Liturgia Pagã

 

O Final da história é a gente que o vai dar

Quando ouvia dizer «antigamente é que era bom!», a minha mãe respondia: «Pois os melhores dias estão para vir!» Se no passado foi bom, é porque se pode fazer ainda muito melhor!

Era como se conhecesse a 1ª leitura: os tempos de glória do povo israelita são apresentados como estímulo para o futuro. Não podemos ficar no passado – uma coisa é a alegria de boas memórias, outra coisa é agarrar-se a elas «como um menino às saias da mãe». O «povo eleito» não é bom por Deus o ter ajudado mas será bom se se fizer digno de maiores ajudas de Deus e de toda a gente. O profeta sente que, da parte de Deus, há sinais de um futuro cada vez melhor para a Humanidade: e diz ao «menino» para se soltar do aconchego passado e «agarrar-se» ao trabalho criador de melhores tempos.

S. Paulo parece exagerar ao dizer: «esqueço o passado, para me lançar continuamente para a frente», pois o que se vai fazendo é que interessa. Porém, não é verdade que disse Jesus (Mateus, 13, 52): «o homem sábio e prudente tira do seu tesoiro coisas novas e coisas velhas»? Todo o tipo de passado se pode – e deve – transformar em energia, como já sabemos fazer até com o pior lixo das nossas lixeiras.

Prender-se demasiado a qualquer coisa, por muito boa que seja, traz o perigo de nos fazer parar no tempo. Por isso é que a riqueza e o poder facilmente se convertem em lixo mau. Na vida, tudo é um trampolim para melhor – se assim não fosse, tudo na vida seria um obstáculo onde esborrachamos o nariz. Mas se cada qual fica melhor, todo o mundo ficará muito melhor!

Jesus disse várias vezes (Mateus, 13) que o «reino de Deus» é como uma pedra tão preciosa que vale a pena vender todas as outras para a comprar; e que quem não deixa tudo para o seguir, «não é digno de ser seu discípulo» (Lucas, 14, 33). Importa é que o acto de deixar seja a melhor rentabilização daquilo que se deixa: todas as experiências humanas podem servir de material de «conversão», de alerta para novos caminhos, de ponto de partida de uma maneira de viver que nos realize cada vez mais.

Quanta energia se soltou do passado do «filho pródigo» (domingo «passado»), da experiência de vida de Zaqueu e da «mulher adúltera» do evangelho de hoje!

Quanta energia se solta da experiência de calamidades, do sofrimento e da morte? Todos lhes estamos sujeitos (não se sabe quando nem quanto), e o único antídoto é viver todos os tempos – bons e maus – como companheiros, cientes de que lucramos todos com o bem de todos. Por isso é que não devemos oferecer flores apenas aos mortos: oferecer aos vivos é muitas vezes custoso, mas é sinal de que temos confiança em construir com eles um futuro mais feliz.

Os escribas e fariseus de que fala o evangelho mostraram-se demasiado apegados a um preceito antigo atribuído a Moisés: punir com a morte quem infringisse o estatuto legal do casamento. A Lei justificava: «é preciso arrancar o mal do meio do povo» (Deuteronómio, 22, 22).

Na «mulher adúltera» apanhada em flagrante, os líderes religiosos desse tempo viam apenas uma «coisa» que encravava o sistema e devia ser eliminada pela Lei punitiva. Jesus, porém, viu mais uma «pessoa» com quem poderia caminhar, uma pessoa que podia ajudar e bem na tarefa de construir e anunciar os novos caminhos da justiça. Jesus «caminhava para a frente», sem medo: deu-lhes tempo para passarem a mão pela consciência e considerarem se «o mal» só podia estar nos outros e se estavam ao serviço da morte ou da vida.

E enquanto aguardava pela resposta e os deixava afastar, por caírem na conta de que não estavam na linha do Deus que apregoavam, ia escrevendo no chão, pacientemente, sinais que ninguém desvendará – pois é a nós que pertence imaginar livremente como construir os melhores dias que estão para vir.

13-03-2016


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