Liturgia Pagã

 

Estranha forma de vida

 

23º Domingo do tempo comum (ano C)

1ª leitura: Livro da Sabedoria, 9, 13-19

2ª leitura: Carta de S. Paulo a Filémon, 9-17

Evangelho: S. Lucas, 14, 25-33

 

O que é «seguir»? Imitar um «mestre»? Mas quem nos garante que o mestre é bom e que imitar é uma coisa boa?

Desde que há memória, houve pessoas fora do comum, dispostas a conquistar os lugares mais altos nos “banquetes da vida”, apresentando-se como heróis poderosos e salvadores de povos inteiros. Alguns utilizaram a força e até o terror, para serem reconhecidos como seres superiores.

Houve também quem visse a sua autoridade naturalmente reconhecida, tal era a sabedoria manifesta nas palavras e no seu viver, a coragem e fidelidade ao projecto de espalhar o bem, a maneira autêntica de amar a todos os outros e a clareza do seu falar.

Os primeiros impõem padrões de comportamento aos seus seguidores e só se importam com que estes colaborem eficazmente na trama do poder.

Os segundos não impõem padrões de comportamento nem imitações servis. Preocupam-se “apenas” com que os sentimentos sejam orientados pela busca do bem e lançam sem rodeios o aviso: quem se quiser comprometer neste empreendimento, terá que dar provas de coragem e fidelidade ao projecto. Para isso, tem que ponderar honestamente em que medida se pode dedicar a um tipo de vida tão exigente. Pois, se apregoam grandes objectivos e não são capazes de os levar a cabo, serão a troça de toda a gente.

Jesus Cristo pertence ao segundo tipo. Convida todos os homens a escolher a verdade, o bem e a luz, abandonando corajosamente as trevas em que se escondem as jogadas sujas. Não obriga ninguém, não traça nenhum tipo de vida: ser casado ou celibatário, rico ou pobre, importante ou apagado na sociedade... nada impede de trabalhar no mesmo projecto. O que é fundamental é ter um coração sincero e «amar a Deus sobre todas as coisas». Assim, todos os prazeres da vida são bons se nunca põem em perigo a procura incansável do que é bem, e são mesmo necessários para mais facilmente espalhar o bem.

O maior escândalo é quando se descobre a mentira (quando não a perversidade) daqueles que afirmam publicamente dedicar-se à luta pelo bem, pela verdade, pela “transparência”. Não só os políticos é que estão em foco. Todos nós temos por dever natural ser educadores uns dos outros, para que todas as nossas forças positivas se manifestem e se unam como um grande exército para derrotar a injustiça. E aqueles que se consagraram religiosamente ao projecto de Jesus têm ainda mais responsabilidade de mostrar, nas palavras e no agir, a exigência fundamental de uma atitude revolucionária perante a vida.

O tema do seguimento é fulcral na organização da sociedade e no projecto comunitário de perfeição. Em geral, os grandes mestres são aqueles que ajudam o «discípulo» a descobrir o seu caminho pessoal e a descobrir o método de lhe ser fiel sendo feliz. Quando as instituições e os mestres não são de qualidade, afogam os outros em prescrições – erro que Jesus já condenava nos fariseus. Ao longo da história cristã, a «imitação de Cristo» foi entendida das maneiras mais abstrusas e até perniciosas, embora de mistura com boas intenções e reflexões profundas. Chegou-se a elaborar tabelas dos «estados de perfeição», como se garantissem a reserva dos melhores lugares no grande «banquete» (que para Jesus é a imagem da união segura e feliz da humanidade à volta de Deus).

«Nisto reconhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros». O amor nunca pode impor – mas convence. A sabedoria do amor ajuda-nos a distinguir o bem do mal, o essencial do pouco importante. Os acontecimentos da nossa vida são como que “provocações” à nossa força e sabedoria de amar, o que implica a tal inter-educação, que às vezes deixamos de praticar por vergonha ou falta de humildade. É preciso ser capaz de «renunciar a todos os bens» puramente egoístas, para nos podermos dedicar à gestão prudente das nossas capacidades, em ordem a construir uma sociedade cada vez mais feliz. E quando os nossos pais, irmãos, filhos, amigos e inimigos, virem que temos coragem para carregar com a cruz que leva a uma vida melhor (veja-se o evangelho), todos eles virão ter connosco para nos ajudar e congratular (a expressão semítica «odiar pais, irmãos…» para seguir Jesus é um abanão às relações humanas, que só serão sólidas e benfazejas se não adormecem na mediocridade). E assim, a morte dos nossos bens egoístas foi a semente que se multiplica em bens muito mais consistentes e frondosos, com o fruto da alegria tanto maior quanto mais partilhada.

2007.09.09

 

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