não se limitou a receber bem a Jesus – modificou radicalmente a sua vida. Bem se aplicam citações das outras duas leituras: «que o teu  poder, ó Deus, nos ajude a realizar os bons propósitos – ó Senhor que amas a vida!»

O texto de hoje do Antigo Testamento é uma pequena maravilha: o autor já compreende a inspiração de um Deus que não é feito à medida dos homens! É igualmente um dos profundos textos bíblicos sobre a experiência do mal. O ser humano sente o mal porque sente que não consegue experimentar a plenitude do bem e da vida – experimentando apenas a luta pelo bem e a luta pela  vida.

O tema da salvação tem uma importância fulcral na tradição judaico-cristã. Todos os grandes mitos e religiões apresentam o ser humano como lutando por atingir o nível de perfeição que sente pertencer-lhe originariamente, contra ou com a ajuda de seres divinos. Os termos usados na Bíblia traduzidos por salvação evocam sobretudo a ideia de libertar e proteger, no sentido quer físico quer espiritual ou moral.

A grande surpresa é a salvação, de que nos fala Jesus e a que se refere já a 1ª leitura. Uma salvação que já chegou, com a manifestação do amor de Deus em Jesus (carta de S. Paulo a Tito, 2, 11-14 e 3, 4-7), mas que só é efectiva na medida em que a humanidade colaborar livremente na preparação do «dia do Senhor».

Note-se que a expressão «dia do Senhor», na tradição judaica significava a grande manifestação de Deus a toda a Humanidade e ao Universo inteiro; o cristianismo fala da segunda vinda de Jesus Cristo, mas esta «vinda» não pode ser entendida temporalmente senão como a nova situação de encontro com Deus, que Jesus prometeu com a sua «ressurreição»: a «vinda do Espírito Santo» é este grande encontro com Deus, que se vai efectuando enquanto o mundo for mundo.

Com Jesus Cristo, temos o exemplo da união perfeita do Homem com Deus, do Homem inequivocamente aliado ao «Senhor que ama a vida», «que ama tudo quanto existe e não detesta nada do que fez» (1ª leitura). O nosso universo deixou de ser apenas o gesto criador de Deus: com o surpreendente Jesus Cristo, manifesta como a nossa liberdade pode agir em sintonia com o próprio criador, promovendo o amor, a justiça, a beleza, a verdade, e descobrindo os traços da Sua riqueza nas maravilhas da natureza. É todo um mundo de infindas potencialidades de que podemos e devemos dispor, formando novas combinações, evitando a destruição, e gerando um novo mundo de beleza e surpresa «à nossa imagem e semelhança» (pergunta impertinente: como é que queremos ver retratada a nossa criatividade e inteligência?).

Porém o judeo-cristianismo concentra-se num acto radicalmente livre de Deus: Ele quis intervir directamente na nossa história humana, para criar um novo tipo de relação entre Deus e o Homem, em que este é livre de participar ou não. No judeo-cristianismo, o Homem não é apenas um ser que pode especular sobre a divindade: é um ser que pode dialogar com Deus, porque Ele quer gratuitamente surpreender o Homem com o seu amor infinito.

Doravante, nós temos connosco o mais poderoso dos aliados. E como diz S. Paulo: «se Deus está por nós, quem nos pode vencer?» Enquanto lutarmos pela justiça, pela beleza e pela verdade, colaboramos no plano criador para que Deus nos convida. Sem o nosso compromisso, a salvação não se realiza. A união perfeita entre todos os seres humanos e destes com Deus vai-se realizando com altos e baixos mas com a firmeza e esperança que Deus põe ao nosso alcance. E a grandeza dos seres humanos, uma grandeza para que não há medida, é não se furtar à surpresa dos convites de Deus, e ter a coragem de repor a justiça, mesmo contra os interesses egoistas, pautando-se futuramente pela aliança e coerência entre o bem próprio e o bem comum, um bem onde a beleza geradora de maior qualidade de vida nunca pode faltar.

 04-11-2007


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