Eng.º José de Bastos Xavier, Ausência de Cristianismo, in: Separata do n.º 21/22 de SIGNO, Aveiro, Nov.1960, 16 pp.

Ausência de Cristianismo

Texto de Eng.º José de Bastos Xavier

Para facilidade de exposição dividiremos este trabalho em três partes: ausência de Deus na Idade Média, na Renascença e na Actualidade.

Na primeira o homem procura acima de tudo Deus, na Renascença procura-se a si mesmo, na Actualidade, as actividades culturais ou científicas são de natureza anti-humana e por isso mesmo monstruosa pois como Claude Bernard disse: «Os homens feitos pela ciência são monstros morais.» − Comecemos pela Idade Média.

Quando o Império Romano caiu, derrubado pelos bárbaros, não deixou uma força organizada capaz de disciplinar e orientar a nova sociedade que se ia formando, dum modo tumultuoso, no seio de povos menos cultos e esclarecidos. Foi a Igreja com a sua hierarquia, a sua ordem, a sua disciplina quem teve de assumir a força ordeira de Roma decaída, deste modo se explicando, em parte, sua intromissão nos negócios seculares. A tradição do totalitarismo do império romano não estava ainda completamente extinta e os príncipes cuidavam de moldar, de acordo com ele, os seus estados, quando a Igreja surgiu antepondo aos seus poderes discricionários os direitos da pessoa humana.

Foi este um dos momentos mais sublimes da história: aquele em que o homem com todos os direitos, inerentes à sua origem divina substitui o indivíduo, sem direitos, quase sem vontade, diante da omnipotência do Estado Romano.

É que, como diz Langmead Casserley, (a quem se foi buscar o título desta conferência) se a religião é a procura de Deus pelo Homem, o Cristianismo é a procura do Homem por Deus e sendo assim ele não podia, de modo algum, aceitar o Homem inteiramente subjugado às conveniências do Estado, tinha de ir à procura daquele que poucos séculos antes tinha sido resgatado pelo sangue de Cristo, no Calvário. De aí a intransigência da igreja com o Poder Temporal que pretendia absorver o homem no Estado. Não quero dizer que, ao procurar reprimir os desmandos da autoridade dos príncipes, ela própria não viesse a ser imbuída do desejo de mando.

No entanto, no século IV, o monaquismo salvou-a dos efeitos deletérios da demasiada preocupação com os bens terrenos que às vezes era afrontosa de miséria dos servos da gleba, como aconteceu com o gesto louco dum bispo inglês que, por fanfarronada, adquiriu o pano mais caro do mercado e dele fez cobertas para os seus cavalos. Em compensação S. Bernardo proibia os seus monges cistercienses de fazerem edifícios demasiadamente ornamentados do que, valha a verdade, mais tarde se esqueceram.

O Monaquismo era certamente muito útil à salvação dos que se encerravam nos conventos, entregues à oração e à ascese, mas não tinha uma acção directa sobre o povo que permanecia crente, embora, mas ignorante e bárbaro. Foi necessário que aparecessem os franciscanos e os dominicanos que desprezavam os bens do mundo, vivendo no meio deles, para que todos fossem edificados com as verdades religiosas e melhor acção apologética se fizesse.

Apesar da pouca conta em que de princípio os franciscanos tinham as letras profanas, foram eles que elevaram Oxford à altura da Sorbona e um dos seus frades, Rogério Bacon, já nesse tempo dado à pesquisa experimental, teve licença de Clemente IV para possuir na sua cela penas e tinta.

Não quero dizer que neste tempo de / 4 / intensa fé religiosa não aparecessem heresias. De facto assim sucedeu; por isso Stº Agostinho, um dos maiores homens de todos os tempos, pediu a intervenção de braço secular para dominar os hereges. No entanto, nesses tempos de fé ardente, as próprias heresias não eram originadas pelo desejo do mando, das riquezas, pelo ganho dos bens do mundo, enfim, mas antes desvios dentro de uma viva e insatisfeita ansiedade de Deus.

A grandeza imperecível da Idade Média está patente no assombro das suas catedrais e na Suma de S. Tomás. Se nas catedrais Deus é glorificado pelas realizações sublimes da arte, na Suma, o homem é erguido até à compreensão de Deus pela Razão.

Nenhuma arte exprime as intenções, as aspirações, os sentimentos duma época com tanta grandeza e tanta eloquência como a arquitectura.

Salazar, ao visitar uma das exposições de maquetes e fotografias de monumentos e edifícios já realizados, lamentava que um tal volume de obras não desse origem a um estilo que representasse as preocupações ideológicas e sentimentais da nossa época.

Sim, tinha razão o grande mestre. Mas como seria possível a criação dum estilo original que fosse a expressão sublime duma ideia ou dum sentimento se nos nossos tempos tudo está em evolução contínua, se não temos ideias definitivas na arte, na filosofia, na própria ciência e se o nosso sentimento é vago e confuso e muitas vezes contraditório?

