Para facilidade de
exposição dividiremos este trabalho em três partes: ausência de
Deus na Idade Média, na Renascença e na Actualidade.
Na primeira o homem
procura acima de tudo Deus, na Renascença procura-se a si mesmo,
na Actualidade, as actividades culturais ou científicas são de
natureza anti-humana e por isso mesmo monstruosa pois como Claude
Bernard disse: «Os homens feitos pela ciência são monstros
morais.» − Comecemos pela Idade Média.
Quando o
Império Romano caiu, derrubado pelos
bárbaros, não deixou uma força organizada capaz de disciplinar e
orientar a nova sociedade que se ia formando, dum modo tumultuoso,
no seio de povos menos cultos e esclarecidos. Foi a Igreja com a
sua hierarquia, a sua ordem, a sua disciplina quem teve de assumir
a força ordeira de Roma decaída, deste modo se explicando, em
parte, sua intromissão nos negócios seculares. A tradição do
totalitarismo do império romano não estava ainda completamente
extinta e os príncipes cuidavam de moldar, de acordo com ele, os
seus estados, quando a Igreja surgiu antepondo aos seus poderes
discricionários os direitos da pessoa humana.
Foi este um dos
momentos mais sublimes da história: aquele em que o homem com
todos os direitos, inerentes à sua origem divina substitui o
indivíduo, sem direitos, quase sem vontade, diante da omnipotência
do Estado Romano.
É que, como diz
Langmead Casserley, (a quem se foi buscar o título desta
conferência) se a religião é a procura de Deus pelo Homem, o
Cristianismo é a procura do Homem por Deus e sendo assim ele não
podia, de modo algum, aceitar o Homem inteiramente subjugado às
conveniências do Estado, tinha de ir à procura daquele que poucos
séculos antes tinha sido resgatado pelo sangue de Cristo, no
Calvário. De aí a intransigência da igreja com o Poder Temporal
que pretendia absorver o homem no Estado. Não quero dizer que, ao
procurar reprimir os desmandos da autoridade dos príncipes, ela
própria não viesse a ser imbuída do desejo de mando.
No entanto, no século
IV, o monaquismo salvou-a dos efeitos
deletérios da demasiada preocupação com os bens terrenos que às
vezes era afrontosa de miséria dos servos da gleba, como aconteceu
com o gesto louco dum bispo inglês que, por fanfarronada, adquiriu
o pano mais caro do mercado e dele fez cobertas para os seus
cavalos. Em compensação S. Bernardo proibia os seus monges
cistercienses de fazerem edifícios demasiadamente ornamentados do
que, valha a verdade, mais tarde se esqueceram.
O Monaquismo era
certamente muito útil à salvação dos que se encerravam nos
conventos, entregues à oração e à ascese, mas não tinha uma acção
directa sobre o povo que permanecia crente, embora, mas ignorante
e bárbaro. Foi necessário que aparecessem os franciscanos e os
dominicanos que desprezavam os bens do mundo, vivendo no meio
deles, para que todos fossem edificados com as verdades religiosas
e melhor acção apologética se fizesse.
Apesar da pouca conta
em que de princípio os franciscanos tinham as letras profanas,
foram eles que elevaram Oxford à altura da Sorbona e um dos seus
frades, Rogério Bacon, já nesse tempo dado à pesquisa
experimental, teve licença de Clemente IV para possuir na sua cela
penas e tinta.
Não quero dizer que
neste tempo de / 4 / intensa fé religiosa não aparecessem
heresias. De facto assim sucedeu; por isso Stº Agostinho, um dos
maiores homens de todos os tempos, pediu a intervenção de braço
secular para dominar os hereges. No entanto, nesses tempos de fé
ardente, as próprias heresias não eram originadas pelo desejo do
mando, das riquezas, pelo ganho dos bens do mundo, enfim, mas
antes desvios dentro de uma viva e insatisfeita ansiedade de Deus.
A grandeza imperecível
da Idade Média está patente no
assombro das suas catedrais e na Suma de S. Tomás. Se nas
catedrais Deus é glorificado pelas realizações sublimes da arte,
na Suma, o homem é erguido até à compreensão de Deus pela Razão.
Nenhuma arte exprime
as intenções, as aspirações, os sentimentos duma época com tanta
grandeza e tanta eloquência como a arquitectura.
Salazar, ao visitar
uma das exposições de maquetes e fotografias de monumentos e
edifícios já realizados, lamentava que um tal volume de obras não
desse origem a um estilo que representasse as preocupações
ideológicas e sentimentais da nossa época.
Sim, tinha razão o
grande mestre. Mas como seria possível a criação dum estilo
original que fosse a expressão sublime duma ideia ou dum
sentimento se nos nossos tempos tudo está em evolução contínua, se
não temos ideias definitivas na arte, na filosofia, na própria
ciência e se o nosso sentimento é vago e confuso e muitas vezes
contraditório?
Caso curioso; a
pintura medieval é simples, risonha, ingénua, antes expressão de
sentimento que desenho de forma, pretendendo deixar nas almas uma
suave esperança da eternidade; é uma promessa do Céu! E no entanto
ela tinha razão para revestir uma expressão de tragédia pois o
terror da Peste Negra pairou séculos sobre os homens medievais que
desiludidos do mundo, chocados pela contingência, firmes na sua
fé, não perdiam o tempo a retratar a sua inevitável dor mas a
glorificar a sua esperança num mundo melhor.
E, no entanto, esse
terror da Peste Negra só o poderíamos compreender hoje se o
assemelhássemos ao duma bomba de hidrogénio caindo sobre uma
cidade.
Em alguns países, na
Inglaterra sobretudo, os vivos já não chegavam para sepultar os
mortos que apodreciam pelas ruas e sobre quem caíam bandos negros
de corvos.
No entanto a pintura,
como já dissemos, não reflecte esta angústia, antes parece tocada
duma suave espiritualidade, como se pode ver em Fra Angélico.
A mulher deve muito à
Idade Média. Comte, citado pelo senhor Cardeal Patriarca, no seu
livro «A Idade Média» afirma: «Ninguém já contesta ter o
catolicismo melhorado, essencialmente, a condição social da
mulher».
É sabido que, entre os
antigos, a mulher pouco mais era que uma escrava, E, ao
renderem-lhe homenagem, faziam-no com reminiscência do prazer
sensual que dela lhes vinha.
A galantaria para com
a mulher, que estava na índole da própria instituição da Cavalaria
sua defensora e de todos os fracos, contribuiu para diminuir a
barbaridade da guerra. Se quiséssemos nos nossos dias encontrar
instituições animadas dos mesmos desejos, teríamos de ir
procurá-los no areópago palrador da Sociedade das Nações − o que
demonstra que este desejo de melhorar e mesmo suprimir a guerra
vem de longe, sem que até hoje tenha logrado efeito.
