Manuel Alte da Veiga, Um critério para a Educação?, Braga, 2004.


5 – Modos de «admirar» a educação

 

5.2 Procurando uma síntese

 

Comecemos pelo sugestivo título de uma das obras de Maritain (1932): Distinguer pour unir ou les degrés du savoir. As distinções metafísicas, ou as da ciência física e matemática, são boas em si, e necessárias até, para que o nosso conhecimento adquira a maior vastidão possível de ângulos de observação da realidade – que não se confunde com as nossas ideias, sendo estas o instrumento humano para realizar o nosso desejo natural de compreender a realidade em si. O que acontece facilmente é nós perdermo-nos neste desejo (cfr. o último capítulo), acabando prisioneiros das nossas ideias e incapazes de re-estabelecer a unidade dos seres sobre que nos debruçámos, quer pelas "ciências exactas" quer pela metafísica. Só mediante este passo é que nos podemos acercar da unidade perfeita do esse subsistens

O interesse do enfrentamento de ideias, bem patente neste trabalho, pode ser fundamentado em passagens como esta: Zubiri (1963, 283) esclarece que «os filósofos são homens que não estão de acordo entre si, mas que no fundo se entendem entre si», porque têm consciência de se movimentar num campo sem evidências nem certezas, em que as combinações dialécticas são impotentes para encontrar a saída, cabendo a cada qual, com a sua vida (exemplo de Dilthey) ou seu modo de existir (exemplo de Heidegger) lançar-se ao «penoso, penosíssimo esforço, do trabalho filosófico» (op. cit. 284). São aqueles sábios, como refere Aristóteles, que têm consciência do rigor relativo à «natureza do assunto» (1959, 1094b).

Lalande (1962) apresenta os seguintes usos de teoria: «uma construção especulativa do espírito, ligando consequências a princípios», que se pode definir por uma série de oposições: (1) A teoria opõe-se à prática, quer na ordem dos factos quer na ordem normativa: «conhecimento desinteressado, independente das suas aplicações»; «o direito puro ou o bem ideal, distintos das obrigações comummente reconhecidas». (2) Opõe-se ainda ao conhecimento vulgar, pelo seu método e sistematização. (3) Por último, opõe-se ao pormenor da ciência enquanto «larga síntese propondo-se explicar um grande número de factos e admitida, a título de hipótese verosímil, pela maioria dos sábios de uma época». Esta última concepção de Lalande apresenta um forte sabor a positivismo científico, e só a primeira parte se aplica cabalmente ao domínio filosófico, podendo-se estender a segunda parte ao domínio pedagógico, enquanto “ciência”. Lalande refere ainda o sentido pejorativo de teoria, como visão artificial sobre a realidade, demasiado sujeita à atracção da imaginação. Acrescentaríamos a acusação vulgar de que os teóricos andam nas nuvens e são pouco profundos.

Na opinião de Gary (1997), o próprio conceito de teoria é demasiado ambíguo, quer a "grande" teoria (produto de consenso a nível "científico") quer a teoria pessoal, não constituindo um ponto de partida suficientemente sólido e, de qualquer modo, inibindo frequentemente a criatividade.

Este cepticismo caberia com toda a propriedade a uma "Teoria da educação": a ambiguidade é potenciada, quer a nível  da posição "científica" quer a nível pessoal, e a criatividade corre um grave risco de ser inibida, sem a contrapartida de dar lugar a uma mensagem "isenta", ao menos ideologicamente, quanto à mundividência, não impedindo a abertura às formas de conhecimento básicas (cfr. Veiga, 1998 e 1988a).

O pano de fundo das "teorias científicas" mais uma vez dificulta uma elaboração teórica desenfeudada – sem pôr de lado o ideal de rigor e consenso fundamentado.

De facto, as teorias são entendidas como tentativas de explicação de factos passados, ou possíveis e futuros, mais ou menos em contraposição à prática, mas sempre com as características de explicação e predição, baseadas numa sistematização de conhecimentos e crenças (não necessariamente reconhecidas como hipotéticas).

            

De modo sintético e claro, escreve Fullat (1990b, 437): «"Theoria", em grego, designou a acção de olhar e inspeccionar alguma coisa». Assim, «os espectadores do teatro grego foram uns teoréticos». Aplicando ao acto de ver intelectual, Aristóteles chamou de «theoretiké epistéme a ciência teorética, o discurso que se opõe tanto à acção como à produção. O conhecimento humano é teorético (...) quando ultrapassa a aísthesis e a empeiría». E continua Fullat: «Uma teoria é uma especulação sistemática que pretende descrever e explicar factos, submetendo-se ao controlo da experiência. Uma teoria científica pretende conhecer, sendo a sua função principal sistematizar e aumentar os conhecimentos. É esta a função da Teoria da Educação».