Caso curioso; a pintura medieval é simples, risonha, ingénua, antes expressão de sentimento que desenho de forma, pretendendo deixar nas almas uma suave esperança da eternidade; é uma promessa do Céu! E no entanto ela tinha razão para revestir uma expressão de tragédia pois o terror da Peste Negra pairou séculos sobre os homens medievais que desiludidos do mundo, chocados pela contingência, firmes na sua fé, não perdiam o tempo a retratar a sua inevitável dor mas a glorificar a sua esperança num mundo melhor.

E, no entanto, esse terror da Peste Negra só o poderíamos compreender hoje se o assemelhássemos ao duma bomba de hidrogénio caindo sobre uma cidade.

Em alguns países, na Inglaterra sobretudo, os vivos já não chegavam para sepultar os mortos que apodreciam pelas ruas e sobre quem caíam bandos negros de corvos.

No entanto a pintura, como já dissemos, não reflecte esta angústia, antes parece tocada duma suave espiritualidade, como se pode ver em Fra Angélico.

A mulher deve muito à Idade Média. Comte, citado pelo senhor Cardeal Patriarca, no seu livro «A Idade Média» afirma: «Ninguém já contesta ter o catolicismo melhorado, essencialmente, a condição social da mulher».

É sabido que, entre os antigos, a mulher pouco mais era que uma escrava, E, ao renderem-lhe homenagem, faziam-no com reminiscência do prazer sensual que dela lhes vinha.

A galantaria para com a mulher, que estava na índole da própria instituição da Cavalaria sua defensora e de todos os fracos, contribuiu para diminuir a barbaridade da guerra. Se quiséssemos nos nossos dias encontrar instituições animadas dos mesmos desejos, teríamos de ir procurá-los no areópago palrador da Sociedade das Nações − o que demonstra que este desejo de melhorar e mesmo suprimir a guerra vem de longe, sem que até hoje tenha logrado efeito.

Uma outra acusação feita à igreja é a de ter consentido, sem um protesto, na miséria do povo medieval tão devotamente crente, como já vimos. Segundo Michelet, essa desgraçada gente alimentava-se de talos e de raízes, o que é totalmente falso, conforme prova o senhor Cardeal Patriarca ao dizer: «A alimentação aproximava-se do que é hoje, com estas diferenças mais importantes: consumo maior dos laticínios, grande uso do mel que às vezes servia de açúcar, substituição das favas, das ervilhas e ainda das castanhas, no consumo ordinário, ao consumo actual da batata, desconhecimento dos géneros coloniais, reveladas pelas descobertas, como o chá e o café». E Alberto Sampaio acrescenta: «a mesa do povo não se distinguia muito da dos cavaleiros nobres. E isto por várias razões»: Não só era frequente os nobres comerem com os populares, mas ainda lhes entregavam facilmente a criação dos filhos (o que denota uma grande semelhança no teor de viver), as obrigações da comida fornecida aos mordomos reais por ocasião da cobrança de renda provam que aquela não excedia o orçamento doméstico dos vilãos; a sobriedade da mesa real / 5 / nos primeiros reinados, segundo o testemunho de alguns documentos, era grande».

Com estas palavras autorizadas se desfaz mais uma lenda. Seria fácil rebater outras que os inimigos da Igreja têm criado, como por exemplo a do congresso em que eruditos padres negaram a alma à mulher. Não vale a pena. Fiquemos por aqui com este pálido e desordenado bosquejo duma das épocas mais grandiosas da história, com três marcos eternos orientando o destino humano: as catedrais, a Suma Teologia, e a Divina Comédia tão exalçada por Carlyle.

Vejamos agora a Renascença.

Os gregos, diz Charles Moeller, procuravam no homem aquilo que não podiam encontrar senão em Deus.

Ora a Renascença é um regresso ao helenismo, portanto, também ela seguindo o mesmo método, procura no homem o que só pode encontrar em Deus, ao contrário da Idade Média que, como acabámos de descrever, procurava acima de tudo, Deus, no homem e na Natureza.

Podemos dizer, para caracterizar melhor este período da história, como Bernarht, que os cristãos colocaram o Seu Deus ao lado dos deuses antigos. E de facto estamos em crer que a Renascença repudia os últimos vestígios do orientalismo que continha em si a religião monoteísta que dizia professar, para se dar toda às tradições ocidentais de que contava a deificação dos imperadores e o trato fácil entre os homens e os deuses, o que tornava estes demasiadamente humanos.

Dentro desta ordem de ideias, a arte, na Renascença não se preocupa tanto em glorificar a Deus como em sublimar o homem que a paixão artística devora a ponto de não compreender a vida sem a arte.

O corpo que a Idade Média, com os olhos postos em Deus, desprezava (e também porque o vira em plena Peste Negra apodrecer pelas ruas, coberto de manchas negras) o corpo que, segundo os detratores da grandeza medieval, não fora lavado durante mil anos (o que é redondamente falso de passagem se diga) o corpo é agora objecto de cuidadosos desvelos inventando-se pomadas e elixires para rejuvenescer a pele, sendo de muito bom para o caso o leite da jumenta.