Uma outra acusação
feita à igreja é a de ter consentido, sem um protesto, na miséria
do povo medieval tão devotamente crente, como já vimos. Segundo
Michelet, essa desgraçada gente alimentava-se de talos e de
raízes, o que é totalmente falso, conforme prova o senhor Cardeal
Patriarca ao dizer: «A alimentação aproximava-se do que é hoje,
com estas diferenças mais importantes: consumo maior dos
laticínios, grande uso do mel que às vezes servia de açúcar,
substituição das favas, das ervilhas e ainda das castanhas, no
consumo ordinário, ao consumo actual da batata, desconhecimento
dos géneros coloniais, reveladas pelas descobertas, como o chá e o
café». E Alberto Sampaio acrescenta: «a mesa do povo não se
distinguia muito da dos cavaleiros nobres. E isto por várias
razões»: Não só era frequente os nobres comerem com os populares,
mas ainda lhes entregavam facilmente a criação dos filhos (o que
denota uma grande semelhança no teor de viver), as obrigações da
comida fornecida aos mordomos reais por ocasião da cobrança de
renda provam que aquela não excedia o orçamento doméstico dos
vilãos; a sobriedade da mesa real / 5 / nos primeiros reinados,
segundo o testemunho de alguns documentos, era grande».
Com estas palavras
autorizadas se desfaz mais uma lenda. Seria fácil rebater outras
que os inimigos da Igreja têm criado, como por exemplo a do
congresso em que eruditos padres negaram a alma à mulher. Não vale
a pena. Fiquemos por aqui com este pálido e desordenado bosquejo
duma das épocas mais grandiosas da história, com três marcos
eternos orientando o destino humano: as catedrais, a Suma
Teologia, e a Divina Comédia tão exalçada por Carlyle.
Vejamos agora a
Renascença.
Os gregos, diz Charles
Moeller, procuravam no homem aquilo que não podiam encontrar senão
em Deus.
Ora a Renascença é um
regresso ao helenismo, portanto, também ela seguindo o mesmo
método, procura no homem o que só pode encontrar em Deus, ao
contrário da Idade Média que, como acabámos de descrever,
procurava acima de tudo, Deus, no homem e na Natureza.
Podemos dizer, para
caracterizar melhor este período da história, como Bernarht, que
os cristãos colocaram o Seu Deus ao lado dos deuses antigos. E de
facto estamos em crer que a Renascença repudia os últimos
vestígios do orientalismo que continha em si a religião monoteísta
que dizia professar, para se dar toda às tradições ocidentais de
que contava a deificação dos imperadores e o trato fácil entre os
homens e os deuses, o que tornava estes demasiadamente humanos.
Dentro desta ordem de
ideias, a arte, na Renascença não se preocupa tanto em glorificar
a Deus como em sublimar o homem que a paixão artística devora a
ponto de não compreender a vida sem a arte.
O corpo que a Idade
Média, com os olhos postos em Deus, desprezava (e também porque o
vira em plena Peste Negra apodrecer pelas ruas, coberto de manchas
negras) o corpo que, segundo os detratores da grandeza medieval,
não fora lavado durante mil anos (o que é redondamente falso de
passagem se diga) o corpo é agora objecto de cuidadosos desvelos
inventando-se pomadas e elixires para rejuvenescer a pele, sendo
de muito bom para o caso o leite da jumenta.
Esta preocupação com o
humano, segundo me parece, fez com que o Diabo fosse apresentado
como uma figura humana que discute nos concílios, entra nos
ateliers dos pintores para ser retratado, prega risonhas partidas
aos frades, aguça as penas de Erasmo e de Lutero.
Até mesmo no modo como
se desfaz dos seus inimigos o Homem da Renascença presta um certo
culto à dignidade do corpo, pois não esfaqueia como na idade
média, nem derrama sangue copioso e abjecto, nem enforca mostrando
o horror do cadáver com a língua estendida, os olhos saltando das
órbitas mas muito simplesmente, usa venenos subtis que fazem com
que o inimigo resvale na morte, dignamente, como se passasse para
ela através do sonho.
De resto este uso do
veneno encontra plena justificação nas razões de Estado que
Machiavelo criou e segundo a qual os fins justificam os meios e as
conveniências do Estado estão acima dos interesses dos cidadãos.
Onde estão os direitos da pessoa humana que a Igreja antepôs aos
direitos do Estado? Ninguém se lembra deles.
O homem da Renascença,
vive para o gozo e contempla, com volúpia, a carne rosada do nu
das pinturas, e ri deliciado com os contos de Bocácio! Alegria!
Vida! Decerto ainda há crença em Deus, ainda se lhe erguem templos
magníficos. Sim... Mas estas fábricas grandiosas visam antes
glorificar os poderes artísticos e construtivos do Homem do que a
glorificar a Deus!
Na Idade Média os
cristãos organizavam as cruzadas para libertar a Terra Santa;
agora Francisco I pretende unir-se com os Turcos, inimigos
tradicionais, para combater Carlos V que, por sua vez, sendo
imperador católico, saqueia Roma.
Ah, como era enfadonha
essa Idade Média com os seus claustros sombrios, a severidade da
doutrina cristã, a massada dos novíssimos do homem! Precisamos de
descobrir o mundo e, mais do que isso, gozar bem a vida, no amar e
no comer. Nessa Idade Média sombria, o homem não conhecia os
refinamentos da culinária. Assava bois inteiros e devorava-os
durante semanas. Agora, graças aos condimentos que as descobertas
geográficas fizeram aparecer no mercado, a quantidade
substituiu-se pela qualidade. Tudo é leve, refinado, subtil,
imponderável. E eis que se ergue no seu trono de ouro o árbitro
supremo dos / 6 / destinos do mundo! Senhor absoluto, mais cruel
que os senhores feudais, frio calculista na alma de Shillok do
judeu avaro, ele vai exercer tiranicamente o seu império até ao
fim do mundo, ou até que o homem volte ao regime das trocas com
que iniciou a sua vida de civilizado. O Dinheiro! Graças a ele, os
Médicis sentar-se-ão nos tronos papais e no trono dos Reis. Como é
agradável o seu tinir na banca que eles apresentam no mercado de
Florença. Os filhos dos Banqueiros são reis e papas. Onde está a
velha nobreza goda?
A Idade Média
esgotou-se a procurar a pedra filosofal que lhe permitiria
encontrar o ouro. Loucura! O ouro vem do Novo Mundo carregado em
grandes navios e alcança-se não já pela força, mas pacificamente,
pela negociação comercial.
Não se pode negar que
nesta época o progresso material fosse na verdade grande, mas tem
de se afirmar que, moralmente, o homem decaiu muito. Será que
existe entre o progresso material e o rebaixamento moral urna
relação constante?
No capítulo que se vai
seguir vamos dizer algumas palavras sobre este assunto. Por agora
fiquemos sobre a Renascença, que a traços largos procuramos
descrever, este conceito: É uma idade em que o homem se toma como
medida de todas as coisas.
