Liturgia Pagã

 

A síndrome da vassoura

24º  Domingo do tempo comum   (ano C)

1ª leitura: Livro do Êxodo,32, 7-14

2ª leitura: 1ª Carta de S. Paulo a Timóteo,1,12-17

Evangelho: S. Lucas, 15,1-32

  

As leituras do evangelho deste domingo são consideradas, por muitos teólogos e liturgistas, como representativas do núcleo do Evangelho, e particularmente das memórias que S. Lucas nos quis deixar sobre a pessoa de Jesus. Em especial, a parábola conhecida vulgarmente como a do «filho pródigo» figura no topo das passagens mais comentadas por especialistas, por crentes e não crentes, por quem se interessa pela experiência de Deus, ou mais simplesmente pelas formas de vida espiritual. Todos parecem concordar em que o traço dominante é a revelação de Deus como «alegria de procurar», «alegria de encontrar», «alegria de conviver», «alegria de só querer bem».

Das três alegorias do evangelho sobre a alegria de salvar, é particularmente pitoresca a da mulher, de vassoura nas mãos, revirando a casa inteira metodicamente, sem descansar enquanto não encontra o que procura. E à alegria do sucesso, acresce o prazer de uma casa limpa e de uma festa com os amigos...

Tudo obra de uma vassoura adequada, em mãos tão decididas como criteriosas e cuidadosas. Para procurar a moeda de oiro, não vamos partir as porcelanas; nem vamos lançar o lixo noutros cantos, e muito menos para o quintal do vizinho.  E se as crianças parecerem estorvar, não as vamos correr com o cabo da vassoura. Nem varremos o quintal com a mesma vassoura da sala de jantar ou de estar. E se acharmos bem emprestar a vassoura ao vizinho, é ofensivo e contraproducente passar-lhe a vassoura mais velha ou, pior ainda, escavacada. Muito menos devemos impor aos outros o nosso estilo de vassoura e de varrer, por muito que a casa dos outros se mostre suja e desarrumada. O ideal é perguntar com amizade: será que lhe faz jeito a minha vassoura? Quer experimentar aquela espécie de vassoura “último grito”, que o amigo até se diverte a observar?

E não vamos aprofundar algumas formas patológicas do síndroma da vassoura: desde o  querer dar nas vistas “montado numa vassoura” (entram aqui os “efeitos especiais”); até ao fazer negócio exportando vassouras em peças soltas, tão sofisticadas que quem as procura montar só consegue construir metralhadoras. É que a vassoura também pode ser vista como símbolo agressivo de poder (autoridade e poder são coisas distintas), uma forma perversa da «varinha mágica» nas mãos dos domadores de feras, dos pesquisadores de veios de água, ou dos pastores e condutores de orquestra...

O evangelista S. Lucas apresenta Jesus como o trabalhador incansável para um encontro alegre do Homem com Deus. Utilizando os melhores conceitos humanos para juntar amor, perdão, justiça e preocupação maternal, dá a Deus a imagem de Pai, suficientemente corajoso para exigir que o amor dos filhos tenha a marca transparente da liberdade. À imagem desse Pai, é que Jesus tem a coragem de “arregaçar as mangas”. Outra lição é patente no evangelho: quem se acomoda ao bafio das salas deixa cobrirem-se de pó e de esquecimento grandes e pequenas preciosidades – o valor dos outros e do nosso ambiente ou o valor da nossa vida interior, com o seu passado de experiências mais ou menos agradáveis. Depois de uma limpeza a sério, descobrimos como até os piores momentos da nossa vida escondem surpresas bem valiosas.

E que outra coisa fez «o filho pródigo» senão resolver-se a uma boa varridela interior e a dar brilho à sua memória, até se dar conta do amor que tinha perdido e do egoismo em que se deixara atolar? Mas não teria recuperado esta força, não fora uma sólida educação familiar ter-lhe dado os alicerces de um amor e confiança resistentes a toda a prova.

Será que a nossa varredora não sentia alegria pelas outras moedas de ouro ainda guardadas? Será que o pastor se deixou de interessar com as «noventa e nove» ovelhas bem a salvo no redil ou no campo de pasto? Será que o Pai do «filho pródigo» se sentia infeliz com a companhia do outro filho? De certeza que Jesus, ao ilustrar a sua grande missão de «vir ao mundo para salvar os pecadores» (2ª leitura), pegou naquele sentimento tão forte que Deus deixou nos homens, «quando os criou à sua imagem e semelhança»: nunca estamos satisfeitos com o muito que possamos ter ou com o muito que fizemos. Se os «noventa e nove justos» e o «filho fiel» do evangelho não se esforçarem continuamente por valerem cada vez mais, passarão a ter de justos apenas o nome, à semelhança dos que se chamam “trabalhadores” para encobrir que não trabalham; ou se chamam “democratas” para melhor esconder um egoísmo desumano.

Não anda na justiça quem fica a dormir sobre a riqueza acumulada (S. Lucas, 12, 16-21), quantas vezes «à custa dos despojos dos pobres» (Isaías, 3, 14-15). São inúmeras as passagens bíblicas à volta deste tema. Jesus veio claramente afastar-nos de especulações sobre um Deus punitivo: Deus quer que os homens não se acomodem ao bem-estar nem desesperem com a adversidade, mas antes de tudo tirem partido para gerar a beleza e o bem, e tendo a coragem de discernir e discutir publicamente o que é bem e o que é mal.

 Seria o «filho fiel» um bom irmão? Não teria de ir procurar o «filho pródigo», para praticarem juntos o caminho de regresso à casa paterna? Afinal, o «filho mais velho» não sabia varrer a casa dos seus preconceitos, presunções, comodismo e frustrações, próprias de quem não confiava numa conversa aberta com o pai e com a família. Cobriu de pó e de lixo as coisas valiosas que o pai lhe deixou. Só para alguns é que aparecia como um filho bem comportado.

O pior é quando filhos como estes são chamados a gerir a casa, sem nunca terem varrido e nada interessados em varrê-la como convém e para o que convém. Aplica-se a eles o que disse o profeta Isaías: «Povo meu, os que te guiam destroem o caminho que deves seguir» (3, 4-12). Confundem varrer com “andar à vassourada”, perdendo cada vez mais o tesouro que faz  falta a todos e impedindo os filhos de ocupar um lugar produtivo na família.

15-09-2013


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