Liturgia Pagã

 

Os amigos são para as ocasiões

2º Domingo da Quaresma (ano C)

1ª leitura: Génesis, 15, 5-18

2ª leitura: Carta aos Filipenses, 3,17-4,1

Evangelho: S. Lucas, 9, 28-36

 

Não há projecto que se aguente, sem amigos reconfortantes. E amigos que nos afaguem com as palavras, com os gestos ou com o olhar.

A lenda do Paraíso terreal conta como Adão se sentia só – apesar de Deus «passear pelo jardim»… Abraão, que via em Deus um amigo, não parava de se queixar da falta de um filho que lhe enchesse a vida de carinho (Génesis, 15,2-3). E como seria a vida dos profetas, a vida de Jesus, sem os amigos, sem os bons mestres e as «santas mulheres»? Não gostava Jesus de recompor as forças em casa de Maria, Marta e Lázaro?

Mas Deus é um «amigo estranho» (um tema recorrente na Bíblia, como em todas as religiões). Não é de admirar que muitas descrições de experiências de Deus recorram a imagens temerosas como as da 1ª leitura. Aliás, a narração de Lucas é a que mais imita o episódio de Abraão – usando os chavões próprios da época: espanto, sono, medo e nuvem. O que é de admirar é que em todos os relatos desta ordem haja um momento de viragem, um momento de suavidade e de luz, delineando uma presença amiga, que afinal lança raízes bem fundas na nossa carne e no nosso sangue.

Quem escreveu a história de Abraão conhecia bem a fragilidade humana. Era costume que as partes empenhadas num acordo ou aliança se submetessem ao ritual macabro de atravessar entre as carnes esquartejadas dos animais sacrificados, com a imprecação: «assim seja eu esquartejado se for infiel à promessa!» Mas amigo não explora a fraqueza do amigo… e só Deus é que atravessou.

Também Pedro, João e Tiago foram convidados, como amigos, para ver Jesus de um modo totalmente novo, embora fugaz (evangelho). Tudo começou com a caminhada de três homens simples que adormeceram – e quando viram o que se passava só queriam ficar a gozar toda aquela beleza (mas sem grande esforço...). Até pensaram em arranjar três cómodas tendas para Jesus, Moisés e Elias.       

Na realidade, eram amigos ainda muito «verdes» para perceberem quem ele era. A transfiguração aparece como uma «ajudinha» para os apóstolos compreenderem a missão de Cristo e aguentarem os duros momentos que estavam para vir.

Ao mesmo tempo, mostrou que precisava de amigos, como toda a gente que se preze (e bem triste ficou por os apóstolos não o terem acompanhado nas horas finais!). Deu ainda uma lição sobre a amizade: todos nós temos qualidades ocultas, que só os amigos poderão descobrir. Cabe aos amigos ver o sentido positivo de certas palavras e acções aparentemente chocantes.

Mas não podemos viver demasiado dependentes de horas felizes, rodeados de amigos. Não é a lição a tirar da atitude dos três apóstolos, que não queriam sair do «bem bom» da transfiguração? Precisamos de amigos que nos acompanhem – e assim nos ajudem a erguer dos trambolhões. Não podemos ficar prisioneiros nem dos maus nem dos bons momentos: falta-nos olhar «para cima» (como diz o próprio Ionesco, o célebre dramaturgo da frustração humana). O «mau estado social» da humanidade provém de não querermos deixar o horizonte imediato dos interesses pessoais que se organizam em vários tipos de «lobbies» – um horizonte anti-humano, que nos leva a andar em círculos sem esperança, mesmo que, no melhor dos casos, dentro de um sistema de alta tecnologia (tanto material como económica ou política…). Mas o poder tecnológico não nos consegue libertar dos grandes problemas – justamente porque somos de um nível infinitamente superior. Precisamos de reflectir nas linhas de orientação que efectivamente nos podem conduzir para uma sociedade mais justa, mais feliz (2ª leitura). Precisamos de «transfigurar» este mundo.

Nas conversas amigas, tira-se proveito tanto do trivial como do mais sério – e assim tudo na vida pode receber um valor positivo. E por que não havemos de falar, mesmo numa conversa trivial, sobre as maneiras de «olhar para cima» – ou sobre quem será o tal “estranho amigo”?

24-02-2013


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