Liturgia Pagã

 

Combinado, cá te esperamos

1º Domingo do advento (ano C)

1ª leitura: Livro de Jeremias, 33, 14-16

2ª leitura: 1ª carta de S. Paulo aos Tessalonicenses, 3, 12 - 4, 2

Evangelho: S. Lucas, 21, 25-28.34-36

 

Mas não tragas contigo as tempestades e angústias de que fala o teu evangelista Lucas. E se tu disseste que o templo de Jerusalém, a própria cidade e o mundo inteiro estão sujeitos à destruição, não foi para sublinhar que as velhas crenças e as construções humanas não só não duram como não devem durar eternamente? Tal como as roupas, bebidas e projectos ambientais se têm de renovar – para darem lugar a um figurino mais atraente, a sabores mais requintados, a cidades mais humanas… e que ninguém prefira dormir «à mexicana» à sombra de um muro velho. Traz sim aquela roupa que te fica tão bem e não esqueças as garrafitas da tua melhor colheita (a crer nos teus amigos Lucas (7,34) e Mateus (11,19), não é verdade que te acusaram de seres «um bom copo e um bom garfo»? E ao ver-te, todos se lembrarão do velho profeta Jeremias (1ª leitura, embora o texto referido seja obra de um discípulo): porque é a tua alegria contagiosa que nos incita a guardar a justiça!

Mas por que é que Lucas havia de referir coisas tão tenebrosas? Fala delas no final do teu ministério (não confundas com os nossos «ministérios»!) em Jerusalém, mesmo antes do relato da Paixão. É verdade que estava na moda imaginar e discutir os sinais espantosos que acompanhariam o fim do mundo e a vinda de um salvador definitivo que também seria juiz implacável – aliás, a nossa «Idade Média» bem que viveu a ideia de um Deus terrível, que nos castiga com as doenças, flagelos naturais, guerras e perseguições… (e os quadros de muitos artistas célebres, como os de Jerónimo Bosch, cerca de 1500, ainda nos deixam arrepiados). E hoje, como sabes, há quem veja em textos do género a predição de catástrofes originadas pela nossa falta de juízo e de coragem para tomar decisões acertadas.

No ano litúrgico, que gira à volta da tua morte e «ressurreição» (as aspas indicam que não conseguimos entender bem o que isso é), as descrições apocalípticas aparecem no princípio (1º domingo do teu Advento) e nos últimos domingos do Tempo Comum. Com fantasias tão impressionantes, esses textos lembram que a vida é dom de Deus, que o mundo é dom de Deus e que a salvação é dom de Deus. Mas que o encontro com Deus é sempre um drama, até porque Ele «atrapalha» as nossas bitolas de valorização e o nosso ângulo de visão. Os profetas são bom exemplo deste conflito entre «o plano de Deus» e os planos dos poderes políticos, económicos e também religiosos. E as tuas «bem-aventuranças» nunca deixam de nos «atrapalhar»!… É que a influência de Deus é «subversiva» da ordem pobremente humana, e as próprias convulsões do universo representam a transcendência de Deus e a inconsistência do mundo, que não tem sentido sem o permanente encontro com Deus. Tu vens lembrar isso e selaste a mensagem com a tua morte.

Assim é que a festa do teu nascimento é enquadrada no cenário dramático da nossa história.

Mas não ficaste muito bem retratado nas histórias e imagens de ti quando menino. Como não deixaste relatórios, inventou-se muita coisa (mas olha que os relatórios actuais não são mais fiáveis… dizem só o que convém e «para quem convém»…). Uma coisa é certa: a comemoração do teu nascimento lembra que és um dos nossos, fraquinho, dependente e com um grande ponto de interrogação quanto ao futuro. Lembras o velho Simeão, que te pegou ao colo ainda recém-nascido? Ouve como o contou o teu fiel amigo Lucas (2, 29-35): «Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição». Mas que grande interrogação!

Por isso, pelos tempos fora, não cessamos de perguntar quem tu és.

O teu nascimento deu-se discretamente, apesar das curiosas histórias de Mateus e Lucas. Dás a impressão de te quereres “meter connosco” de mansinho, para não nos assustar. Não há nuvens nem imagens apocalípticas. Todos os olhos podem ver com alegria tranquila um menino a nascer.

Mas como tu alinhastes perfeitamente com o Deus que parece «atrapalhar» a nossa vida, não te admires se por vezes preferirmos que fiques na rua e nos deixes sossegado. Contudo, ninguém te pode negar a melhor das intenções. Por isso, já que insistes, fica combinado. Aparece quando quiseres. Cá te esperamos.

02-12-2012


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