Liturgia Pagã

 

«Por dentro das coisas é que as coisas são.» – F. Pessoa

Corpo e Sangue de Cristo (ano A)

1ª leitura: Deuteronómio,8, 2-3.14-16

2ª leitura: 1ª carta aos Coríntios, 10, 16-17

                   Evangelho: S. João, 6, 51-58

                       

Toda a gente sabe que o ouro falso pode ser o mais vistoso e que o ilusionista apenas nos leva a acreditar no que parece estar a acontecer, ou no que queremos ver… Mas há também os teimosos que se apegam às aparências para não terem que procurar e muito menos enfrentar o que as coisas são por dentro…

Cerca de 20 anos depois da morte de Cristo, já S. Paulo andava às voltas com as discussões a propósito da «ceia do Senhor» (1ª Coríntios, 11, 20), que era por vezes olhada como uma ceia entre outras, embora enriquecida com leituras, orações e pelo esforço de uma convivência em que todos se sentissem irmãos. Nos capítulos 8 a 11 (onde se encontram as passagens mais célebres sobre este tema), o pano de fundo é perder-se com as aparências: temos que saber ver para além delas mas ter presente que também julgamos e somos julgados pelas aparências. Por isso, não acha conveniente que os cristãos participem das «ceias em honra de falsos deuses». Embora o façam por louvável amizade e abertura de espírito, a verdade é que outros cristãos com sensibilidade diferente podem, com alguma razão, ficar chocados.           

Mas… e hoje? Quantos cristãos notáveis socialmente, incluindo mulheres e homens «da Igreja», «confraternizam» com os defensores da «economia que mata»? Dão à Igreja um brilho falso, porque se submetem a um sistema eticamente condenável, acabando por prestar culto  aos deuses do Dinheiro e do Poder – que exigem «sacrifícios humanos»! – e levando outros a «lutar pela vida» com ideais distorcidos. Não terão coragem e criatividade suficientes para construir modelos de desenvolvimento credíveis e persuasivos, que utilizem os recursos naturais e humanos sem ficarem pelas aparências do maltratado «bem comum»? As instituições religiosas têm responsabilidade agravada neste esforço para clarificar e tornar frutuosa a verdade por trás das aparências.

S. Paulo também considera fracos e mal formados, os cristãos que não reflectem sobre o que está «por dentro» da «Ceia do Senhor». Pão e vinho são realidades vulgaríssimas, mas foi com elas que Jesus Cristo, na última ceia, convidou os discípulos a «participar» na sua missão: na entrega total à causa da «salvação» ou «libertação» do ser humano e à construção de uma «nova aliança» – cuja característica principal é a atitude de olhar para Deus como presente no dia-a-dia e em quem podemos confiar mesmo se as «aparências» são do pior…

(«Comunhão» tem o sentido geral de «participação»: deriva do latim «munus» (como em português), designando um cargo de que somos responsáveis: com-munio é a responsabilidade «comunitária» num projecto; «com-municare» deu «comunicar» e «comungar», cujo sentido primitivo é o de refeição em comum).

O evangelho atribuído a S. João reforça o estilo acicatante de Jesus, frequente na cultura semita, que desassossega o pensamento e nos leva a olhar para «dentro das coisas». Escrito cerca do ano 100, procura responder a uma comunidade com graves dissensões e perseguições. Era vital que a «comunhão» com Cristo a enchesse de força e alegria. Na nossa «ceia» eucarística, não reactualizamos apenas a memória de um «homem bom»: mas de quem viveu em tão íntima união com Deus, que recebeu a missão,  como «filho muito amado», de nos ensinar a olhar «para dentro» dos conceitos e imagens de Deus. S João é o evangelista que mais identifica Deus com Amor – cuja riqueza nos deixa de olhos esbugalhados. Olhando Jesus como «da nossa carne e do nosso sangue», estamos com ele a «comungar» do «pão vivo» e da «água viva» (4, 14), que alimentam a nossa alegria e preparam a nossa «carne e sangue» (a vida real) para lutar contra o mal – que se esconde atrás de muitas aparências…

A leitura do evangelho de hoje é cada vez mais difícil num mundo pouco habituado a ver «por dentro das coisas». Se tudo fosse claro, não haveria discussões. O final da dissertação de S. João sobre «Jesus pão da vida» (6, 22-69) mostra o grande objectivo: ver em Jesus «o santo de Deus», que tem «palavras de vida eterna». Temos que ver «por dentro» até dos conceitos que parecem sagrados. S. João põe na boca de Jesus Cristo estas palavras (6, 63): «É o Espírito que dá a vida; a carne não serve de nada: as palavras que vos disse são espírito e são vida».

Vale a pena «sentarmo-nos à mesa» com este Jesus que não nos quer numa «aparência de vida»…

22-06-2014


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