Liturgia Pagã

 

De cavalo ou de burro?

14º  Domingo do tempo comum (ano A)

1ª leitura: Zacarias, 9, 9-10

2ª leitura: Carta aos Romanos, 8, 9-13

Evangelho: S. Mateus, 11, 25-30

 

Todo o cap. 9 do livro de Zacarias aviva a promessa de um Rei justo, que a força de Deus torna vencedor, e que trará uma nova era de paz não só para Israel como para todos os povos vizinhos. Com a sabedoria de quem se deixa guiar por Deus, não quer aparecer montado num soberbo cavalo, com o esplendor de arreios luxuosos. Este aparato é próprio dos reis que partem para a guerra, só atraindo gente belicosa e vaidosa, em geral mercenários que aproveitam um tempo de ostentação e aparente submissão a um chefe para alcançarem riqueza e poder. Mas o rei da 1ª leitura, porque é o «ungido» ou «escolhido» («messias» ou «cristo») de Deus, tem a noção da verdadeira autoridade, que produz a paz. E como símbolo dessa missão de paz, apresenta-se montado num jumentinho, animal impróprio para a guerra e para ostentação de poder.

Os quatro evangelistas viram nesta passagem o prenúncio de um mundo novo, radicado não no poder e na ostentação mas numa sólida atitude interior  de paz; e que esse rei-messias prefigura Jesus –  «o Cristo» por antonomásia.

O evangelho de hoje fala da importância dos «pequeninos». «Estes pequeninos», porém, designam os discípulos, pessoas fora do círculo de poder em que se movimentavam os «escribas e fariseus» (como hoje diríamos, sem «títulos académicos» e sobretudo sem fingir que os têm). Não são necessariamente gente inculta e muito menos «infantil» – mas aqueles que são designados no A.T. os «pobres de Javé», conscientes de que a única fonte de Justiça é Deus e de que só se podem orgulhar na medida em que colaborarem com a bondade e perfeição de Deus. É um tema ligado ao da predilecção de Deus pelos pobres, pelos que vivem na aflição, longe da riqueza e do poder.

É um facto que Jesus defendeu as «criancinhas», iluminando o valor real que lhes compete. E nisso foi revolucionário, porque nesse tempo (mas não só…) as crianças eram olhadas com desdém e até objecto de violência. Porém, os tempos modernos caíram no erro oposto, esquecendo que a razão de ser da criança é o adulto que nela se vai construindo. O natural é que a criança deseje ser adulta («adulto», etimologicamente, significa «alimentado», «crescido»).

Em várias passagens das suas cartas, S. Paulo alerta para o perigo de ficarmos no infantilismo, sem vontade de crescer e de atingir a maturidade humana. Mas o seu estilo utiliza uma base cultural e um tipo de argumentação próprios de um judeu culto da época de Cristo. No trecho de hoje, ele diz: «se viverdes segundo a carne, morrereis». Não, não se trata de «pecados sexuais» (abusivamente catalogados, ao longo dos séculos, como origem de toda a depravação). A «carne» (grego «sarx») e o «espírito» («pneuma») representavam dois aspectos inseparáveis da plenitude do ser humano. «Carne» designa a natureza frágil da humanidade, embora dotada de vitalidade, inteligência e vontade; «Espírito» é o contrapeso desta debilidade, pois refere a capacidade do ser humano de se unir com a «Vida» (ou Espírito) de Deus. Por isso, «seguir a carne» é não se importar com Deus, não tirando proveito da força divina – e arriscando-se a ficar sempre no estádio do «prazer infantil».

Tanto em política como em religião, não falta quem se interesse sobretudo por dar impressão de grandeza, ou de se apresentar como único detentor da verdade – que guardará em cofres de oiro. Mas a verdade não liga bem com soberba e muito menos com um cofre fechado. A verdade avança com a simplicidade e firmeza de quem tem um burrinho por montada – mas que a seu tempo chegará à humanidade inteira.

06-07-2014


  Página anterior Página inicial Página seguinte