Liturgia Pagã

 

«O menino de sua mãe»

Baptismo do Senhor (ano B)

1ª leitura: Livro de Isaías, 42, 1-7 – ou 55,1-11

2ª leitura: Actos dos Apóstolos, 10, 34-38 – ou 1ª carta de S.João,5,1-9

Evangelho: S. Marcos,1,7-11

 

Já vão longe os tempos do soninho descansado ao colo da mãe e das canções de embalar ao som abafado do ronronar do serrote do pai. Passou o tempo das brincadeiras, das escapadelas de casa e dos convívios descomprometidos. Chegou o tempo de viver o doce e o amargo de quem constrói com pertinácia o tempo e o lugar da sua missão. Deu-se conta de como era superficial a maneira com que «o povo eleito», a que pertencia, vivia uma cultura de espiritualidade tão rica – correndo o risco de murchar ou ser transformada em códigos sem alma nas mãos de dirigentes gananciosos. Ouviu o grito dos profetas: «este povo louva-me com os lábios mas o seu coração está preso à injustiça».

Optou por caminhar com a gente simples que ganhava o dia a dia, mas sem receio de dialogar com os grupos de sacerdotes, de sábios e de poderosos. Muitos desses não têm coragem para caminhar com a gente simples, e por isso não são capazes de dar respostas adequadas aos problemas da gente que bem os vive; e muito menos são capazes de elaborar projectos alicerçados na vida real, sob a luz da procura da verdade e da justiça. Por isso se preocupou com falar suficientemente claro para que na vida prática saibamos discernir o bem do mal.

Como muitos judeus preocupados com a verdade, a justiça e o porquê da vida, pôs-se a caminho do rio Jordão, onde um grande profeta, chamado João, baptizava a quem quer que se aproximasse: não era um rito para filiados, mas um sinal público de querer mudar para melhor, como quem se lava para vestir roupa nova.

O profeta João sentiu em Jesus a força do Espírito de Deus. E reconheceu que em Jesus surgia um novo tipo de «baptismo», o da comunhão com esse espírito da Verdade e Justiça. Jesus reconheceu no Baptista o homem aberto a Deus corajosamente, e junto dele declarou que os projectos só têm êxito se se cumpre a justiça (segundo o relato de Mateus) dos meios humanos disponíveis. Este é que é o sinal da «junção de forças» de Deus e dos Homens. Aparentemente era um quadro tão simples, que as primeiras memórias cristãs sentiram que era apropriado embelezar o cenário com sinais celestes e intervenções divinas.         

Depois… submeteu-se a vários e agrestes retiros espirituais, para medir as forças, joeirar as ideias e eliminar todas as normais resistências humanas à claridade exigente de Deus – mas que pode ser cativante.

Precisou de cansativas caminhadas pelos campos e cidades, atento à ignorância, à sabedoria, à maldade e visões rasteiras. Não «baptizou» ninguém, não forçou ninguém a segui-lo nem a converter-se: de um modo simples e profundo, falava de como Deus está connosco e de que basta «arrumar a casa» para nos encontrarmos com Ele, e com Ele ganhar coragem para construir a cidade de todos os Homens.

Precisou de enfrentar o desprezo, a inimizade, a perfídia, a crueldade, a par das mais originais manifestações de afecto e de entusiasmo, por parte de toda a «classe» de pessoas. Mais tarde, chorou amargamente quando sentiu a violência e a solidão, longe das canções de embalar e dos ruídos familiares.

Para tudo isto «o menino de sua mãe»?

Mas como «menino de sua mãe», é que aprendeu como são deveras importantes os regaços carinhosos – verdadeiros «castelos interiores», donde partimos reconfortados para aventuras por vezes temerárias.

Se Jesus não tivesse aprendido a dar passos decididos, para anunciar que a vida dominada pelo medo da dor e da morte não é vida, que a vida dominada pelo medo da verdade e da justiça não é vida, que a vida dominada pelo medo da alegria e do prazer não é vida… quem hoje em dia se importaria ainda com este «menino de sua mãe»?

04-01-2015


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