Poucos temas
dividem tanto a ciência e a sociedade; muitos defendem que
énecessário afastar os fantasmas da clonagem reprodutiva
para que se possa partir para a investigação científica.
Outros afastam as duas e acham que é mais prudente continuar
apenas com a investigação em animais. Será a clonagem uma
bênção ou uma maldição? A resposta poderá estar no
frágil terreno da ética. Por Ana Machado
Em 1932, Aldous
Huxley descreveu em “O Admirável Mundo Novo” uma
sociedade onde os homens eram seres criados em máquinas, normalizados
e controlados pela tecnologia. Mas a paisagem de caos que vai
na cabeça da sociedade do século XXI pode comparar-se-lhe.
No meio de anúncios da Clonaid e dos raelitas, que afirmam
que a Eva clonada está aí — o terceiro clone nascerá
amanhã e será japonês, anunciou ontem a seita —, ou de
empresas de biotecnologia ansiosas por desbravar novos
caminhos, os cidadãos assustam-se. Os cientistas dividem-se
entre travar o honor quase possível e mostrar que a clonagem
também pode servir a medicina e a sociedade.
Na última década
do século passado, houve muitos avanços sobre o
conhecimento da vida da célula e do desenvolvimento embrionário.
Normalmente, basearam-se em largas décadas de investigação
em animais. Mas o nascimento do primeiro mamífero clonado a
partir de uma célula somática, ou seja, adulta, já
especializada, trouxe um contributo inesperado. A ciência
tinha descoberto que o ciclo de vida da célula era reversível
Podíamos parar-lhe o relógio e fazê-la começar tudo de
novo.
“A clonagem
faz-se há muitos séculos. O que se faz com os enxertos na
agricultura é clonagem. Nos animais começou já há décadas.
Mas o que a Dolly inaugurou foi a discussão sobre a
clonagem com células adultas. Descobriu-se que uma célula
somática pode voltar a ser indiferenciada, pronta a
especializar-se de novo. Talvez esse tenha sido o maior
contributo da Dolly para a ciência”, explica Jorge
Sequeiros, geneticista, professor do Instituto de Ciências
Biomédicas de Abel Salazar, investigador do Instituto de
Biologia Molecular da Universidade do Porto e presidente do
colégio de genética médica da Ordem dos Médicos.
Usar as células
indiferenciadas de um doente ou obtidas através da clonagem
de um embrião com o seu património genético, em
transplantes de órgãos ou enxertos de tecidos, é visto
como uma solução para os problemas actuais dos transplantes.
Põe-se de lado a incompatibilidade imunitária dos órgãos e
diminuem-se os efeitos nefastos dos medicamentos
imunossupressores. Ou ainda como uma saída para doenças
degenerativas, contra as quais ainda não sabemos lutar. Por
isso, alguns cientistas fazem tanta pressão para que a
investigação na área da clonagem terapêutica seja
autorizada e apoiada.
E em relação
à clonagem reprodutiva? “Acho que as pessoas não estão
nada informadas e retêm o que é mais evidente, que é a
parte fantasmagórica da clonagem reprodutiva”, diz
Jorge Sequeiros. “Mas não há assim tantas razões para
nos preocuparmos. O que fica da clonagem reprodutiva, no
fundo, é o propósito narcísico de criarmos um ser igual a nós
próprios — o que é impossível, pois mesmo nos gémeos
monozigóticos, que serão sempre os clones mais perfeitos,
nem as impressões digitais são iguais. Temos de ter em conta
o ambiente e o acaso. Se algum dia se conseguir fazer um
clone humano, algumas pessoas vão ficar desiludidas”,
defende.
Definir
quando começa a vida
“A clonagem reprodutiva está a prejudicar o avanço científico
da terapêutica e da investigação com células estaminais.
Vemos isso nos Estados Unidos, onde não se distingue uma
coisa da outra.”
Então porque não
autorizar a clonagem terapêutica? “Temos de definir
quando de facto começa a vida humana”, defende Jorge
Sequeiros. Será que um ovócito que iniciou o processo de
divisão é um embrião em potência?
“Não
concordo com o que alguns especialistas advogam sobre os benefícios
da clonagem terapêutica. É preciso criar sempre um clone
humano, uma vez que se o implantássemos no útero de uma
mulher, ele daria origem a um bebé”, afirma Agostinho
Almeida Santos, director do Departamento de Medicina
Materno-Fetal, Genética e Reprodução Humana dos Hospitais
Universitários de Coimbra. “É o mesmo que criar um bebé
para que sirva de dador de medula compatível para um irmão
doente. Estamos outra vez a desdignificar o ser humano. E se
se sabe que os clones têm alterações genéticas que
originam doenças, estamos a aproveitar células geneticamente
afectadas. Se há receios, o melhor é não o fazer”,
defende.
“No que
respeita à clonagem humana, quer reprodutiva, quer terapêutica,
não encontro aspectos positivos. Apenas se tem falado de
dinheiro e poder, do homem coisificado”, acrescenta
Agostinho Almeida Santos.
No confronto
entre as várias posições na comunidade científica, à
luz da ética, fica o espaço para a lei definir o que deve
ser ou não proibido e permitido. O Estado português está
a dar os primeiros passos para construir uma legislação
sobre a utilização de embriões em investigação. As
primeiras reuniões de um grupo de trabalho preparatório,
coordenadas pelo médico Daniel Senão, terão lugar esta
semana.
Mas
Agostinho Almeida Santos refere que a sociedade também deve
ter um papel regulador: “Não defendo que se deva parar a
investigação e não digo que não haja pessoas a fazer
trabalho sério. Os cientistas devem aprender a clonar ADN,
mas o processo vital em si, esse, continua envolto nos insondáveis
mistérios da natureza. E cabe à sociedade dizer que não
quer que eles clonem ninguém. A ciência sem ética é um
crematório de células e a ética sem ciência é uma
fogueira inquisitorial. E preciso muita atenção. Estamos a
caminho do eugenismo doce e democrático. Tudo o que não é
proibido é permitido.”
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