Manuel Alte da Veiga, Um critério para a Educação?, Braga, 2004.


3 – O que pode ser educação

 

3.1 Um percurso do «homem educado»

É um dos exercícios de «assumir-se como testemunha de muitas e diversas coisas» e de verificar que mesmo uma sintética abordagem histórica já mostra a dispersão e por vezes contradição entre os "conceitos universais" de educação, ao longo dos tempos.

O homem culto contemporâneo (no sentido “publicamente aceite”), que procura um saber enciclopédico "moderado" (isto é, "medido", "temperado", "ponderado" e "pensado") pode conceber – como exemplo duma perspectiva publicamente aceitável – os seguintes modelos históricos de homem educado: o homem educado da sociedade primitiva como aquele que foi iniciado no modelo de vida do grupo alargado a que pertence, adaptando a sua energia pessoal à necessidade de perpetuação dos rituais desse grupo, garantindo assim a respectiva concretização de felicidade (transcendente ou não); o homem educado do Oriente Antigo (fruto, particularmente, da sabedoria Indiana e Chinesa) como aquele que se reconhece numa relação transcendente relativamente aos "outros", à "Totalidade" e ao "Outro" única realidade: preocupado portanto com a vida espiritual, com a adesão à verdade fundamental e com o respeito pela ordem social, consciente dos limites humanos e do "limite", tolerante, asceta e bondoso, podendo ser filósofo, cientista e místico; o homem educado da Grécia Antiga (Ateniense), como aquele que sendo "homem livre", obteve um desenvolvimento harmónico de todas as suas virtualidades, para bem da polis, procurando manter-se aberto a todas as possibilidades humanas, questionador contínuo do "que é que vale a pena", do que é o Bem e o Prazer, e de como a razão, na sua busca da verdade, pode reger o comportamento, originando hábitos que facilitam o progresso do homem virtuoso; na Roma Antiga, é o homem dotado de um senso prático, simultaneamente austero, epicurista e estóico, cultor da família, do eclectismo, do Direito e da Oratória; na Civilização hebraica, é aquele que se rege pela Lei de Deus, cuja revelação reconhece, defensor da justiça (dos fracos, dos pobres...) e da integridade do seu Povo, procurando a Sabedoria humana e divina, através de toda a criação e dos Textos Sagrados, desenvolvendo uma relação pessoal com Deus, Bem supremo a quem ama sobre todas as coisas, e, por injunção, amando o próximo como a si mesmo; particularmente difícil e conflituoso é o estudo do que tem sido e do que deve ser o homem educado cristão, devido quer à pretensão universalista do Cristianismo, quer ao seu peso extraordinário em todo o mundo e especialmente na chamada "civilização ocidental": a sua definição antiga é objecto da perspectiva teológica e pastoral, sobrepondo-se à moderna, e a concretização histórica coincide com a dita História do Ocidente; a interacção, frequentemente conflituosa, entre fé e ciência, e a secularização fruto do próprio cristianismo, também dificultam uma definição – pelo que nos remetemos à característica básica do "homem educado cristão" – como viver a tensão própria da exigência do convite de Jesus Cristo e amar Deus sobre todas as coisas e a todos os homens não só como a si próprio mas como imagem do próprio Deus, aceitando o amor como origem e fim de todo o desenvolvimento técnico e dos conhecimentos científicos (exemplo histórico é a visão unitária e teocêntrica do universo, na Idade Média); o Renascimento é antropocentrista, voltando ao homem educado do mundo clássico, "humanista", empirista, racionalista, naturalista e defensor da crítica livre (mesmo no campo religioso), aceitando porém, genericamente, os valores sociais e espirituais do Cristianismo; ainda nesta linha, mas pretendendo maior independência do Cristianismo institucional, a Idade Moderna, a partir de Rousseau e da Revolução Francesa, acentua as ideias que ainda hoje se discutem em História, Filosofia, Psicologia, Sociologia, Antropologia e Pedagogia (para não mencionar a Teologia e as "Ciências exactas"); surge assim o homem educado como independente, culto, respeitador e dominador da natureza, participante da organização política e social, tolerante, consciente do bem comum, cheio de iniciativa e habilitado para a pôr em prática, defensor da justiça, igualdade, paz, compreensão, altruísmo, diálogo, da riqueza da tradição e do progresso, capaz de crítica objectiva e racional, sem desvios emocionais (deixa a emoção concorrer para o desenvolvimento pessoal e da comunidade), defensor da liberdade de pensamento, da busca da verdade, da dignidade da pessoa humana; segundo Mayer (1976, 38-42), o homem educado actual poderia ter as seguintes características: Pensamento reflexivo; Apreço à cultura; Desenvolvimento da criatividade; Compreensão e aplicação da ciência, metodologia e tecnologia; Contacto com grandes ideias; Valores morais e espirituais; Habilidades fundamentais; Eficiência vocacional; Educação eficaz; Cidadania efectiva; Saúde física e mental; Dinamismo e personalidade; Interesses permanentes e aventura; Obtenção da paz; Perpétuo renascer do homem.

Estas características encontram-se cada vez mais actualizadas nas actas dos congressos promovidos pelo Conselho Nacional de Educação e Fundação Calouste Gulbenkian, e pelos relatórios da UNESCO, desde o célebre de E. Faure até aos actuais, dirigidos por J. Delors.

Se quisermos concretizar a imagem "oficial" do homem educado português, basta remeter para os objectivos gerais e específicos do sistema educativo nacional, segundo a Lei de Bases do Sistema Educativo, in Diário da República, Lei nº 46/86 de 14 de Outubro (estudado em muitas teses de mestrado e de doutoramento na especialidade da Filosofia da Educação[1]).

Vale assim a pena abordar uma nova tentativa de clarificação do acto educativo. O que se tem feito sob o nome de educação e sob que legitimidade. No horizonte deste problema, encontra-se o que se entende que deve ser feito e sob que legitimidade.


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[1] Cfr. as teses de mestrado e de doutoramento dependentes do actual Departamento de Pedagogia da Universidade do Minho, na biblioteca dos Mestrados em Educação.


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