Passemos aos
tempos modernos que se desenrolam sob
a égide do Monstro cuja figura horripilante era venerada como um
deus, por povos primitivos como os Aztecas. É que o homem
primitivo, quando quer venerar um ser superior, dá-lhe uma forma
monstruosa, nela pretendendo concretizar o seu ódio, o seu temor e
a sua veneração por um ser superior sugerido pelo Medo e pelo
mistério impenetrável em que vive.
Parece, nos nossos
dias, termos voltado de novo a um culto inconsciente e disfarçado
de esses deuses estranhos.
Não se julgue ousada a
nossa afirmação, pois que vamos demonstrar a sua verdade.
Comecemos pela
Técnica que dantes limitava a sua
audácia à realização de obras portentosas obtidas com a utilização
exclusiva dos seres materiais (a torre mais alta que as nuvens, a
ponte de vão quilométrico) mas que agora realiza prodígios
admiráveis com os próprios seres vivos, mediante as sábias
conclusões da genética. Assim é que nos dá formas monstruosas de
animais domésticos destinados a fornecer-nos exclusivamente carne
e outras não menos monstruosas destinadas a fornecer-nos
exclusivamente leite e cujos úberes arrastam quase pelo chão. Mas
isto não é nada!... Curiosos são os cãezinhos bizarros criados
para regalo das senhoras! Lãzudos, baixinhos, de perna curta,
orelhas enormes, como folhas de abóbora! Eis a grande maravilha!
No reino vegetal
também há prodígios na criação de frutos descomunais, ou de
espécies novas mais aptas a desenvolverem-se em determinados
climas.
O homem actuando sobre
os cromossomas pretende corrigir a obra de Deus no sentido que lhe
convém. Mas esta velha técnica dos cruzamentos (ainda que agora
altamente desenvolvida) nada representa diante das enxertias
realizadas em seres vivos que levaram ao assombro dum cão com duas
cabeças por ambas comendo e ladrando!
Mas não só as técnicas
têm estes objectos bizarros e utilíssimos; a própria ciência os
tem. Efectivamente o complexo de Édipo da teoria freudiana não é
uma forma monstruosa do amor materno?
E a fecundação
artificial realizada nos seres humanos com a mesma liberdade com
que se realiza no animal? O fruto sem amor! A criança nascida
desta prática médica ilude-se quando chama pai ao homem que vive
com a mãe, pois o seu verdadeiro pai é outro e tanto pode ser um
bandido como um homem de bem, um génio, como um cretino! Por isso
todo o cuidado é pouco em esconder da vítima esta origem
humilhante para que se não gerem neles complexos que o
inferiorizem. Então na família forma-se uma conjura para guardar
silêncio, nada revelarem à criança que se ilude quando pensa que o
pai é aquele que se consorciou com a mãe. Os amigos são
prevenidos. Que ninguém lho diga, que ele viva e morra na
ignorância da sua origem!
A família passa os
anos no sobressalto de que ele por acaso, ou por maldade, venha a
saber que andava iludido quanto à sua paternidade e venha a criar
complexos que o inferiorizem. Porque «complexo de inferioridade»,
são palavras novas do vocabulário do Medo. Os complexos são uma
espécie de / 7 / constipações do espírito; apanham-se quando menos
a gente cuida e assim como para fugir às constipações é necessário
evitar as correntes de ar, para não se cair no complexo de
inferioridade é preciso fugir-se à humilhação.
Esta concepção do
indivíduo inferior, de passagem seja dito, também é moderna,
aparece quando começa a faltar aos homens capacidade para suportar
as fraquezas do seu próximo e as suas próprias... Mas voltemos ao
monstro. Poderá dizer-se: Essa história do Monstro é uma
descabelada fantasia... Não há razão alguma para aproximarmos
certas criações modernas das criações monstruosas do passado,
nitidamente fantásticas... O Monstro era um símbolo dos perigos da
floresta no meio da qual o homem vivia. O machado e o fogo
derrubaram e destruíram a floresta e os monstros desapareceram.
Hoje já os não há.
É verdade,
desapareceram das florestas mas foram refugiar-se nas montanhas
geladas do Himalaia, onde o homem, há poucos anos ainda encontrou
os malditos, que ali estavam de novo à sua espera. A imprensa, a
Rádio têm-nos descrito, as suas pegadas foram fotografadas. Há
quem afirme tê-lo visto, há quem lhe negue a existência. A
Ciência, a Rádio, a Imprensa, conhecem-no pelo Abominável Homem
nas Neves de que todos temos ouvido falar e que é apenas o monstro
moderno, porque não se diga que a imaginação assustada do homem
esclarecido por trinta séculos de civilização já hoje não cria
monstros. Não, o homem até ao seu desaparecimento da face da
Terra, há-de temer-se sempre da sua própria sombra.
Para continuar a
demonstrar que vivemos sob o signo do mostrengo falemos agora das
artes. Não é verdade que a pintura moderna se exprime por formas
monstruosas? Ninguém o ignora. Quanto à música estamos em crer que
se Pitágoras conhecesse a música do Jazz não diria que o éter
agitado pelos movimentos dos astros solta os sons harmoniosos a
que se chama música das esferas. E a poesia? Não pretende ela ser
um movimento instintivo? Não recorre mais ao símbolo que à ideia,
como o homem primitivo? Creio que a resposta não pode deixar de
ser afirmativa. Não será, porque o símbolo é mais «rico» do que a
ideia?
De tudo quanto
dissemos, concluímos que, como querem os existencialistas a Náusea
nos persegue e para lhe fugirmos procuramos colorir a vida com as
tintas fascinantes do que é bizarro.
Quando as caravelas
partiam às descobertas, os reis e os príncipes pediam aos capitães
que lhes trouxessem novidades das terras estranhas e desconhecidas
para onde iam navegar. E os capitães faziam-lhes a vontade e
traziam com eles homens descomunais, de grandes pés, que comiam
ratos vivos ou selvagens tímidos que tinham medo de galinhas.
Mas esta cura da
Náusea pelo bizarro, pelo inédito, tem uma expressão dolorosamente
melancólica naquela cena em que Filipe II de Espanha triste e
soturno vencido pelo tédio, recebe a primeira flor da camélia, (a
semente fora trazida do Japão pelos nossos navegadores) que
desabrochou na península. Então perante a alvura faiscante das
pétalas, Filipe deslumbrado sorri, deliciado!
O homem moderno
vencido pela Náusea tem uma necessidade extrema do inédito para
sorrir, como sorriam os príncipes e os reis desenfadados com as
graças dos anõezinhos da sua corte.
Façamos agora para
tornar mais convincentes as afirmações já feitas (e as que vamos
ainda fazer) uma rápida análise do panorama
contemporâneo no ponto de vista cultural, artístico,
científico e filosófico.
