Liturgia Pagã

 

O padre mudo

Domingo da SS. Trindade (ano B)

1ª leitura: Livro do Deuteronómio, 4, 32-34.39-40

2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Romanos, 8, 14-17  

Evangelho: S. Mateus, 28, 16-20

 

Conta uma historiazinha popular que um sacerdote, no momento da homilia, avança para o púlpito e declara: “Celebramos hoje o maior mistério, o da Santíssima Trindade; e como não percebo nada disto, não vai haver homilia”. Foi honesto como poucos. Porém, se é verdade que a existência do mundo e a vida são misteriosas, não é por isso que deixamos de nos interrogar, de recolher experiências e de especular. Mas se queremos ser honestos como o «padre mudo», só podemos falar deixando bem claro: (1) por muito que andemos à volta com Deus, só conseguimos mais interrogações; (2) é verdade que muita gente, grandes pensadores e grandes místicos, nos enriqueceram com a sua «experiência de Deus», mas todas estas experiências são necessariamente muito limitadas; (3) por isso, a maneira mais profunda de falar sobre Deus acaba por ser a da inspiração poética; (4) se teimamos em procurar o sentido destas interrogações, será  com a ingénua satisfação de que esse mistério impenetrável nos cativa como um pai cativa o bebé ao colo.

Mistério, pode ler-se em bons dicionários, é o que desperta curiosidade devido ao secretismo e carácter inexplicável (definição que interessaria discutir). Provém do radical indo-europeu «mu», imitativo de um som inarticulado. Daí provém «mudo»; em inglês «mum» (silencioso) e «mumble» (produzir sons imperceptíveis); «murmurar» é outro verbo onomatopaico provavelmente da mesma origem; em grego, «myo» significa fechar-se, fechar os lábios e os olhos («miopia»). «Mistério» tornou-se o conceito central de grupos esotéricos e do discurso sobre assuntos extremamente difíceis de abordar ou transcendentes.

Como todos os conceitos, pode adquirir sentido pejorativo. No entanto, exprime bem o sentimento de que somos mais do que aquilo que sentimos e sabemos – daí que sejamos «seres insatisfeitos» – e de que estamos ligados à razão de ser de todas as coisas, à raiz de tudo o que existe. O pensamento e os rituais religiosos procuram dar a sensação de que não estamos perdidos no meio do mistério e de que até nos podemos «sentir em casa».

O dogma da Trindade só ficou formulado no s. IV e a festa litúrgica só foi introduzida no s. XIV. O conceito de «trindade divina» ou de «Deus trino» certamente que continuará a ser objecto do esforço humano da reflexão sobre Deus e especificamente de como conceber a relação de Jesus Cristo com Deus.

Este esforço intelectual, todavia, não será atrevimento injustificado? Com efeito, parece querer ir além do mistério tremendo daquele Deus que se apresentou liminarmente (Livro do Génesis, 3, 14) como «Eu sou aquele que é» – aquele que não pode ser explicado. Nem se pode entender claramente que falar de Deus, do Senhor (Jesus) ou do Espírito, sejam outras tantas formas de falar sobre o encontro com o Deus único.

Ter fé em Deus (à semelhança de ter fé em quem amamos) é reconhecer um valor tão supremo que a própria razão o admite como acima da sua capacidade de análise. Contudo estas tentativas de análise têm que seguir os requisitos da razão. Deus está acima da razão, mas não contra a razão. Por isso é que é perigoso cair na tentação de impor meras especulações como verdades absolutas – várias cisões no cristianismo e desentendimentos com o judaísmo e islamismo provêm de se querer defender uma definição de Deus, muitas vezes usando a violência, em vez de defendermos a união à luz de Deus.

Do ponto de vista religioso, as tentativas racionais só têm valor na medida em que nos ajudam a aproximar de Deus como «o grande parceiro» para a vida, como aquele que, no Livro do Êxodo (3,12) se apresenta: «Eu sou o que está contigo».

Há quem diga que a ideia de «Trindade» lembra que Deus é a mais alta expressão do dinamismo do amor. Dizer isto é afirmar que a força do amor tem forma divina, mas nada nos diz nem poderia dizer sobre a «estrutura interior» de Deus. «Deus é amor» mas o amor é «inquieto» e muito para além das nossas capacidades de definição. O maior bem do amor é poder senti-lo sempre novo (e sempre fugidio…).

E quando se está mesmo bem, não é verdade que até apetece ficar «mudo»?

31-05-2015


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