E Barrow (1990, sub v. theory), como que nos quer tranquilizar, ao dizer que «a teoria pode ser produtiva mesmo quando parcialmente errada», sendo uma das suas características principais a ajustabilidade ao progresso da observação – é portanto "errática" sem deixar de ser útil. Com o que não concordaria Santo Agostinho, para quem «o universo é a realização externa de uma ordem racional», é o sinal do pensamento de Deus – e por isso todo ele é bom (Taylor, 1989, 128).

Seguindo as ideias de Barrow (op. cit.), a teoria educacional seria um dos ramos teóricos mais desenvolvidos na época de Platão. Se é frequente ouvir dizer que a teoria educacional nasceu no nosso tempo, a razão mais provável desta afirmação é o reducionismo "científico", como parâmetro fundamental de avaliação dos produtos do pensamento. Este modo de ver ignora o elevadíssimo grau de profundidade e complexidade, que se atingiu desde Platão até ao fim do século XIX. Não deixa de ser evidente que os conceitos historicamente actuais só foram aprofundados no nosso tempo. Contudo, mesmo nestas especializações, persistem os problemas essenciais que poderiam ser sintetizados numa forma como esta: o que vale mais a pena e como escolher e agir de um modo que valha a pena.

No século XX, em especial, procurou-se elaborar a teoria da educação segundo as estruturas comuns às ciências naturais, embora a teoria médica, por exemplo, já apresente conceitos mais vagos, observações menos generalizáveis e um conceito de finalidade e de bom/mau mais "existencial" do que as ditas "ciências exactas".

Mas a teoria educacional apresenta características muito mais problematizantes: a) a finalidade é essencial, mas difícil de conceitualizar claramente e sofre de fogos cruzados (cfr. o próprio conceito de educação, criatividade, socialização, autonomia...)[1]; b) não tem uma metodologia específica, nem uma avaliação ou experimentação definidas, antes pelo contrário sempre questionáveis; c) os conceitos centrais não são «claros e distintos» como seria desejável, são difíceis de explicar, manipuláveis até, e a própria denominação são objecto de contestação.

A conclusão mais sensata sobre a grande dificuldade em incluir a teoria educacional na teoria científica, é justamente que não se pode incluir, como se tem verificado ao longo de muitos séculos. A educação não se reduz a investigação empírica, no sentido da epistemologia das "ciências empíricas" ou "exactas". Há questões filosóficas, psicológicas e sociológicas que atravessam continuamente o pensamento do filósofo da educação ou do educador em geral.

A confusão com a teoria estritamente científica é natural, uma vez que a teoria é um instrumento para a explicação e predição baseadas na razão, como é aceite por muitos autores. Explicando em termos gerais o que sucede no mundo dos fenómenos, não se está a reduzir necessariamente ao mundo empírico – que não cobre o conjunto dos fenómenos, nem evidencia qualidade superior (é apenas de outro género) na elaboração de termos gerais unificadores do "universo" abrangido pela própria perspectiva. A teoria sublinha a uniformidade, conexões e sentido existentes no mundo. A predição nasce desta possibilidade e depende do grau de "sucesso". E como já foi dito, uma teoria é sempre hipotética, sujeita a mais nova e mais válida teoria, mais de acordo com o conjunto de factos conhecidos. (Cfr. sobre este tema, Moore, 1983).

Vários autores chegam a lançar esta pergunta: será que, em Teoria da educação, evoluímos significativamente desde o tempo de Platão?

Seja como for, a melhor prática (por exemplo de um médico) não dispensa uma afincada base teórica, como claramente expôs Aristóteles (1959, 1094a. Cfr. as notas de Tricot).

Porém, os fins e conceitos educacionais não estão articulados claramente (podê-lo-ão ser?). A teoria, para vários autores, nem possui uma metodologia específica. Talvez o principal seja dizer que um teórico da educação deve ter presente a Filosofia, Sociologia, Psicologia e História.

