Liturgia Pagã

 

«Perceber da agricultura»

17º Domingo do tempo comum   (ano A)

1ª leitura: 1º Livro dos Reis, 3,5-12

2ª leitura: Carta aos Romanos,8,28-30

Evangelho: S. Mateus,13,44-52

 

Quem não lembra a história do velho pai que, na hora da morte, decidiu confiar um segredo aos filhos calaceiros? Que tinha enterrado um tesoiro no campo, mas não se lembrava onde. Os filhos, é claro, mal enterraram o pai, deixaram-se da calacice e escavaram o campo todinho. Mas tesouro? Nem vê-lo. Qual não é, porém, o espanto deles na manhã seguinte: o campo transformara-se num riquíssimo prado!

O velho pai «percebia mesmo da agricultura» (em tempos passados, quem gostasse de dar sentenças sem experiência arriscava-se a ouvir: «vê-se mesmo que não percebes nada da agricultura!»).

Não consta que Jesus tivesse grande prática agrícola, mas uma coisa é certa: no que disse e no que fez, «percebia da agricultura». Nem os inimigos lhe negavam a sabedoria. As parábolas, próprias de uma civilização rural, sublinham como vale a pena estar atento ao que é mais valioso e coordenar o trabalho para garantir uma vida cheia. Precisam-se decisões ponderadas e firmes. Por alguma razão, o tesouro só é encontrado por negociantes argutos.

Já a parábola da rede que apanha peixes bons e maus alinha com a do trigo e do joio do domingo passado: não podemos desanimar de ir lançando redes a vida inteira, sabendo que nem tudo é bom, e que só com trabalho suplementar é que adquirimos o discernimento do que vale a pena reter ou deitar fora. O evangelista, preocupado com o bom entendimento entre o cristianismo emergente e o judaísmo, finaliza com o elogio do «escriba instruído sobre o reino de Deus»: a novidade ou a antiguidade não são boas ou más por si – em tudo é preciso distinguir o bom do mau.

Assim se trabalha na «agricultura do Reino de Deus». Os especialistas não encontram um significado claro para «reino de Deus» – e provavelmente nem Jesus se preocupava com tal exactidão: utilizava expressões e parábolas adequadamente provocadoras para despertar a nossa consciência e um agir esclarecido. O importante era não voltar as costas ao único Amigo dos Homens fixe a 100% (pese a estranha maneira de se mostrar «fixe»…).

Aliás, por muito que alguém tenha penetrado no «segredo de Deus», nunca será possível transmitir com exactidão e clareza essa experiência (2ª carta aos Coríntios, 12,1-4). Jesus não podia fugir às limitações do conhecimento humano, da linguagem e da cultura do seu tempo. E acontece Deus apresentar-se por vezes de um modo tão estranho que até apetece dizer-lhe: «deixa-me em paz, que não percebes da minha agricultura» (o facto é que muitas vezes se distorce a imagem de Deus, ora com palavras pretensiosas que complicam em vez de nos deixarem admirar e saborear o mistério, ora com palavras tão ingénuas que não suportam o desejável pensamento crítico).

A presença de Deus no mundo revela-se quando descobrimos que a vida é uma missão e que até ao fim somos chamados e fortalecidos para viver plenamente – sendo nossa responsabilidade «lavrar bem o campo». A 2ª leitura dá uma achega optimista: «para quem ama a Deus, todas as coisas contribuem para o bem». Porque «amar a Deus» implica não se deixar vencer pelo mal. Porém, nunca se esqueça que «Deus ajuda a quem se ajuda»…

Um «agricultor» arguto e bem cônscio de como é difícil a sua tarefa foi o rei Salomão (1ª leitura). Sem mais cerimónias, pediu a Deus umas «dicas» para encontrar o tesouro. E não é que Deus foi nisso? Deu-lhe sabedoria para discernir o bem do mal e dedicar-se ao melhor bem do seu povo. Salomão ficou célebre como governante justo. Tropeçou em muitas pedras e barrancos, mas é lembrado como «percebendo mesmo da agricultura»…

27-07-2014


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