Esta preocupação com o humano, segundo me parece, fez com que o Diabo fosse apresentado como uma figura humana que discute nos concílios, entra nos ateliers dos pintores para ser retratado, prega risonhas partidas aos frades, aguça as penas de Erasmo e de Lutero.

Até mesmo no modo como se desfaz dos seus inimigos o Homem da Renascença presta um certo culto à dignidade do corpo, pois não esfaqueia como na idade média, nem derrama sangue copioso e abjecto, nem enforca mostrando o horror do cadáver com a língua estendida, os olhos saltando das órbitas mas muito simplesmente, usa venenos subtis que fazem com que o inimigo resvale na morte, dignamente, como se passasse para ela através do sonho.

De resto este uso do veneno encontra plena justificação nas razões de Estado que Machiavelo criou e segundo a qual os fins justificam os meios e as conveniências do Estado estão acima dos interesses dos cidadãos. Onde estão os direitos da pessoa humana que a Igreja antepôs aos direitos do Estado? Ninguém se lembra deles.

O homem da Renascença, vive para o gozo e contempla, com volúpia, a carne rosada do nu das pinturas, e ri deliciado com os contos de Bocácio! Alegria! Vida! Decerto ainda há crença em Deus, ainda se lhe erguem templos magníficos. Sim... Mas estas fábricas grandiosas visam antes glorificar os poderes artísticos e construtivos do Homem do que a glorificar a Deus!

Na Idade Média os cristãos organizavam as cruzadas para libertar a Terra Santa; agora Francisco I pretende unir-se com os Turcos, inimigos tradicionais, para combater Carlos V que, por sua vez, sendo imperador católico, saqueia Roma.

Ah, como era enfadonha essa Idade Média com os seus claustros sombrios, a severidade da doutrina cristã, a massada dos novíssimos do homem! Precisamos de descobrir o mundo e, mais do que isso, gozar bem a vida, no amar e no comer. Nessa Idade Média sombria, o homem não conhecia os refinamentos da culinária. Assava bois inteiros e devorava-os durante semanas. Agora, graças aos condimentos que as descobertas geográficas fizeram aparecer no mercado, a quantidade substituiu-se pela qualidade. Tudo é leve, refinado, subtil, imponderável. E eis que se ergue no seu trono de ouro o árbitro supremo dos / 6 / destinos do mundo! Senhor absoluto, mais cruel que os senhores feudais, frio calculista na alma de Shillok do judeu avaro, ele vai exercer tiranicamente o seu império até ao fim do mundo, ou até que o homem volte ao regime das trocas com que iniciou a sua vida de civilizado. O Dinheiro! Graças a ele, os Médicis sentar-se-ão nos tronos papais e no trono dos Reis. Como é agradável o seu tinir na banca que eles apresentam no mercado de Florença. Os filhos dos Banqueiros são reis e papas. Onde está a velha nobreza goda?

A Idade Média esgotou-se a procurar a pedra filosofal que lhe permitiria encontrar o ouro. Loucura! O ouro vem do Novo Mundo carregado em grandes navios e alcança-se não já pela força, mas pacificamente, pela negociação comercial.

Não se pode negar que nesta época o progresso material fosse na verdade grande, mas tem de se afirmar que, moralmente, o homem decaiu muito. Será que existe entre o progresso material e o rebaixamento moral urna relação constante?

No capítulo que se vai seguir vamos dizer algumas palavras sobre este assunto. Por agora fiquemos sobre a Renascença, que a traços largos procuramos descrever, este conceito: É uma idade em que o homem se toma como medida de todas as coisas.

Passemos aos tempos modernos que se desenrolam sob a égide do Monstro cuja figura horripilante era venerada como um deus, por povos primitivos como os Aztecas. É que o homem primitivo, quando quer venerar um ser superior, dá-lhe uma forma monstruosa, nela pretendendo concretizar o seu ódio, o seu temor e a sua veneração por um ser superior sugerido pelo Medo e pelo mistério impenetrável em que vive.

Parece, nos nossos dias, termos voltado de novo a um culto inconsciente e disfarçado de esses deuses estranhos.

Não se julgue ousada a nossa afirmação, pois que vamos demonstrar a sua verdade.

Comecemos pela Técnica que dantes limitava a sua audácia à realização de obras portentosas obtidas com a utilização exclusiva dos seres materiais (a torre mais alta que as nuvens, a ponte de vão quilométrico) mas que agora realiza prodígios admiráveis com os próprios seres vivos, mediante as sábias conclusões da genética. Assim é que nos dá formas monstruosas de animais domésticos destinados a fornecer-nos exclusivamente carne e outras não menos monstruosas destinadas a fornecer-nos exclusivamente leite e cujos úberes arrastam quase pelo chão. Mas isto não é nada!... Curiosos são os cãezinhos bizarros criados para regalo das senhoras! Lãzudos, baixinhos, de perna curta, orelhas enormes, como folhas de abóbora! Eis a grande maravilha!

No reino vegetal também há prodígios na criação de frutos descomunais, ou de espécies novas mais aptas a desenvolverem-se em determinados climas.

