Liturgia Pagã

 

«Custa tanto ir para o céu...»

Domingo da Ascensão (ano B)

1ª leitura: Actos dos Apóstolos, 1, 1-11

2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Efésios, 1, 17-23

Evangelho: S. Marcos, 16, 15-20

 

Foi o desabafo de alguém no leito de morte. Não vale a pena iludir este sofrimento, este espinho que a todos fere ao longo da vida. A nossa cultura ainda não conseguiu a partilha clarividente do sabor da vida, de tal modo que a vida sofra a morte como um acto de confiança no nosso trabalho e no dos vindouros, uma confiança manifesta na alegria com que construímos um mundo cada vez mais humano.

As três leituras de hoje focalizam um tema central: a Jesus custou muito morrer, sentiu-se abandonado e até como que frustrado. Mas ele próprio sublinhou a confiança no Pai «que é um Deus não dos mortos mas dos vivos» (Lucas, 20, 38); e que deixaria o tipo de existência em que vivemos, para viver a única existência plena, que é a de Deus, uma existência que se pode definir como plenitude da alegria (Mateus, 25, 21); e que só depois de viver glorificado junto de Deus é que o seu Espírito manifestaria a sua força em todas as pessoas que o quiserem receber. A ideia de ascensão é o desenvolvimento da ideia de ressurreição. A festa da Ascensão é o nosso modo de celebrar «como Jesus Cristo vive». E os 40 dias depois da Páscoa até à Ascensão simbolizam o tempo da vida humana, em que Jesus Cristo continua presente.

Porém, as «histórias» sobre Jesus, nos evangelhos e Actos dos Apóstolos (sobretudo depois dos relatos da «paixão»), de modo nenhum se devem levar à letra: divergem entre si, com imagens e descrições cheias de simbolismo, de acordo com a perspectiva dos redactores e com o estilo da época. A palavra «céu» e sobretudo «terceiro céu» era uma maneira respeitosa de referir a dignidade inacessível de Deus. O verbo grego utilizado por S. Lucas significa que Jesus «foi levantado» ao nível da glória divina, da intimidade com Deus, o que é simbolizado por «ficar à direita de Deus».

Inaugurou-se assim a era do «baptismo no Espírito Santo»: aceitando com prazer e naturalidade a força de Deus, tornamo-nos capazes de mudar uma vida mesquinha numa vida que valha a pena. A «salvação» só é autêntica, se não ficarmos «a olhar para o céu», à espera de que «o herói» nos salve. Compete-nos lutar por tornar cada vez mais real «o céu na terra», com programas de justiça social, de bem-estar e de desenvolvimento pleno da personalidade, já nesta vida. Felizmente há gente que não arreda pé nem se vende, para que as relações humanas não sigam o critério da exploração e opressão. Sem encontrarmos testemunhos destes, a esperança não ganha raízes.

Jesus Cristo não veio ao mundo para «subir ao céu», como se estivesse farto desta vida (embora razões não lhe faltassem…). Veio sim para marcar presença na terra. Durante a vida, chamou a atenção para a hipocrisia daqueles que só se preocupam com «olhar para o céu» – acabando muitas vezes por cair nos buracos da terra… e arrastar na queda a muitos outros. Mas também mostrou que não receava entregar o projecto de um «reino de justiça» nas mãos dos «Homens de boa vontade».

A qualidade da vida (na simbiose espiritual e material) só é garantida se houver quem a viva a sério. Ora ligar-se à vida é ligar-se a Deus: é um adentrar-se no mistério de Deus, que é o mistério da existência de todas as coisas, da vida e da morte, do bem e do mal e do mundo espantoso dos sentimentos. E ligar-se a Deus é o verdadeiro «subir ao céu». Todos os dias, aos poucochinhos, podemos pois ir «subindo ao céu», na vida dos negócios, das festas, viagens e sobretudo dando aos outros muita atenção e carinho. Certos também de que tudo na vida, por muito prazer ou dor que nos dê, traz a garantia de substituição por um artigo de qualidade muito superior…

17-05-2015


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