Note-se porém que a "Teoria crítica" de meados do século XX parte do princípio, pode-se dizer, de que é impossível formar uma teoria única em educação. Ao princípio, fez a tentativa de cruzar a teoria marxista da sociedade com a psicanálise de Freud, num esforço muito próximo da "hermenêutica da suspeita" tão falada por Ricoeur. Actualmente, «a dúvida cartesiana atinge o coração dos fundamentos cartesianos» (Peukertruth, 1993, 161). A razão já não se dissocia da praxis transformadora. Os próprios Horkheimer e Adorno, segundo o autor recém citado (ibid.), reconhecem, no prefácio de Dialectic of Enlightenment, a frustração perante os objectivos da teoria crítica.

Mas continuam a afirmar que a razão é que nos liberta da natureza e nos permite dominá-la – o que reflecte o nosso medo de sermos dominados. O pior é quando o poder dos "grandes" transforma os seres humanos em natureza abaixo da humanidade... Assim, a razão, que implica liberdade, volta-se contra ela própria. Ainda segundo Peukertruth (op. cit.), Adorno chega mesmo a traçar um quadro bem negro do uso da razão no futuro!

Para Habermas, segundo Peukertruth (1993, 162) uma teoria crítica renovada tem que atender aos seguintes pontos: a) nem a lógica nem a matemática podem construir um sistema formal exaustivo; b) todas as teorias precisam de conceitos básicos, mas nem estes podem ser completamente determinados; c) os mesmos factos podem ser explicados, com igual nível científico, por diferentes teorias; d) não se deve abandonar facilmente uma teoria: a "sua verdade" compadece-se de factos que lhe são contraditórios. É na sua totalidade que uma teoria será substituída por outra. E acrescenta que em "ciências humanas", ninguém pode ter a pretensão de leis universais: iria contra a criatividade e contra a comunicação entre seres de direitos iguais (cfr. Rocha, A. E., 2000).

Segundo Habermas, é a linguagem que nos eleva acima da natureza: «Com a nossa primeira frase, exprime-se claramente a intenção de um consensus universal e sem barreiras» (Habermas, 1971, 314).

Em consequência, a fundamentação filosófica tem que partir dos pressupostos da acção comunicativa. Nesta se revela a intrincada fundamentação da ética, que é um problema básico em Filosofia da Educação. Pois comunicar com alguém é reconhecer nesse alguém o comum direito de resposta consensual ou conflitual. Uma teoria da educação nasce das inevitáveis pressuposições da comunicação humana (liberdade e direito à resposta, por exemplo).

Para Peukertruth (1993, 167), finalmente, «a tarefa básica para uma teoria da educação bem como para uma teoria da democracia, é desenvolver o conceito critico de comunicação de tal modo que possa descrever a estrutura e a finalidade dos processos educacionais de transformação e, ao mesmo tempo, estabelecer os ideais reguladores para a comunicação na tomada de decisões colectivas e não ideológicas. Para esta tarefa, são prometedoras as teorias de comunicação, que incluem a ética discursiva da comunicação auto-reflexiva. O núcleo normativo comum da educação e democracia pode ser desenvolvido dentro de uma teoria de processos de aprendizagem intersubjectivamente reflectidos, que são constituintes de uma esfera pública de aprendizagem social, criticismo e autonomia, processos que podem ser definidos quer colectivamente quer individualmente».

Se a razão, classicamente, procura uma reflexiva Weltanschauung, o nosso futuro depende, a nível educacional, de um «desenvolvimento comunicativo da razão» (op. cit., 169).  
   

* * *

 Passando para um registo mais convencional, proporia, pelo menos provisoriamente, a caracterização das três disciplinas sintetizadoras do fenómeno educacional, dadas por Fullat (1990b, 433):

a) «Teoria da Educação: teoria explicativa e global dos processos educativos na medida em que estes são aprendizagem de informações, de atitudes e de habilidades»;

b) «Pedagogia Fundamental: teoria pragmática e globalizadora dos processos educativos, tornando-os manipuláveis com eficácia. Teoria normativa do comportamento dos educandos»;

c) «Filosofia da Educação: saber globalizador, compreensivo e crítico, dos processos educacionais» atento aos «pressupostos antropológicos, epistemológicos e axiológicos e à produção de análises críticas».

________________________________
 

[1] «A evolução da problemática das finalidades tornou-se profunda e legitimamente anxiógena: da unidade à dispersão, da coesão à explosão, das certezas à incerteza, não foi outro o caminho entre 1900 e 2000...». Avanzini 1996, 239).

 


  Página anterior Página inicial Página seguinte