O homem actuando sobre os cromossomas pretende corrigir a obra de Deus no sentido que lhe convém. Mas esta velha técnica dos cruzamentos (ainda que agora altamente desenvolvida) nada representa diante das enxertias realizadas em seres vivos que levaram ao assombro dum cão com duas cabeças por ambas comendo e ladrando!

Mas não só as técnicas têm estes objectos bizarros e utilíssimos; a própria ciência os tem. Efectivamente o complexo de Édipo da teoria freudiana não é uma forma monstruosa do amor materno?

E a fecundação artificial realizada nos seres humanos com a mesma liberdade com que se realiza no animal? O fruto sem amor! A criança nascida desta prática médica ilude-se quando chama pai ao homem que vive com a mãe, pois o seu verdadeiro pai é outro e tanto pode ser um bandido como um homem de bem, um génio, como um cretino! Por isso todo o cuidado é pouco em esconder da vítima esta origem humilhante para que se não gerem neles complexos que o inferiorizem. Então na família forma-se uma conjura para guardar silêncio, nada revelarem à criança que se ilude quando pensa que o pai é aquele que se consorciou com a mãe. Os amigos são prevenidos. Que ninguém lho diga, que ele viva e morra na ignorância da sua origem!

A família passa os anos no sobressalto de que ele por acaso, ou por maldade, venha a saber que andava iludido quanto à sua paternidade e venha a criar complexos que o inferiorizem. Porque «complexo de inferioridade», são palavras novas do vocabulário do Medo. Os complexos são uma espécie de / 7 / constipações do espírito; apanham-se quando menos a gente cuida e assim como para fugir às constipações é necessário evitar as correntes de ar, para não se cair no complexo de inferioridade é preciso fugir-se à humilhação.

Esta concepção do indivíduo inferior, de passagem seja dito, também é moderna, aparece quando começa a faltar aos homens capacidade para suportar as fraquezas do seu próximo e as suas próprias... Mas voltemos ao monstro. Poderá dizer-se: Essa história do Monstro é uma descabelada fantasia... Não há razão alguma para aproximarmos certas criações modernas das criações monstruosas do passado, nitidamente fantásticas... O Monstro era um símbolo dos perigos da floresta no meio da qual o homem vivia. O machado e o fogo derrubaram e destruíram a floresta e os monstros desapareceram. Hoje já os não há.

É verdade, desapareceram das florestas mas foram refugiar-se nas montanhas geladas do Himalaia, onde o homem, há poucos anos ainda encontrou os malditos, que ali estavam de novo à sua espera. A imprensa, a Rádio têm-nos descrito, as suas pegadas foram fotografadas. Há quem afirme tê-lo visto, há quem lhe negue a existência. A Ciência, a Rádio, a Imprensa, conhecem-no pelo Abominável Homem nas Neves de que todos temos ouvido falar e que é apenas o monstro moderno, porque não se diga que a imaginação assustada do homem esclarecido por trinta séculos de civilização já hoje não cria monstros. Não, o homem até ao seu desaparecimento da face da Terra, há-de temer-se sempre da sua própria sombra.

Para continuar a demonstrar que vivemos sob o signo do mostrengo falemos agora das artes. Não é verdade que a pintura moderna se exprime por formas monstruosas? Ninguém o ignora. Quanto à música estamos em crer que se Pitágoras conhecesse a música do Jazz não diria que o éter agitado pelos movimentos dos astros solta os sons harmoniosos a que se chama música das esferas. E a poesia? Não pretende ela ser um movimento instintivo? Não recorre mais ao símbolo que à ideia, como o homem primitivo? Creio que a resposta não pode deixar de ser afirmativa. Não será, porque o símbolo é mais «rico» do que a ideia?

De tudo quanto dissemos, concluímos que, como querem os existencialistas a Náusea nos persegue e para lhe fugirmos procuramos colorir a vida com as tintas fascinantes do que é bizarro.

Quando as caravelas partiam às descobertas, os reis e os príncipes pediam aos capitães que lhes trouxessem novidades das terras estranhas e desconhecidas para onde iam navegar. E os capitães faziam-lhes a vontade e traziam com eles homens descomunais, de grandes pés, que comiam ratos vivos ou selvagens tímidos que tinham medo de galinhas.

Mas esta cura da Náusea pelo bizarro, pelo inédito, tem uma expressão dolorosamente melancólica naquela cena em que Filipe II de Espanha triste e soturno vencido pelo tédio, recebe a primeira flor da camélia, (a semente fora trazida do Japão pelos nossos navegadores) que desabrochou na península. Então perante a alvura faiscante das pétalas, Filipe deslumbrado sorri, deliciado!

O homem moderno vencido pela Náusea tem uma necessidade extrema do inédito para sorrir, como sorriam os príncipes e os reis desenfadados com as graças dos anõezinhos da sua corte.

Façamos agora para tornar mais convincentes as afirmações já feitas (e as que vamos ainda fazer) uma rápida análise do panorama contemporâneo no ponto de vista cultural, artístico, científico e filosófico.