A Ciência dos nossos
dias de tal modo se especializou que não seria fácil, baseando-nos
em qualquer dos seus ramos, tão estranhos uns aos outros, criar um
sistema geral de Filosofia que a todos enquadrasse numa síntese
grandiosa.
Se admitíssemos, como
os marxistas, que o materialismo dialético se aplica à matéria
sujeita à evolução, aceitaríamos ao menos, um princípio comum na
génese das diferentes formas porque vai passando a matéria na sua
evolução. Sucedeu porém que ao aplicarem a teoria do materialismo
dialético à genética, os sábios russos encontraram sérias
dificuldades que foram causas de controvérsias e discussões.
Por outro lado, se não
podemos basear nos dados da ciência actual uma explicação
metafísica da vida, muito menos podemos tirar delas normas de
acção político-social ou moral e tudo quanto fizermos nesse
sentido / 8 / é pura fraude, como acontece com certas criações
históricas e políticas dos nossos dias que, apresentadas como
verdades, não passam na sua essência de verdadeiros mitos como o
da vocação imperialista de Roma, dos fascistas, o da superioridade
da Raça, dos alemães, o da Sociedade sem classes e da igual
distribuição das riquezas, dos Russos, o da Democracia, dos povos
vencedores da guerra.
Estas fraudes se
fossem apenas pitorescas, nenhum mal vinha delas ao mundo, mas o
pior é que contêm em si um dinamismo que leva à guerra. É que os
deuses que vivem no centro da teia de aranha mitológica são
cruéis, sanguinários, traiçoeiros, exigem a câmara de gás, o tiro
na nuca a morte de simples cidadãos franceses, à simples menção do
seu nome nas emissoras.
Fala-se das torturas
da Inquisição que era um tribunal político e religioso e não se
tem em conta o número de vítimas que neste século da liberdade e
da luz foram sacrificadas a esse deus sanguinário!
Se o fanatismo dos
mitos, de que já falámos, torna os homens cruéis, sanguinários é,
se o homem tem necessidade de adorar um Deus, porque não há-de
adorar a «Humanidade» que graças à ciência e à técnica tem operado
maravilhas no mundo e que na sucessão incontável das gerações se
pode considerar eterna? Não se encerra nela um poder que
transcende o do homem? Sim, Renan, Comte, Carlyle, entre outros,
pretenderam instituir este novo culto. A Humanidade era uma
espécie de rio sagrado, manando das longínquas cavernas da
ignorância primitiva, correndo primeiro por vales apertados,
espumante de cóleras terríveis, veloz e decidido, espraiando-se,
nas nossas idades numa larga campina coberta de botões de ouro, de
boninas e trevos de quatro folhas, a caminho dum Oceano largo e
profundo de Paz e de Amor!
E quem escavava o
leito a esta torrente impetuosa? A Ciência. Ela tinha, nas suas
mãos o poder terrível do Raio abrasador nas mãos de Júpiter.
Criava e destruía. Por ela com o seu poder real, tangível, viria a
felicidade ao homem que em vão a esperava desse Deus antiquado,
que o Medo gerara na sua mente confusa.
A Ciência! Renan
adorava-a. Dizia-se mesmo seu sacerdote: eu o padre da Religião da
Ciência». Esta afirmação revelava a vocação sacerdotal a que
renunciara, deixando o Seminário.
Marx, de seu lado,
sentiu também os efeitos da sua educação na religião judaica ao
fazer do proletário o Messias salvador do mundo. A este propósito,
Berdeaeff esclarece: «A ideia do messianismo operário demonstra
que subsiste na consciência ateia qualidades de alma pedindo uma
fé e capazes de fé».
Kologrigoff acrescenta
ainda: A Bíblia da Igreja comunista é o «Capital» de Karl Marx. O
Comunismo tem os seus ritos, os seus santos e até uma relíquia
venerável: A Múmia de Lenine numa praça de Moscovo.
Seria o caso talvez de
dizer com Camões: E por derradeiro, o falso deus adora o
verdadeiro!
Compreende-se que
deslumbrado pelas criações magníficas da Ciência e das Técnicas o
homem se sentisse orgulhoso do seu poder e quisesse, ao glorificar
a Humanidade, atribuir a si próprio uma centelha divina. De resto
igualar os deuses foi sempre a sua suprema ambição. Sabendo-o, a
serpente tentou convencer, o homem a comer o fruto proibido,
dizendo-lhe: serás semelhante a Deus!
Sabemos das trágicas
consequências que vieram ao Homem da substituição do cristianismo
pelos mitos explosivos de que já falei e vamos ver também que este
culto pela Humanidade, que se mantém hoje com maior ou menor
expansão nas nações e com que se pretende iludir a sua ansiedade
pelo Deus dos Cristãos, não tem um fundamento sério.
Efectivamente, aqueles que à falta de melhor pretendem divinizar a
Humanidade fazem-no deslumbrados pelas maravilhas do seu progresso
científico e técnico, Para esses é a Ciência quem contém a
Realidade e não a Realidade quem contém a Ciência, que olham como
se fosse senhora e não serva da Vida. A experiência científica é,
decerto, um modo muito respeitável de conhecimento humano, mas não
quer dizer que não haja outros modos de conhecimento igualmente
úteis e respeitáveis. Mais ainda. É à filosofia, e não à Ciência,
que compete interpretar a Vida situando a Ciência no seu justo
lugar na imensidade do todo. As verdades da fé são tão
respeitáveis como as da Ciência que dela são complemento.
Perante este
endeusamento da Ciência poderíamos ser levados à convicção de que
as / 9 / suas conquistas eram de tal modo sublimes que se
aproximavam da perfeição absoluta. Ora isto não é assim, como vai
ver-se. Comecemos por dar um exemplo, para melhor se compreender o
que vamos afirmar. Sabe-se que o mineral é um ser que não nasce,
não cresce, segundo uma lei regular, não se reproduz, mas disfruta
um bem que os outros seres não possuem: não morre. Passando ao
grau imediato da perfeição dos seres que é o das plantas, vemos
que elas nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. Passando aos
animais, verificamos que nascem, crescem, reproduzem-se, movem-se,
mas também sentem e morrem. Passando ao homem, vemos que sofre não
só fisicamente, mas também moralmente. Quer dizer, no ponto de
vista orgânico, a planta é mais perfeita que o mineral, mas pagou
essa perfeição com a morte, o animal irracional mais perfeito que
a planta, mas essa perfeição foi paga com o sofrimento físico, e o
homem, o mais perfeito de todos os seres, pagou a sua perfeição
com a dor moral. Vemos pois que há em tudo uma dádiva, melhor, de
que a perfeição se paga!
Passemos agora às
criações humanas. Quando não havia meios de transporte e o homem
se deslocava a pé, os acidentes de viação eram mínimos. Depois com
os carros puxados a animais aumentou a velocidade, mas aumentou
também o risco. Com os comboios sucedeu o mesmo, com os aviões de
velocidade superior à do som o perigo é imenso.
