Liturgia Pagã

 

«Nas palminhas de Deus»

3º Domingo da Quaresma (ano A)

1ª leitura: Êxodo, 17, 3-7

2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Romanos, 5, 1-2, 5-8

Evangelho: S. João, 4, 5-42

 

Na história dos campos de concentração nazis, um rabino, enquanto enfileirava com os outros judeus em frente das câmaras da morte, exclamou: «Deus, isto é demasiado abominável! Tens que mostrar o teu poder e impedir esta hecatombe!» Mas nada aconteceu. Então, meneando tristemente a cabeça, o rabino suspirou: «Não, Deus não existe!»

Apetece dar razão ao rabino, pois os prisioneiros nada podiam fazer em abono do provérbio «Deus ajuda a quem se ajuda».

Mas não podemos crer em Deus na medida em que Ele resolve os nossos problemas. Não é fácil manter-se firme numa fé amadurecida, para a qual Deus tanto dá sentido à pior morte como nos dá a força e a inteligência para lutar até ao fim contra o mal.

Na 1ª leitura, o mal do povo israelita foi o desespero – apegado que estava a uma visão infantil de «andar nas palminhas de Deus». Na verdade, esta expressão apenas pode simbolizar a firme confiança de que nunca estamos sós e muito menos «abandonados». Muitas vezes nos sentimos na maior solidão e desespero. Porém, essa confiança diz-nos que a noite mais tenebrosa tem fim e que o nosso esforço nunca será em vão.

Na luta contra o mal, que inclui a luta contra a má qualidade de vida, é bom sentir sucesso – mas o sucesso só é bom se partilhado… Não sendo assim, não sendo deveras para que haja mais bem no mundo, confiando apenas no ganho individual, caminhamos sem a única confiança que supera os piores momentos.

Temos um certo medo de levar a sério a responsabilidade de cada qual por que se fortifique o elo da contínua interajuda. Ora esta simbiose da humanidade é a concretização da presença divina em cada ser humano, e nela se baseia o juízo sobre a nossa acção no mundo: «Vinde, benditos de meu Pai! Porque sofria... e me ajudastes!» (Mateus, 25, 31-46).

Não haveria a história linda da samaritana, se esta não tivesse dado de beber a Jesus, apesar das rivalidades entre judeus e samaritanos, desprezados por aqueles (daí a importância da provocadora parábola do «bom samaritano», em S. Lucas, 10, 29-37).

A conversa desenrola-se como cerejas: Jesus promete matar a sede, embora nada tenha com que tirar água do poço; Jesus teima com a samaritana e esta acaba por reconhecer que aquele homem, «fora do baralho» dos judeus, bem que podia ser o Messias. Conta aos conterrâneos esta experiência maravilhosa, e Jesus é convidado a ficar com eles. Os samaritanos dispuseram-se a ouvi-lo e ao fim de alguns dias podiam dizer: «Nós próprios sabemos que ele é realmente o salvador do mundo».

A samaritana não atingiu o sentido das palavras de Jesus – mas nem os discípulos compreenderam. Aliás, a incompreensão de quem é Jesus marca diversas vezes o evangelho de João (cujo estilo é carregado de simbolismo). Por isso é tão importante a explicação de Jesus sobre o verdadeiro culto a Deus: não nos podemos prender a espaços e pessoas como possuindo uma espécie de força mágica – se não passamos disto, não alcançamos uma fé amadurecida. Deus «está fora» do nosso espaço e do nosso tempo – e por isso pode estar presente em todo o nosso espaço e em todo o nosso tempo. E por isso podemos estar em união com Ele nos momentos mais estranhos da vida (tanto na maior festa como na maior tragédia).

É assim que podemos andar «nas palminhas de Deus» – «em espírito e verdade» (evangelho). A todas as horas, em todas as idades, a conversa com o Deus revelado em Jesus vai-nos saciando a sede de viver plenamente.

23-03-2014


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