A Ciência dos nossos dias de tal modo se especializou que não seria fácil, baseando-nos em qualquer dos seus ramos, tão estranhos uns aos outros, criar um sistema geral de Filosofia que a todos enquadrasse numa síntese grandiosa.

Se admitíssemos, como os marxistas, que o materialismo dialético se aplica à matéria sujeita à evolução, aceitaríamos ao menos, um princípio comum na génese das diferentes formas porque vai passando a matéria na sua evolução. Sucedeu porém que ao aplicarem a teoria do materialismo dialético à genética, os sábios russos encontraram sérias dificuldades que foram causas de controvérsias e discussões.

Por outro lado, se não podemos basear nos dados da ciência actual uma explicação metafísica da vida, muito menos podemos tirar delas normas de acção político-social ou moral e tudo quanto fizermos nesse sentido / 8 / é pura fraude, como acontece com certas criações históricas e políticas dos nossos dias que, apresentadas como verdades, não passam na sua essência de verdadeiros mitos como o da vocação imperialista de Roma, dos fascistas, o da superioridade da Raça, dos alemães, o da Sociedade sem classes e da igual distribuição das riquezas, dos Russos, o da Democracia, dos povos vencedores da guerra.

Estas fraudes se fossem apenas pitorescas, nenhum mal vinha delas ao mundo, mas o pior é que contêm em si um dinamismo que leva à guerra. É que os deuses que vivem no centro da teia de aranha mitológica são cruéis, sanguinários, traiçoeiros, exigem a câmara de gás, o tiro na nuca a morte de simples cidadãos franceses, à simples menção do seu nome nas emissoras.

Fala-se das torturas da Inquisição que era um tribunal político e religioso e não se tem em conta o número de vítimas que neste século da liberdade e da luz foram sacrificadas a esse deus sanguinário!

Se o fanatismo dos mitos, de que já falámos, torna os homens cruéis, sanguinários é, se o homem tem necessidade de adorar um Deus, porque não há-de adorar a «Humanidade» que graças à ciência e à técnica tem operado maravilhas no mundo e que na sucessão incontável das gerações se pode considerar eterna? Não se encerra nela um poder que transcende o do homem? Sim, Renan, Comte, Carlyle, entre outros, pretenderam instituir este novo culto. A Humanidade era uma espécie de rio sagrado, manando das longínquas cavernas da ignorância primitiva, correndo primeiro por vales apertados, espumante de cóleras terríveis, veloz e decidido, espraiando-se, nas nossas idades numa larga campina coberta de botões de ouro, de boninas e trevos de quatro folhas, a caminho dum Oceano largo e profundo de Paz e de Amor!

E quem escavava o leito a esta torrente impetuosa? A Ciência. Ela tinha, nas suas mãos o poder terrível do Raio abrasador nas mãos de Júpiter. Criava e destruía. Por ela com o seu poder real, tangível, viria a felicidade ao homem que em vão a esperava desse Deus antiquado, que o Medo gerara na sua mente confusa.

A Ciência! Renan adorava-a. Dizia-se mesmo seu sacerdote: eu o padre da Religião da Ciência». Esta afirmação revelava a vocação sacerdotal a que renunciara, deixando o Seminário.

Marx, de seu lado, sentiu também os efeitos da sua educação na religião judaica ao fazer do proletário o Messias salvador do mundo. A este propósito, Berdeaeff esclarece: «A ideia do messianismo operário demonstra que subsiste na consciência ateia qualidades de alma pedindo uma fé e capazes de fé».

Kologrigoff acrescenta ainda: A Bíblia da Igreja comunista é o «Capital» de Karl Marx. O Comunismo tem os seus ritos, os seus santos e até uma relíquia venerável: A Múmia de Lenine numa praça de Moscovo.

Seria o caso talvez de dizer com Camões: E por derradeiro, o falso deus adora o verdadeiro!

Compreende-se que deslumbrado pelas criações magníficas da Ciência e das Técnicas o homem se sentisse orgulhoso do seu poder e quisesse, ao glorificar a Humanidade, atribuir a si próprio uma centelha divina. De resto igualar os deuses foi sempre a sua suprema ambição. Sabendo-o, a serpente tentou convencer, o homem a comer o fruto proibido, dizendo-lhe: serás semelhante a Deus!

Sabemos das trágicas consequências que vieram ao Homem da substituição do cristianismo pelos mitos explosivos de que já falei e vamos ver também que este culto pela Humanidade, que se mantém hoje com maior ou menor expansão nas nações e com que se pretende iludir a sua ansiedade pelo Deus dos Cristãos, não tem um fundamento sério. Efectivamente, aqueles que à falta de melhor pretendem divinizar a Humanidade fazem-no deslumbrados pelas maravilhas do seu progresso científico e técnico, Para esses é a Ciência quem contém a Realidade e não a Realidade quem contém a Ciência, que olham como se fosse senhora e não serva da Vida. A experiência científica é, decerto, um modo muito respeitável de conhecimento humano, mas não quer dizer que não haja outros modos de conhecimento igualmente úteis e respeitáveis. Mais ainda. É à filosofia, e não à Ciência, que compete interpretar a Vida situando a Ciência no seu justo lugar na imensidade do todo. As verdades da fé são tão respeitáveis como as da Ciência que dela são complemento.