Poder-se-ia dizer o
mesmo, por exemplo, da pólvora que, excelente instrumento de
progresso, é contudo a causadora das formidáveis hecatombes das
guerras.
Portanto, nem Deus nem
o Homem criam coisa alguma que não seja limitado nas suas
possibilidades e portanto imperfeito.
E isto é bem
compreensível se atendermos a que na dialéctica de Hegel a
contradição é a alma da realidade. Quer dizer, todo o ser concreto
é uma aliança do sim e do não, do Ser e do não Ser.
Por consequência
sempre que pretendemos criar aquilo que nos convém, criamos também
o que nos não convém.
Podemos, tendo em
vista estas considerações, dizer que Deus estabelece um limite de
perfeição no mundo. Se o homem pudesse realizar a perfeição sem
condicionamento algum, poderia aspirar à perfeição absoluta que é
um atributo de Deus.
Daqui concluímos que o
decantado Paraíso Comunista, onde o homem viveria numa felicidade
edénica e para onde segundo os sequazes da doutrina o Progresso
nos está empurrando, não passa duma utopia, pois que se
alcançássemos esse Paraíso teríamos de ter ao lado o Inferno.
Ainda outras razões
confirmantes do que temos dito sobre este assunto: A Ciência
chegou à conclusão de que a Matéria e a Energia são constantes;
desaparecem duma forma para aparecerem doutra segundo uma
determinada relação. A Filosofia baseada nestas afirmações pode
afirmar que a Perfeição dos seres: constituídos por Matéria e
Energia é também constante, o que tanto monta dizer não podemos
criar qualidades à matéria, mas apenas transmudá-las.
Voltemos à
desintegração da matéria que é a maior maravilha do mundo actual e
a maior esperança da Humanidade, e perguntemos: não foi essa mesma
desintegração atómica a causa de desaparecerem dum momento para o
outro duas cidades japonesas com a morte de crianças, velhos e
mulheres, no meio de horrorosos sofrimentos?
Assim é verdade, mas o
pior de tudo é vivermos ainda no temor duma catástrofe semelhante
(senão ainda mil vezes pior) que nos pode levar pela destruição da
nossa civilização à idade da pedra como temeu Einstein.
Triste, muito triste
que após trinta ou mais séculos de civilização o equilíbrio do
Mundo esteja assente num sentimento que desde o princípio o Homem
combateu, tendo-o por vergonhoso, e que por isso jamais confessa:
o Medo!
Sentimos por assim
dizer um pavor cósmico semelhante ao terror que experimentava o
homem primitivo no interior da sua caverna, ouvindo as feras
rugirem entre as árvores da floresta.
O Medo, sentimento
confuso que tanto pode ser meio de educação, como de conservação
da espécie humana, pode ao mesmo tempo transformar-se num processo
de destruição e de morte! Salazar disse com singular agudeza:
«Tenho medo do medo».
O meu ilustre colega
Cunha Amaral que é, sem favor, um dos engenheiros portugueses de
mais larga cultura científica fez aqui uma / 10 / conferência
notável sobre energia atómica e que foram por ele, com a
autoridade do seu talento e do seu saber suficientemente
elucidados; não cabe portanto fazer aqui quaisquer referências a
esse magno problema. Convém no entanto transcrever aqui algumas
afirmações de Jules Moch colhidas no seu livro «A Loucura dos
Homens».
«A eventualidade da
destruição termonuclear de uma fracção da humanidade, diz ele, faz
pesar sobre a vida humana uma inconcebível hipoteca plena de
terríveis perigos. Não temos o direito de fechar os olhos sobre
pretexto de que a catástrofe não é para hoje, pois se ela se abate
um dia sobre o mundo será muito tarde não só para a deter, mas
mesmo para a limitar». E noutro ponto: «Não há solução
intermediária durável: A actual guerra fria mantém e amplia o
risco para todos. A corrida aos armamentos multiplica-o sem
proveito algum, levando à criação num campo de novas forças, à
criação de unidades similares no outro, sendo todo o aumento de
stocks de bombas a contrapartida dum aumento semelhante, Desarmar
ou correr o risco de perecer, tal é a escolha da humanidade!
São na realidade bem
sinistras as perspectivas do futuro da Humanidade.
É sem dúvida um
paradoxo trágico a Ciência servir simultaneamente para engrandecer
o homem e para o perder.
Parece vermos aqui em
toda a sua agudeza o dualismo do Bem e do Mal que existe em toda a
criação humana e de que falei há pouco. Agora que tudo possuímos
estamos na eminência de tudo perder, O NÃO SER absorve em si o
Ser. O Negativo ultrapassa o Positivo!
É agora ocasião de
perguntar − Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e
condenou-o irremediavelmente a este dualismo cruel? Não lhe deu
meios de se libertar desta terrível contingência?
Deus não abandona o
homem, pois que pôs à sua disposição um meio de salvação de
natureza sobrenatural. A Graça! Só com ela o Homem se pode salvar,
não só no outro mundo mas até mesmo neste!
As cousas que Deus põe
ao nosso alcance não são dadas gratuitamente, mas com a condição
de nos servirmos delas, tendo em atenção que Deus as criou não
para que lhe ficássemos subjugados, para que as sobrestimássemos,
mas que perante o nosso Destino Eterno as olhássemos como seres
inferiores no plano da criação.
Eis porque um dos
meios de alcançar a Graça é a Renúncia, o desprezo por aquilo que
é supérfluo ao nosso destino sobrenatural.
«O Homem precisa da
Graça, sem ela não pode mudar». Não sou eu quem o diz, mas não
menor pessoa que Claude Bernard...
Ora a Graça é um dom
gratuito de Deus. A fé é já graça de Deus − para o qual o homem
aliás pode decerto modo dispor-se enquanto se liberta de tudo
aquilo que o impediria de executar a palavra de Deus.
A ausência do
Cristianismo no mundo explica a falta da Graça com as trágicas
consequências que acabei de citar.
Vejamos agora outras
causas do abandono da igreja. Comecemos pelo Cientismo, que é uma
pretensa filosofia em nome da qual se tem procurado combater o
Cristianismo, menosprezando as afirmações da fé, acreditando
apenas nas conclusões da Razão.
Quando nos referimos à
Ciência temos em vista as ciências experimentais e as de
observação que desde a Renascença adquiriram grande prestígio
pelos frutos assombrosos que nos deram.
Com excepção de
Rogério Bacon e poucos mais os sábios medievais não se dedicavam à
experiência mas antes ao estudo da Filosofia e da Teologia que era
então a Rainha das Ciências.
No entanto a filosofia
medieval é racionalista se entendermos por Racionalista a
possibilidade de chegarmos até Deus só pela nossa Razão, tal como
o fez S. Tomás.
