Liturgia Pagã

 

Moinhos e Gigantes

6º Domingo da Páscoa  (ano A)

1ª leitura: Actos dos Apóstolos, 8, 5-8, 14-17

2ª leitura: 1ª Carta de S. Pedro, 3, 15-18

Evangelho: S. João, 14, 15-21

 

Onde Sancho vê moinhos

D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.

Vê gigantes? São gigantes.
             (Impressão digital, António Gedeão).

O ser humano debate-se entre a realidade daquilo que sente e vê e aquilo que sente mas não vê. Debate-se perante o sentimento gerado por aquilo que não consegue ver e contudo sente tão importante como tudo o mais – e talvez mais importante ainda: a própria explicação e fundamento da realidade total. Da dialéctica destes dois sentimentos é feito o drama da nossa aventura. Um drama alimentado pelo desejo de ser feliz.

As religiões orientais optaram por condenar o desejo. Realçam a sabedoria de que o nosso esforço pela felicidade é muitas vezes falsificado por más escolhas, metendo por caminhos que levam à opressão dos outros e à perda dos próprios “bons sentimentos”. Concentraram-se no desejo de nada termos a desejar, e de que o sonho da perfeição é diluirmo-nos na realidade fundamental – a realidade divina.

Esta resposta ao drama humano não é desconhecida da espiritualidade cristã. Contudo, o cariz “pragmático” da cultura ocidental revela-se no culto da realidade sensível, no culto deste mundo que nos rodeia e que podemos, para mal e para bem, ir transformando. Mas precisamos de nos reunir e partilhar a dúvida do que será a realidade fundamental. Se não sabemos ver o mundo para além das aparências, fechamos a porta à plenitude incomensurável da realidade, e o nosso desejo de felicidade deixa-nos como que pendurados sobre um abismo.

No livro dos Actos dos Apóstolos, é notória a preocupação por juntar todos os elos que podem unir a comunidade cristã ao Jesus histórico, que «não se consegue ver mas se sente como muito importante» e vivo. Só vemos em Jesus um judeu de há dois mil anos? Ou vemos «o Cristo que voltou à vida pelo Espírito»? O antiquíssimo rito de imposição das mãos, transmissor de energia vital e símbolo da transmissão da Força de Deus, manifesta a preocupação pela importância de um elo físico, através das gerações humanas, com o próprio Jesus Cristo. Também por isso, continua a crescer, em número e rigor científico, a interpretação dos textos fundamentais, e cada vez mais podemos avaliar a mensagem autêntica de Jesus, discernindo o que podia significar no seu tempo e o que pode significar no nosso tempo.

O valor da experiência, o valor do mundo sensível, o valor da actividade humana fazem parte das dimensões do dia-a-dia, em que Jesus se ia encontrando com quem o queria ouvir. Jesus via os «moinhos» que nos fornecem «o pão nosso de cada dia», mas tinha aquele olhar de Deus que nos ensina a descobrir os «gigantes» que somos, para além de todas as aparências negativas, e a cada um de nós encoraja a dar «passos de gigante».

25-05-2014


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