Perante este endeusamento da Ciência poderíamos ser levados à convicção de que as / 9 / suas conquistas eram de tal modo sublimes que se aproximavam da perfeição absoluta. Ora isto não é assim, como vai ver-se. Comecemos por dar um exemplo, para melhor se compreender o que vamos afirmar. Sabe-se que o mineral é um ser que não nasce, não cresce, segundo uma lei regular, não se reproduz, mas disfruta um bem que os outros seres não possuem: não morre. Passando ao grau imediato da perfeição dos seres que é o das plantas, vemos que elas nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. Passando aos animais, verificamos que nascem, crescem, reproduzem-se, movem-se, mas também sentem e morrem. Passando ao homem, vemos que sofre não só fisicamente, mas também moralmente. Quer dizer, no ponto de vista orgânico, a planta é mais perfeita que o mineral, mas pagou essa perfeição com a morte, o animal irracional mais perfeito que a planta, mas essa perfeição foi paga com o sofrimento físico, e o homem, o mais perfeito de todos os seres, pagou a sua perfeição com a dor moral. Vemos pois que há em tudo uma dádiva, melhor, de que a perfeição se paga!

Passemos agora às criações humanas. Quando não havia meios de transporte e o homem se deslocava a pé, os acidentes de viação eram mínimos. Depois com os carros puxados a animais aumentou a velocidade, mas aumentou também o risco. Com os comboios sucedeu o mesmo, com os aviões de velocidade superior à do som o perigo é imenso.

Poder-se-ia dizer o mesmo, por exemplo, da pólvora que, excelente instrumento de progresso, é contudo a causadora das formidáveis hecatombes das guerras.

Portanto, nem Deus nem o Homem criam coisa alguma que não seja limitado nas suas possibilidades e portanto imperfeito.

E isto é bem compreensível se atendermos a que na dialéctica de Hegel a contradição é a alma da realidade. Quer dizer, todo o ser concreto é uma aliança do sim e do não, do Ser e do não Ser.

Por consequência sempre que pretendemos criar aquilo que nos convém, criamos também o que nos não convém.

Podemos, tendo em vista estas considerações, dizer que Deus estabelece um limite de perfeição no mundo. Se o homem pudesse realizar a perfeição sem condicionamento algum, poderia aspirar à perfeição absoluta que é um atributo de Deus.

Daqui concluímos que o decantado Paraíso Comunista, onde o homem viveria numa felicidade edénica e para onde segundo os sequazes da doutrina o Progresso nos está empurrando, não passa duma utopia, pois que se alcançássemos esse Paraíso teríamos de ter ao lado o Inferno.

Ainda outras razões confirmantes do que temos dito sobre este assunto: A Ciência chegou à conclusão de que a Matéria e a Energia são constantes; desaparecem duma forma para aparecerem doutra segundo uma determinada relação. A Filosofia baseada nestas afirmações pode afirmar que a Perfeição dos seres: constituídos por Matéria e Energia é também constante, o que tanto monta dizer não podemos criar qualidades à matéria, mas apenas transmudá-las.

Voltemos à desintegração da matéria que é a maior maravilha do mundo actual e a maior esperança da Humanidade, e perguntemos: não foi essa mesma desintegração atómica a causa de desaparecerem dum momento para o outro duas cidades japonesas com a morte de crianças, velhos e mulheres, no meio de horrorosos sofrimentos?

Assim é verdade, mas o pior de tudo é vivermos ainda no temor duma catástrofe semelhante (senão ainda mil vezes pior) que nos pode levar pela destruição da nossa civilização à idade da pedra como temeu Einstein.

Triste, muito triste que após trinta ou mais séculos de civilização o equilíbrio do Mundo esteja assente num sentimento que desde o princípio o Homem combateu, tendo-o por vergonhoso, e que por isso jamais confessa: o Medo!

Sentimos por assim dizer um pavor cósmico semelhante ao terror que experimentava o homem primitivo no interior da sua caverna, ouvindo as feras rugirem entre as árvores da floresta.

O Medo, sentimento confuso que tanto pode ser meio de educação, como de conservação da espécie humana, pode ao mesmo tempo transformar-se num processo de destruição e de morte! Salazar disse com singular agudeza: «Tenho medo do medo».

O meu ilustre colega Cunha Amaral que é, sem favor, um dos engenheiros portugueses de mais larga cultura científica fez aqui uma / 10 / conferência notável sobre energia atómica e que foram por ele, com a autoridade do seu talento e do seu saber suficientemente elucidados; não cabe portanto fazer aqui quaisquer referências a esse magno problema. Convém no entanto transcrever aqui algumas afirmações de Jules Moch colhidas no seu livro «A Loucura dos Homens».