Neste racionalismo
medieval se continha implicitamente o método experimental pois que
admitia, como as ciências experimentais, que a natureza era
contingente e que portanto só a experiência nos podia indicar a
verdade das coisas.
Porque foi então que a
Idade Média se não deu aos métodos experimentais? É sabido que
nessa época só a salvação eterna interessava ao homem, que tinha a
sua passagem pelo mundo como uma curta viagem, não valendo a pena
demorar-se muito a olhar a paisagem porque depressa a noite se
fechava. Era o doce tempo de S. Francisco de Assis e da imitação
de Cristo que tinham em pouca / 11 / conta a ciência vinda do
entendimento humano perante as verdades reveladas por Deus.
Depois, ainda não
estava totalmente extinto o preconceito pagão contra o trabalho
manual que era relegado para os servos de gleba. Por outro lado,
era natural que, antes de pretender conhecer o mundo o sábio
medieval se procurasse conhecer a si próprio, importando-lhe mais
conhecer-se na sua alma do que no seu corpo.
Todas esta razões
explicam que só na Renascença quando o homem deixou de olhar para
dentro de si, para contemplar o horizonte que o cercava se desse
ao método experimental.
Para sermos justos
temos de dizer que o triunfo rápido do método. experimental na
Renascença se deve, em parte, à agilidade intelectual ganha na
Idade Média pelo exercício contínuo da Razão em busca das verdades
transcendentes.
No entanto, quando
Galileu e Torricelli realizavam as suas experiências, quando o
estudo das coisas do mundo preocupava os homens mais do que o
estudo das verdades divinas, a Magia e outras práticas
supersticiosas prosperavam rapidamente fazendo reverter para ele a
actividade espiritual, dantes consagrada a Deus.
Esta propensão para a
Magia nem mesmo nos séculos das luzes acabou pois persiste, sob
outros aspectos, igualmente fantasiosos, ainda nos nossos dias,
tão certo é o homem não poder dominar a sua ânsia de maravilhoso
por mais esclarecida que seja a sua mente.
Os magos do nosso
tempo são os técnicos. Tudo se espera das suas mãos prodigiosas: A
ida à lua, a cura milagrosa das doenças, a fartura do pão, a
criação duma moral científica com princípios justos, claros,
precisos, altamente conveniente aos interesses do homem na Terra.
Saint Simon levado na
corrente desta sublime aspiração pretendeu que os sábios mais
eminentes se reunissem formando o que ele chamava o conselho de
Newton a fim de substituir a Santa Sé no seu poder religioso.
Um dos fins deste
mirífico areópago seria nada menos do que extrair da lei da
gravidade os princípios morais, que nela se contêm. Seria curioso
saber como da lei da atracção das massas podem advir imposições
morais.
Esta imoderada paixão
pela técnica levou na Rússia à criação duma nova modalidade de
engenharia, a engenharia social destinada a converter os países
anexados, burgueses e relutantes, em obedientes serventuários de
Moscovo. As ciências mães desta técnica estranha seriam a
psicologia experimental (oh as maravilhosas experiências de
Pavlov) e a sociologia e os meios de acção seriam, decerto, a
calúnia, o boato, os cartazes de propaganda vistosos e coloridos,
os slogans gritados continuamente através dos altos-falantes, o
povoamento das cidades com as estátuas dos grandes homens
soviéticos; de Lenine sobretudo.
De resto talvez isto
ainda não bastasse, talvez fosse necessário como na Jugoslávia
substituir esta frase dos livros sagrados: Ao princípio era o
verbo por esta outra: «Ao princípio era Tito».
Assim procede este
prodígio da Técnica moderna, a engenharia social, tratando o
homem, como se ele fosse uma coisa inerte e passiva e não criado
por Deus à sua imagem e semelhança!
Este abuso da técnica
é uma das causas da ausência do Cristianismo no Mundo e não
decerto das menos importantes, na sua acção maléfica de apear o
homem da sua grandeza de filho de Deus, negando-lhe os sublimes
direitos da pessoa humana cuja conquista é uma das maiores glórias
do Cristianismo.
Passemos agora a falar
da Liberdade.
Parece que o homem
deseja a Liberdade para ter o gosto de a perder. E perde-a com
volúpia diante duma mulher, com avidez diante do ouro, com vaidade
diante da fama, com reverência diante do seu ídolo desportivo ou
do seu Clube, como a perde, em casa, diante das exigências dos
filhos ou das imposições da esposa. A boa educação, o protocolo, a
decência, não lhe dão a liberdade de trajar como quiser, mas sim
conforme a invenção da moda. As suas ideias não podem ser senão as
da maioria pois de contrário dizem-no desactualizado. Os seu
gostos têm de ser os de todo o mundo, para que o não digam um
extravagante, um pretensioso, um idiota.
Estas solicitações
esmagariam o indivíduo se tal como acontece com a pressão
atmosférica elas se não anulassem umas às outras.
De resto há uma
liberdade de que não abdica, de que é cioso: a sua liberdade
política. Quando lhe falam em liberdade pensa / 12 / imediatamente
na liberdade política. Ser livre para ele é ter o poder de eleger
quem lhe aprouver; as outras sujeições da sua vida particular não
lhe interessam, não constituem, como diz enfatuadamente, o seu
problema.
Chego muitas vezes a
perguntar a mim se no fundo a maioria dos homens modernos ama a
liberdade, pois que tão facilmente prescinde dela na maioria dos
casos.
É que a liberdade
pressupõe a responsabilidade e exactamente o que nos custa é
tornarmo-nos responsáveis seja pelo que for. A Liberdade política
agrada porque a responsabilidade dos actos que praticamos resvala
para as maiorias uma vez que são elas quem em última análise
decidem.
Só os fortes, os
heróis ou os santos, são libres, só eles sabem abrir caminho na
floresta negra dos nossos enganos e dos nossos preconceitos, como
só um lenhador de pulsos vigorosos, pode abrir, com o machado, uma
clareira na densidade duma floresta virgem. A liberdade é um
instrumento de corte que necessita de ser manejado com decisão e
força para ser eficaz. Os débeis depressa se cansam com o seu uso.
O cristianismo quer o
homem livre e forte para que, depois de doutrinado, escolha, sem
estorvos, o seu caminho. Esta independência não convém aos Estados
que renegam o cristianismo pois que o homem livre e forte é sempre
um estorvo à execução dos seus princípios de governo atentatórios
da dignidade humana.
Vejamos agora
os desportos.
O povo romano ocioso e
devasso pedia aos Imperadores PÃO e CIRCO que tem na nossa época o
equivalente nas reivindicações das massas: Pão e Sexo.
