Liturgia Pagã

 

A raposa e as uvas

28º Domingo do tempo comum (ano B)

1ª leitura: Livro da Sabedoria, 7, 7-11

2ª leitura: Carta aos hebreus, 4, 12-13

Evangelho: São Marcos, 10, 17-30

 

Bem tentadores balançavam os cachos de uvas no alto da ramada. Mas quanto mais alto procurava saltar, mais estafada e desiludida ficava a raposa. Até que por fim se estendeu no chão de língua de fora. E fingindo desprezo, consolou o amor-próprio: «Afinal, não quero estas uvas; ainda estão verdes! Só cães as podem tragar».

Todo o ser humano procura ser rico por tendência natural, que só é boa ou má conforme o uso que dela se faz. O evangelho fala de um homem que soube tornar-se rico sem deixar de ser um «bom cidadão» e um judeu irrepreensível do ponto de vista religioso e moral. Mas estaria a fazer o necessário para alcançar a «vida eterna»? Jesus sossegou-o: até tinha a vida muito bem orientada. Ele, porém, queria saltar mais alto que a raposa. Jesus lançou-lhe então uma proposta arrojada: não pensar mais nos cachos de uvas e virar-se para outras «latadas», com mais desafios, novos prazeres, novos problemas. Uma proposta que se viu ser demasiado estranha ao sentir e ao pensar do homem rico.

Na catequese tradicional, interpreta-se frequentemente este episódio como uma condenação da riqueza, ao mesmo tempo que se exalta o desprendimento de Pedro que «até deixou tudo para seguir Jesus de perto!» (Os apetrechos piscatórios de Pedro & companhia não se comparavam aos bens do homem rico, mas o difícil é deixar tudo o que temos, seja muito ou pouco).

Jesus sublinha apenas que a riqueza material desse homem o fez desanimar de embarcar numa vida plenamente dedicada a outro tipo de investimento. Não condenou a riqueza (não era Jesus sustentado pela riqueza de amigos − homens e mulheres?) mas apontou como o apego aos bens deste mundo ou às várias formas de poder se pode transformar num empecilho à justiça do «reino de Deus».

Voltando à fábula: os ricos seriam aquelas raposas que se contentaram com as uvas; os pobres dão menos valor a essa «riqueza» (leram a 1ª e a 2ª leitura e falam do mais alto valor que é «o reino de Deus»). Por isso, os primeiros vão para o inferno e os últimos para o céu. E ainda há aqueles que «deixaram tudo» para seguir Jesus (é pelo menos o que dizem) e até já neste mundo encontrarão muito mais do que o «tudo» que deixaram.

Na realidade, a raposa abandonou as uvas não porque tivesse em vista um bem maior mas porque não era capaz de dar um salto suficientemente enérgico. Se estivesse em forma, bem que podia abocanhar as uvas e partir para «bens maiores». Por outro lado, se a raposa não desistiu à primeira foi-se treinando para a vida.

Também o «reino de Deus» só é construído por quem se esforça o que pode – e assim se «torna rico» quanto pode. Dizer que cada um de nós tem a sua «riqueza» e papel na história, não é um consolo: é a verdade – e só a nega quem se quer desculpar para pouco ou nada fazer.

O Livro da Sabedoria, escrito em grego pelos anos 75 a.C., reflecte o pensamento da antiga Grécia. Já então a riqueza era entendida como abundância quer de bens materiais quer de bens espirituais. A riqueza material só será boa na medida em que contribuir para o bem da comunidade. Aos «ricos» cabe portanto saber ter o prazer de investir no melhoramento das condições de vida materiais e espirituais da sociedade – revertendo numa superior qualidade de vida do próprio investidor. «Enriquecer» significaria sobretudo afirmar-se como alguém que aprecia e quer o que é bom.

No Antigo Testamento, a riqueza é recompensa de quem vive com justiça perante Deus. Mas também é tentação para o egoísmo, opressão e abuso grave dos que não podem resistir aos mais fortes. Os «pobres» e «desprotegidos» põem a nu a imperfeição da organização social. Sentem na pele a injustiça e podem adquirir profunda experiência da realidade humana, que os torna particularmente aptos para a construção de um mundo novo, onde Deus é a única «rocha sólida» sobre que vale a pena construir, pois é a fonte do critério de justiça e do bem-querer.

«Desprender-se de tudo» é estar livre e disposto para ajudar os outros. E por isso serão «acarinhados» pela sociedade, apesar de muitas oposições e perseguições por parte de quem só consegue viver em águas turvas. Talvez se possa dizer que são aquelas raposas que saltam tão alto que levam os cachos para distribuir e dar bom vinho…

11-10-2015


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