«A eventualidade da destruição termonuclear de uma fracção da humanidade, diz ele, faz pesar sobre a vida humana uma inconcebível hipoteca plena de terríveis perigos. Não temos o direito de fechar os olhos sobre pretexto de que a catástrofe não é para hoje, pois se ela se abate um dia sobre o mundo será muito tarde não só para a deter, mas mesmo para a limitar». E noutro ponto: «Não há solução intermediária durável: A actual guerra fria mantém e amplia o risco para todos. A corrida aos armamentos multiplica-o sem proveito algum, levando à criação num campo de novas forças, à criação de unidades similares no outro, sendo todo o aumento de stocks de bombas a contrapartida dum aumento semelhante, Desarmar ou correr o risco de perecer, tal é a escolha da humanidade!

São na realidade bem sinistras as perspectivas do futuro da Humanidade.

É sem dúvida um paradoxo trágico a Ciência servir simultaneamente para engrandecer o homem e para o perder.

Parece vermos aqui em toda a sua agudeza o dualismo do Bem e do Mal que existe em toda a criação humana e de que falei há pouco. Agora que tudo possuímos estamos na eminência de tudo perder, O NÃO SER absorve em si o Ser. O Negativo ultrapassa o Positivo!

É agora ocasião de perguntar − Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e condenou-o irremediavelmente a este dualismo cruel? Não lhe deu meios de se libertar desta terrível contingência?

Deus não abandona o homem, pois que pôs à sua disposição um meio de salvação de natureza sobrenatural. A Graça! Só com ela o Homem se pode salvar, não só no outro mundo mas até mesmo neste!

As cousas que Deus põe ao nosso alcance não são dadas gratuitamente, mas com a condição de nos servirmos delas, tendo em atenção que Deus as criou não para que lhe ficássemos subjugados, para que as sobrestimássemos, mas que perante o nosso Destino Eterno as olhássemos como seres inferiores no plano da criação.

Eis porque um dos meios de alcançar a Graça é a Renúncia, o desprezo por aquilo que é supérfluo ao nosso destino sobrenatural.

«O Homem precisa da Graça, sem ela não pode mudar». Não sou eu quem o diz, mas não menor pessoa que Claude Bernard...

Ora a Graça é um dom gratuito de Deus. A fé é já graça de Deus − para o qual o homem aliás pode decerto modo dispor-se enquanto se liberta de tudo aquilo que o impediria de executar a palavra de Deus.

A ausência do Cristianismo no mundo explica a falta da Graça com as trágicas consequências que acabei de citar.

Vejamos agora outras causas do abandono da igreja. Comecemos pelo Cientismo, que é uma pretensa filosofia em nome da qual se tem procurado combater o Cristianismo, menosprezando as afirmações da fé, acreditando apenas nas conclusões da Razão.

Quando nos referimos à Ciência temos em vista as ciências experimentais e as de observação que desde a Renascença adquiriram grande prestígio pelos frutos assombrosos que nos deram.

Com excepção de Rogério Bacon e poucos mais os sábios medievais não se dedicavam à experiência mas antes ao estudo da Filosofia e da Teologia que era então a Rainha das Ciências.

No entanto a filosofia medieval é racionalista se entendermos por Racionalista a possibilidade de chegarmos até Deus só pela nossa Razão, tal como o fez S. Tomás.

Neste racionalismo medieval se continha implicitamente o método experimental pois que admitia, como as ciências experimentais, que a natureza era contingente e que portanto só a experiência nos podia indicar a verdade das coisas.

Porque foi então que a Idade Média se não deu aos métodos experimentais? É sabido que nessa época só a salvação eterna interessava ao homem, que tinha a sua passagem pelo mundo como uma curta viagem, não valendo a pena demorar-se muito a olhar a paisagem porque depressa a noite se fechava. Era o doce tempo de S. Francisco de Assis e da imitação de Cristo que tinham em pouca / 11 / conta a ciência vinda do entendimento humano perante as verdades reveladas por Deus.

Depois, ainda não estava totalmente extinto o preconceito pagão contra o trabalho manual que era relegado para os servos de gleba. Por outro lado, era natural que, antes de pretender conhecer o mundo o sábio medieval se procurasse conhecer a si próprio, importando-lhe mais conhecer-se na sua alma do que no seu corpo.

Todas esta razões explicam que só na Renascença quando o homem deixou de olhar para dentro de si, para contemplar o horizonte que o cercava se desse ao método experimental.

Para sermos justos temos de dizer que o triunfo rápido do método. experimental na Renascença se deve, em parte, à agilidade intelectual ganha na Idade Média pelo exercício contínuo da Razão em busca das verdades transcendentes.

No entanto, quando Galileu e Torricelli realizavam as suas experiências, quando o estudo das coisas do mundo preocupava os homens mais do que o estudo das verdades divinas, a Magia e outras práticas supersticiosas prosperavam rapidamente fazendo reverter para ele a actividade espiritual, dantes consagrada a Deus.

Esta propensão para a Magia nem mesmo nos séculos das luzes acabou pois persiste, sob outros aspectos, igualmente fantasiosos, ainda nos nossos dias, tão certo é o homem não poder dominar a sua ânsia de maravilhoso por mais esclarecida que seja a sua mente.