Os estados, ainda
mesmo os mais avançados parecem adaptar medidas legislativas
tendentes a evitar os desregramentos sexuais, pondo todo o seu
cuidado em fornecer abundantemente o pão de cada dia mediante um
conjunto de leis sábias que defendem os salários, embaratecem os
géneros, asseguram o tratamento na doença, o seguro na invalidez,
a reforma na velhice. Deste modo o Estado, com uma solicitude
paternal, ocupa-se de tudo, pouco deixando à iniciativa individual
do homem que não pretenda sair da cadência regular duma vida
modesta. E que exige ele em troca destas admiráveis concessões?
Quase nada. Apenas pretende que os seus súbditos sejam ordeiros,
disciplinados, bem educados, sobretudo com os estrangeiros, de
modo algum hostilizando os que no desenfado do Turismo deixam no
País o seu ouro. E para os atrair manda aos seus súbditos que
rebusquem nas velharias do passado, vistam os seus trajes antigos,
cantem as suas canções, executem as suas danças para com o seu
pitoresco espairecer a mente entediada do turista.
Pede além disto,
obediência às ordens da polícia, atenção aos sinais de trânsito, a
caridade do bom samaritano quando lhe aconteça atropelar alguém na
estrada e acima de tudo pontualidade no pagamento do imposto.
Verdade seja que às
vezes este doce viver é quebrado pelo sobressalto das greves, mas
depressa se atenua a quezília, tudo ficando reduzido a uma série
de entrevistas entre os graves senhores dos respectivos sindicatos
sob os olhos severos das autoridades.
Decerto, este modo de
vida é perfeito, mas insuportavelmente monótono e não se compadece
com as exigências do fundo selvagem do homem que sente avidamente
o desejo egoísta de saborear a sua vitória sobre o próximo. O ódio
ou o amor dentro da esfera da sua vida particular não o satisfaz,
necessita de se entregar ao ódio ou ao amor colectivo! Além disso
sente uma necessidade irresistível de tomar partido, de adorar, de
engrandecer os deuses que venera!
Ora o desporto é um
modo pacífico e legítimo de dar expansão ao atavismo das suas
tendências de luta e opressão, que a civilização cobre com a sua
capa rota. A multidão engolfa-se no desporto para se libertar do
tédio que pesa sobre a sua vida monótona.
No entanto parece que
este desafogo honesto das censuráveis tendências ancestrais de
luta e opressão não basta já ao homem, especialmente aos rapazes
que procuram fugir ao tédio, à náusea, não pelo desporto, mas pela
aventura sangrenta e criminosa dos «tedy boys».
Sabe-se como a
criminalidade juvenil aumentou em países altamente civilizados. Os
jovens desorientados pelo cinema, assombrados pela carnificina
duma guerra estúpida e cruel, ávidos de gozo, precipitam-se no
crime realizado com um sadismo, melhor diríamos, com uma birra
autêntica de meninos. / 13 /
As jovens por seu lado
perderam o vivo sentimento de pudor que as mulheres dum modo geral
possuem deixando de sobrestimar em si o valor da virgindade.
Parece cair sobre esta
pobre Humanidade, afastada de Deus, a cinza dum tédio insuportável
que leva ao suicídio em países altamente civilizados como a
Suécia, a Noruega e a Dinamarca. Aí é tão grande o número dos
indivíduos que atentam contra a existência que nos hospitais há
ambulâncias prontas a partirem ao primeiro chamamento e nos
precipícios que os suicidas costumam utilizar para porem termo à
vida, há densas vedações de arame farpado. De que provirá este
desgosto de viver, quando a Terra parece ser um paraíso que os
democratas celebram como um exemplo maravilhoso da eficácia do seu
sistema de governo? Não vemos outro senão o do Tédio, caindo com
uma cinza densa dum céu nevoento e hostil. É que nestes países
descristianizados tudo está sabiamente regulamentado pelo Estado e
a vida torna-se numa regularidade perfeita, numa monotonia
desesperante. A política já lhes não interessa, porque não desejam
melhor forma de governo do que aquela que possuem e, além disso,
todos os seus problemas estão resolvidos, Há o caso das
complicações internacionais, mas esses afastam-se com uma prudente
neutralidade ou com o estabelecimento de rampas de foguetões.
Saído da fábrica, do
escritório, da oficina, o trabalhador tem oito horas para se
distrair. Mas onde encontrar as distracções que afastem aquele
tédio mortal? Talvez as mulheres... Mas de tal modo as relações
sexuais são fáceis que já não interessam,.. Ainda de todos os
prazeres sem dúvida o mais aceitável é o de beber porque leva ao
esquecimento e debaixo da influência do álcool penetra-se no
paraíso cor de rosa de que se anda à procura...
No entanto a
consciência de se ser um bêbado, de se degredar da sua condição
humana para esquecer o seu tormento, persegue-o desgraçado
nórdico. Não será porventura melhor morrer, deixar esta vida
enfadonha que sufoca o homem debaixo da cortina de chumbo do
Tédio? Que tem temer na outra vida? Afinal de contas, nada. O seu
Deus cristão está provado que não existe. E quem sabe se o paraíso
dos Vikings não existirá?
A Morte que venha,
pois, ao seu encontro! Ela é a única realidade agradável da vida!
É este, meus senhores,
o drama dos países supercivilizados, caídos no envilecimento e na
Morte, porque renegando a Cristo não fica ao homem nada que possa
dar sentido à vida.
Queria falar-lhes já
que me estou referindo aos desregramentos sexuais a uma casa de
regeneração de meretrizes existente na Gafanha da Nazaré fundada
por uma alma ardente de mulher cristã, dessas que fazem a glória
da história do Cristianismo.
Quero referir-me ao
Lar da Divina Providência, na Gafanha da Nazaré, onde vêm buscar
abrigo tantas almas perdidas nas misérias do vício. Se eu vos
pudesse contar aqui as histórias dolorosas das infelizes ali
recolhidas, a sua pungente realidade vos abalaria decerto mais do
que aquele humano prefabricado e muito em voga hoje no cinema e no
romance com que se pretende cativar a vossa sensibilidade e que,
não é muitas vezes mais do que retórica posta ao serviço do
pitoresco. Vou citar apenas o caso dum padre, homem modesto e
desconhecido, que entra com a sua pasta, tira um maço de notas e
sai enigmático e sombrio como entrara. Ninguém sabe quem é,
ninguém lho pergunta, ninguém procura saber. É um penitente ou uma
alma abrasada em caridade? Não é para os homens desvendar este
segredo que, talvez só Deus conheça.
O que importa saber é
que a sua esmola, e outras, a dedicação heroica de algumas
meninas, uma das quais de precária saúde que esquece os seus
muitos sofrimentos físicos para se dar como serva a estas
infelizes que o mundo despreza, sujeitando-se a trabalhos com que
a sua pouca saúde não pode, a estas sublimes dedicações, ia
dizendo, se deve atribuir a salvação de muitas raparigas entradas
naquele Lar da Divina Providência que Deus abençoe.
