Liturgia Pagã

 

Leituras perigosas?

28º Domingo do tempo comum (ano B)

1ª leitura: Livro da Sabedoria, 7, 7-11

2ª leitura: Carta aos hebreus, 4, 12-13

Evangelho: São Marcos, 10, 17-30

 

Há poucas semanas, um biblista português alertava para os perigos de ler a Bíblia sem conhecer o porquê e como se formaram as suas «histórias», poemas e «visões». Por isso é que, na Bíblia, são tão importantes as introduções e notas. Como estas podem ser tendenciosas, manipuladas por uma dada perspectiva religiosa (ofendendo por vezes outras perspectivas), têm surgido excelentes traduções ecuménicas (ou interconfessionais) da Bíblia, atentas ao tesouro comum das tradições católicas, ortodoxas e protestantes, sem descurar o significado dos textos dependente do momento histórico em que foram escritos e atendendo à influência de culturas muito diversas.

O autor do Livro da Sabedoria, que viveu pelos anos 75 a. C, põe as suas palavras na boca do rei-sábio Salomão, que já tinha morrido há quase 900 anos. Escrito  em grego, é influenciado pelo pensamento filosófico da antiga Grécia (sobretudo o que surgiu a partir dos anos 400 a.C.), para o qual a riqueza significa tanto a abundância de bens materiais como espirituais e que a riqueza material só é boa na medida em que contribui para o bem da comunidade. Os «ricos» são portanto responsáveis pelo progresso social – o que é impossível se menosprezam a sabedoria. Aliás, os bens materiais são necessários para criar condições de desenvolvimento pleno da personalidade. Também já se reconhece como a riqueza material (sem a espiritual) é fonte de ansiedade, aprisiona o ser humano e conduz ao domínio opressivo dos demais.

No A. T., a riqueza é recompensa da fidelidade a Deus, mas é muito atacada, sobretudo nos profetas e livros sapienciais, como tentação para o egoísmo e opressão dos «pobres» – os desprotegidos, um conceito que ganhou extraordinária importância, do ponto de vista religioso. Os «pobres» são aqueles que só põem a sua segurança em Deus e não levantam obstáculos à justiça (atributo de Deus).

Este sentido é explorado por Jesus: os pobres são «bem-aventurados» na medida em que Deus é para eles a única «rocha sólida» sobre que vale a pena construir. E os ataques de Jesus aos ricos visam sobretudo a obsessão pelos bens materiais, que impede a justiça do «reino de Deus». Os que não conseguem ver além dos bens materiais não podem compreender o sentido da missão de Jesus, que deu a vida para que haja mais Vida (não só a vida eterna, mas já a deste mundo).

Não é fácil compreender o significado da história do homem rico: este, reconhecidamente cidadão exemplar e atento à palavra de Deus, queria ter a certeza da melhor estratégia de investimento para alcançar o prazer garantido de viver. Faltaria alguma coisa? Não, não faltava. Na opinião de Jesus, até tinha a vida muito bem orientada. Mas não estava satisfeito. Então, Jesus lançou-lhe uma proposta arrojada –  que acabou por ser demasiado estranha ao sentir e ao pensar do homem rico.

Na catequese tradicional, este episódio era muitas vezes apresentado como liminar condenação da riqueza, em contraste com o desprendimento de Pedro & Companhia (na verdade custa muito deixar tudo o que temos, seja um palácio ou um casebre…).

Houve interpretações abusivas, quer castigando os ricos com o inferno quer consolando os pobres com o céu, quer justificando a riqueza adquirida por alguns que «abandonaram tudo» – mas para receber muito mais já neste mundo…

Jesus não condenou a riqueza (não era Jesus sustentado pela riqueza dos seus amigos − homens e mulheres?): apontou como o apego aos bens deste mundo ou às várias formas de poder é um empecilho para promover a justiça do «reino de Deus». Não deixa de haver razão para esta quadra do nosso poeta Aleixo:

«És rico e sério? Protesto!

Nisso tens facilidade.

Ser pobrezinho e honesto

É maior honestidade.»

Todo o ser humano procura ser rico, por tendência natural, que só é boa ou má conforme o bom ou mau uso dessa tendência. É uma força que nos «é impossível» aniquilar, mas que já nos ensina a abdicar de um bem para atingir outro maior. Porém, pondo Deus acima de tudo, descobrimos a sabedoria de que o maior bem de todos não pode ser comprado por dinheiro, mas pela preocupação pelo «reino de Deus e sua justiça», e que este é o melhor investimento possível dos bens materiais – o que pode exigir a «hipoteca» de coisas que nos custa muito deixar (Marcos,9,43-49). Então já «é possível» a salvação plena.

14-10-2012


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