De braço dado com Hans Küng

O primeiro grande encontro com este grande amigo (que nunca deve ter sabido da minha existência) ocorreu pouco depois de eu começar a leccionar na Universidade de Aveiro, em 1976, através do seu livro talvez mais famoso: On Being a Christian (tradução do original Christ Sein, revista e prefaciada pelo A.). Veio a ser a principal referência na dimensão religiosa da minha tese de doutoramento Filosofia da Educação e Aporias da Religião (1986). Pouco a pouco, pude saborear várias das obras principais deste verdadeiro condutor do pensamento sem fronteiras para a viragem do milénio, já com lugar de destaque no Vaticano II.

Tive o prazer deste frente a frente com uma pessoa dotada de humanismo vibrante e de extraordinária inteligência: sempre à escuta dos mais profundos problemas do grande mistério da existência, do bem e o do mal e daquela Transcendência que só ela pode ser percebida como o Sentido de todas as coisas –  da alegria e da dor, da vida e da morte, da criação e da destruição.

Sempre agradavelmente destemido, sabendo abordar temas delicados. E pronto a reconhecer e enaltecer a riqueza e fundamentação de pensamentos divergentes. Dotado de extraordinário poder de síntese, frequentemente elaborava um sumarento resumo do cerne das questões discutidas, não sem acrescentar oportunas sugestões. Como acontecia ao realçar todos os traços de união entre posições diversas e nomeadamente entre os vários sistemas religiosos.

Como teólogo genuinamente humanista, defendia a «teologia ascendente»: o discurso sobre Deus a partir do aprofundamento da experiência humana. E as tradicionais verdades da fé são criticamente discutidas no contexto dos problemas do mundo actual e da mundividência sempre em evolução. Pois vivemos em permanente interpretação dos nossos encontros com Deus.

Criticamente sensível às desigualdades sociais, com particular ênfase no desconhecimento e desconsideração do mundo feminino – sem o qual a sociedade fica gravemente amputada, como ainda acontece na gestão e na pastoral da Igreja católica. O seu trabalho interdisciplinar sobre ética global procura eliminar a tensão negativa nas relações humanas em vários cenários, orientada pela ilimitada sede de justiça que decorre das bem-aventuranças. As leis não podem matar o espírito.

Nem hesita em trazer à verdade a violência, perversão, culto do poder e do Dinheiro, que se cruzam com os mais notáveis pensamentos e feitos da parte de muitos membros da Igreja.

Dogmas? Funcionam demasiado como silenciadores dos pensamentos e atitudes divergentes, que presunçosamente se apresentam como «pedras angulares», guardiãs e manipuladoras dos sistemas conceptuais e das normas práticas. Mantinha-se calmo e persistente lutador em defesa da linha profética, particularmente manifesta no Judaísmo e no seu rebento missionário que é o Cristianismo.

A pessoa de Jesus é cuidadosamente integrada no tempo, não só no passado e presente da sua vida como também nas imagens que dele se foram construindo ao longo de dois milénios. O realce que deu a Jesus Cristo como continuamente interpelante revela o mestre sempre novo porque interage com quem lhe queira dar o braço – timbre de verdadeiro educador.

O sofrimento é outro grande mistério de todos os tempos. Fere com mais intensidade quando nasce da maldade humana. Os extremos do nazismo deixaram-lhe profundas amarguras mas ao mesmo tempo suscitaram extraordinárias dissertações sobre o sentido da vida, o que é ser humano e o que é acreditar em Deus, com todas as dúvidas e estranhezas em permanente ebulição – e por isso em permanente fundamentação. Só sendo fiéis à razão em exercício é que nos podemos considerar religiosos. Dizia de si mesmo quanto precisava de novo acto de fé, ao fim da caminhada de cada dia.

Muito me tocou a visão do sofrimento como questionamento nuclear do sentido da acção humana, em que a resposta é o combate efectivo contra as diferentes situações de dor e, com a força do amor dedicado, procurar a alteração do rumo destruidor. Tomando o sofrimento como aguilhão motivador de dedicação ao maior bem-estar de cada ser humano, surge o sentido da morte do grão de trigo que enriquece a Vida – a maior e imortal coroa de cada ser humano. O facto de Jesus ter aceitado o fim trágico da crucifixão coloca-o bem no centro da dor física e espiritual e garante o valor da sua mensagem.

Nas palavras de outro sacerdote grande amigo meu (Evaristo de Vasconcelos, SJ), a morte é «o meu próprio parto», em que na dor renasço plenamente. De Hans Küng, ficou célebre a expressão inglesa por ele assumida: Dying into God. A morte é penetrar em Deus.

Aveiro, 07-04-2021

 

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