E agora para finalizar
este trabalho quero referir-me, conforme prometi, a alguns
episódios da ocupação pelos comunistas de Tito da Eslovénia,
província da Jugoslávia habitada por católicos fervorosos. Este
relato foi-me comunicado por uma testemunha abalizada, pessoa da
minha maior consideração.
As liquidações
faziam-se, diz o relatório, com a máxima crueldade. Assassinos
comunistas entravam nas casas, anunciavam as / 14 / vítimas, ao
pai de família, à mãe ou ao filho que eram suspeitos de
colaboracionismo pois pertenciam à Guarda Branca. Começavam por
lhe ligar as mãos e, se tinham pressa, matavam-nos logo ali. Se,
porém, tinham tempo para delongas, conduziam-nos aos bosques onde
os martirizavam de vários modos, antes de os matarem.
Muitas das vítimas,
até mesmo mulheres grávidas deviam abrir as sepulturas com as
próprias mãos e a sua crueldade chegava ao ponto de exterminarem
famílias inteiras, até mesmo crianças inocentes. Assim aconteceu
por exemplo à família Mausar da aldeia Prapoce, paróquia de S.
Roberto, que constava de nove membros: O pai que se chamava José,
a mãe Teresa, o filho mais velho, Darko, eminente desportista
jugoslavo que tinha conseguido o primeiro prémio no lançamento do
dardo nos jogos olímpicos, o filho Cirilo de 17 anos, a filha
Maria de 15, Pedro de 13, EstaIlislau de 10, Guilherme de 11 e
Adolfo.
Os comunistas
levaram-nos para um curral, torturaram-nos de diferentes modos
todo o dia e à tarde chegaram fogo ao curral e queimaram viva toda
a família.
Salvou-se por acaso do
incêndio o filho Guilherme de 11 anos que um ano depois foi também
morto quando o comandante dos comunistas de nome Tomine o
encontrou por acaso na estrada e o matou à pistola. Em Pedolo um
comunista de nome Rafael Martine assassinou a própria sobrinha e o
marido diante dos filhos, tenras criancinhas. Ao jovem Francis
Intihar da aldeia de Vasek retalharam completamente o corpo
tirando-lhe as vísceras. O Padre Norbert Clement, sacerdote
cisterciense, foi suspenso duma árvore com a cabeça para baixo e
nesta posição o seu corpo foi retalhado até expirar após um
martírio de 11 horas.
Um dos carrascos de
nome Majnik com o nome comunista de James, comandante da brigada
de Tito chamada Cankar, recolheu o sangue num copo e levou-o aos
lábios dizendo: «A quem bebe sangue dum padre, nenhuma bala o
fere, O jovem estudante Grozne Luís, membro da Acção Católica que
tinha vindo passar as férias natalícias à sua terra natal na
aldeia de Mirna foi preso pelos comunistas. Encontraram-lhe no
bolso um devocionário em língua latina e alguns livrinhos
religiosos. Isto bastou para o condenarem à morte. Arrastaram-no
ao Teatro onde se reuniram os comunistas para festejar o ano novo,
pois estava-se em 31 de Dezembro. O único número do programa
daquela festa foi o martírio do santo jovem. Depois de lhe
arrancarem os olhos, fracturam-lhe os ossos, deixaram todo o corpo
numa posta de sangue. Ficou de tal modo deformado que os
comunistas não se atreveram a sepultá-lo publicamente.
Terrivelmente e sem
outro fim que não fosse o de aterrorizar a população foi
martirizada a jovem Malnarcek da aldeia de Sad. O seu delito de
colaboracionismo com o fascismo foi este: Como fosse comprar sal à
aldeia de ST. Vid, ocupada pelas tropas italianas, dois comunistas
prenderam-na e conduziram-na ao bosque onde se encontrava o
comando comunista. Amarraram-na a uma árvore e o Comissário
Político interrogou-a: − Que foste fazer a St. Vid? Comprar sal? −
Mentes.− gritou o bandido e quando a rapariga ia falar para se
justificar um dos guardas bateu-lhe com um pau na boca que se
inundou de sangue. Condenaram-na à morte e tiraram à sorte quem a
devia matar. Coube aos comunistas Tigre e Lince fazê-lo.
Aproximaram-se da
rapariga e disseram: − Estamos livres durante três dias. Vamos
bater o record das mortes lentas! Começaram a torturar com
sofrimentos lentos, horríveis e inacreditáveis, a desgraçada
rapariga, que ao fim de dois dias morria.
Podíamos citar muitos
casos como estes, e até outros mais horrorosos. Mas para quê?
Estes bastam para mostrar a fera em que o homem se torna quando
renega os sagrados deveres impostos pelo Cristianismo aos homens
de boa vontade.
Meus senhores,
pretendi mostrar-vos, ainda que com pouca eloquência, as
consequências da ausência do cristianismo no mundo. O assunto era
vasto e profundo e demasiado para as minhas pobres forças
intelectuais. Dei o melhor que tinha: a minha boa vontade. Oxalá
ela vos tenha convencido de que a religião cristã não tem a
explicação económica que lhe dão os comunistas, nem é originada
pelo medo como pretendem os materialistas liberais. mas antes uma
revelação divina que vem ao encontro das angústias humanas e da
plena expansão às suas sublimes aspirações.
O papel da religião no
mundo não pode / 15 / ser substituído pela ciência, nem por normas
empíricas capazes de, pela sua observação o levarem à felicidade.
E para que substituir a religião mesmo no seu papel exclusivamente
social? Porventura é ela anti-humana? Amesquinha ou engrandece o
homem? A história nos diz se foi ou não o Cristianismo quem criou
os direitos da pessoa humana e isto bastaria para fazer toda a sua
glória.
Penso também que se
uma justiça perfeita duma regularidade mecânica conseguisse
substituir, tornar inúteis as divinas arbitrariedades da Caridade
a Vida seria menos bela. É que a Caridade é Amor e a vida sem Amor
ficaria reduzida a uma engrenagem horrorosamente estrídula.
Meus senhores, decerto
esperáveis que neste breve bosquejo do Destino Humano vos
apresentasse a Humanidade como Rainha de manto e coroa, vestida de
púrpura e coberta de ouro e eu apresentei-vo-la como uma pobre
mendiga errante pelos caminhos da História de mãos erguidas à
espera duma esmola de luz que venha do alto.
Contemplando-a assim,
sinto por ela e por mim que sou seu filho, uma piedade escaldante.
Desejaria ajoelhar e beijar-lhe os pés cansados da longa jornada,
desejaria dar-lhe o meu braço e guiá-la para o País de Maravilhas
por que ela anseia, mas Deus não me deu esse poder nem decerto a
ninguém do mundo, porque Ele não a criou para esse destino
mesquinho, mas para outro mais alto: o da sua felicidade eterna.
CONFERÊNCIA PROFERIDA EM 21 DEZ. 1959 NO CENTRO DE ESTUDOS
POLÍTICO-SOCIAIS DE AVEIRO |