Ana Machado, Clones, para que vos queremos?, in: "PÚBLICO". Ano XIII, n.º 4685, 19/01/2003, págs. 2-3.

Clones, para que vos queremos?

Poucos temas dividem tanto a ciência e a sociedade; muitos defendem que énecessário afastar os fantasmas da clonagem reprodutiva para que se possa partir para a investigação científica. Outros afastam as duas e acham que é mais prudente continuar apenas com a investigação em animais. Será a clonagem uma bênção ou uma maldição? A resposta poderá estar no frágil terreno da ética. Por Ana Machado

Em 1932, Aldous Huxley descreveu em “O Admirável Mundo Novo” uma sociedade onde os homens eram seres criados em máquinas, nor­malizados e controlados pela tecnologia. Mas a paisagem de caos que vai na cabeça da sociedade do século XXI pode comparar-se-lhe. No meio de anúncios da Clonaid e dos raelitas, que afirmam que a Eva clonada está aí — o terceiro clone nascerá amanhã e será japonês, anunciou ontem a seita —, ou de empresas de biotecnologia ansiosas por desbravar novos caminhos, os cidadãos assustam-se. Os cientistas dividem-se entre travar o honor quase possível e mostrar que a clonagem tam­bém pode servir a medicina e a sociedade.

Na última década do século passado, houve muitos avan­ços sobre o conhecimento da vida da célula e do desen­volvimento embrionário. Normalmente, basearam-se em largas décadas de inves­tigação em animais. Mas o nascimento do primeiro mamífero clonado a partir de uma célula somática, ou seja, adulta, já especializada, trou­xe um contributo inesperado. A ciência tinha descoberto que o ciclo de vida da célula era reversível Podíamos parar-lhe o relógio e fazê-la começar tudo de novo.

“A clonagem faz-se há mui­tos séculos. O que se faz com os enxertos na agricultura é clonagem. Nos animais come­çou já há décadas. Mas o que a Dolly inaugurou foi a dis­cussão sobre a clonagem com células adultas. Descobriu-se que uma célula somática po­de voltar a ser indiferenciada, pronta a especializar-se de novo. Talvez esse tenha sido o maior contributo da Dolly para a ciência”, explica Jorge Sequeiros, geneticista, profes­sor do Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar, investigador do Instituto de Biologia Molecular da Univer­sidade do Porto e presidente do colégio de genética médica da Ordem dos Médicos.

Usar as células indiferencia­das de um doente ou obtidas através da clonagem de um embrião com o seu patrimó­nio genético, em transplantes de órgãos ou enxertos de teci­dos, é visto como uma solução para os problemas actuais dos transplantes. Põe-se de lado a incompatibilidade imunitária dos órgãos e diminuem-se os efeitos nefastos dos medica­mentos imunossupressores. Ou ainda como uma saída para doenças degenerativas, contra as quais ainda não sa­bemos lutar. Por isso, alguns cientistas fazem tanta pressão para que a investigação na área da clonagem terapêutica seja autorizada e apoiada.

E em relação à clonagem reprodutiva? “Acho que as pessoas não estão nada infor­madas e retêm o que é mais evidente, que é a parte fantas­magórica da clonagem repro­dutiva”, diz Jorge Sequeiros. “Mas não há assim tantas ra­zões para nos preocuparmos. O que fica da clonagem repro­dutiva, no fundo, é o propósito narcísico de criarmos um ser igual a nós próprios — o que é impossível, pois mesmo nos gémeos monozigóticos, que serão sempre os clones mais perfeitos, nem as impressões digitais são iguais. Temos de ter em conta o ambiente e o acaso. Se algum dia se conse­guir fazer um clone humano, algumas pessoas vão ficar desiludidas”, defende.

 

Definir quando começa a vida

“A clonagem reprodutiva está a prejudicar o avanço científico da terapêutica e da investigação com células estaminais. Vemos isso nos Estados Unidos, onde não se distingue uma coisa da outra.”

Então porque não autori­zar a clonagem terapêutica? “Temos de definir quando de facto começa a vida humana”, defende Jorge Sequeiros. Será que um ovócito que iniciou o processo de divisão é um em­brião em potência?

“Não concordo com o que alguns especialistas advogam sobre os benefícios da clona­gem terapêutica. É preciso criar sempre um clone humano, uma vez que se o implantásse­mos no útero de uma mulher, ele daria origem a um bebé”, afirma Agostinho Almeida Santos, director do Departa­mento de Medicina Materno-Fetal, Genética e Reprodução Humana dos Hospitais Uni­versitários de Coimbra. “É o mesmo que criar um bebé para que sirva de dador de medula compatível para um irmão doente. Estamos ou­tra vez a desdignificar o ser humano. E se se sabe que os clones têm alterações gené­ticas que originam doenças, estamos a aproveitar células geneticamente afectadas. Se há receios, o melhor é não o fazer”, defende.

“No que respeita à clonagem humana, quer reprodutiva, quer terapêutica, não encon­tro aspectos positivos. Apenas se tem falado de dinheiro e poder, do homem coisificado”, acrescenta Agostinho Almeida Santos.

No confronto entre as vá­rias posições na comunidade científica, à luz da ética, fica o espaço para a lei definir o que deve ser ou não proibido e permitido. O Estado portu­guês está a dar os primeiros passos para construir uma legislação sobre a utilização de embriões em investigação. As primeiras reuniões de um grupo de trabalho preparató­rio, coordenadas pelo médico Daniel Senão, terão lugar esta semana.

Mas Agostinho Almeida Santos refere que a sociedade também deve ter um papel regulador: “Não defendo que se deva parar a investigação e não digo que não haja pessoas a fazer trabalho sério. Os cien­tistas devem aprender a clonar ADN, mas o processo vital em si, esse, continua envolto nos insondáveis mistérios da natureza. E cabe à sociedade dizer que não quer que eles clonem ninguém. A ciência sem ética é um crematório de células e a ética sem ciência é uma fogueira inquisitorial. E preciso muita atenção. Estamos a caminho do eugenismo doce e democrático. Tudo o que não é proibido é permitido.”

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Inserido em 20-04-2018