Os magos do nosso tempo são os técnicos. Tudo se espera das suas mãos prodigiosas: A ida à lua, a cura milagrosa das doenças, a fartura do pão, a criação duma moral científica com princípios justos, claros, precisos, altamente conveniente aos interesses do homem na Terra.

Saint Simon levado na corrente desta sublime aspiração pretendeu que os sábios mais eminentes se reunissem formando o que ele chamava o conselho de Newton a fim de substituir a Santa Sé no seu poder religioso.

Um dos fins deste mirífico areópago seria nada menos do que extrair da lei da gravidade os princípios morais, que nela se contêm. Seria curioso saber como da lei da atracção das massas podem advir imposições morais.

Esta imoderada paixão pela técnica levou na Rússia à criação duma nova modalidade de engenharia, a engenharia social destinada a converter os países anexados, burgueses e relutantes, em obedientes serventuários de Moscovo. As ciências mães desta técnica estranha seriam a psicologia experimental (oh as maravilhosas experiências de Pavlov) e a sociologia e os meios de acção seriam, decerto, a calúnia, o boato, os cartazes de propaganda vistosos e coloridos, os slogans gritados continuamente através dos altos-falantes, o povoamento das cidades com as estátuas dos grandes homens soviéticos; de Lenine sobretudo.

De resto talvez isto ainda não bastasse, talvez fosse necessário como na Jugoslávia substituir esta frase dos livros sagrados: Ao princípio era o verbo por esta outra: «Ao princípio era Tito».

Assim procede este prodígio da Técnica moderna, a engenharia social, tratando o homem, como se ele fosse uma coisa inerte e passiva e não criado por Deus à sua imagem e semelhança!

Este abuso da técnica é uma das causas da ausência do Cristianismo no Mundo e não decerto das menos importantes, na sua acção maléfica de apear o homem da sua grandeza de filho de Deus, negando-lhe os sublimes direitos da pessoa humana cuja conquista é uma das maiores glórias do Cristianismo.

Passemos agora a falar da Liberdade.

Parece que o homem deseja a Liberdade para ter o gosto de a perder. E perde-a com volúpia diante duma mulher, com avidez diante do ouro, com vaidade diante da fama, com reverência diante do seu ídolo desportivo ou do seu Clube, como a perde, em casa, diante das exigências dos filhos ou das imposições da esposa. A boa educação, o protocolo, a decência, não lhe dão a liberdade de trajar como quiser, mas sim conforme a invenção da moda. As suas ideias não podem ser senão as da maioria pois de contrário dizem-no desactualizado. Os seu gostos têm de ser os de todo o mundo, para que o não digam um extravagante, um pretensioso, um idiota.

Estas solicitações esmagariam o indivíduo se tal como acontece com a pressão atmosférica elas se não anulassem umas às outras.

De resto há uma liberdade de que não abdica, de que é cioso: a sua liberdade política. Quando lhe falam em liberdade pensa / 12 / imediatamente na liberdade política. Ser livre para ele é ter o poder de eleger quem lhe aprouver; as outras sujeições da sua vida particular não lhe interessam, não constituem, como diz enfatuadamente, o seu problema.

Chego muitas vezes a perguntar a mim se no fundo a maioria dos homens modernos ama a liberdade, pois que tão facilmente prescinde dela na maioria dos casos.

É que a liberdade pressupõe a responsabilidade e exactamente o que nos custa é tornarmo-nos responsáveis seja pelo que for. A Liberdade política agrada porque a responsabilidade dos actos que praticamos resvala para as maiorias uma vez que são elas quem em última análise decidem.

Só os fortes, os heróis ou os santos, são libres, só eles sabem abrir caminho na floresta negra dos nossos enganos e dos nossos preconceitos, como só um lenhador de pulsos vigorosos, pode abrir, com o machado, uma clareira na densidade duma floresta virgem. A liberdade é um instrumento de corte que necessita de ser manejado com decisão e força para ser eficaz. Os débeis depressa se cansam com o seu uso.

O cristianismo quer o homem livre e forte para que, depois de doutrinado, escolha, sem estorvos, o seu caminho. Esta independência não convém aos Estados que renegam o cristianismo pois que o homem livre e forte é sempre um estorvo à execução dos seus princípios de governo atentatórios da dignidade humana.

Vejamos agora os desportos.

O povo romano ocioso e devasso pedia aos Imperadores PÃO e CIRCO que tem na nossa época o equivalente nas reivindicações das massas: Pão e Sexo.

Os estados, ainda mesmo os mais avançados parecem adaptar medidas legislativas tendentes a evitar os desregramentos sexuais, pondo todo o seu cuidado em fornecer abundantemente o pão de cada dia mediante um conjunto de leis sábias que defendem os salários, embaratecem os géneros, asseguram o tratamento na doença, o seguro na invalidez, a reforma na velhice. Deste modo o Estado, com uma solicitude paternal, ocupa-se de tudo, pouco deixando à iniciativa individual do homem que não pretenda sair da cadência regular duma vida modesta. E que exige ele em troca destas admiráveis concessões? Quase nada. Apenas pretende que os seus súbditos sejam ordeiros, disciplinados, bem educados, sobretudo com os estrangeiros, de modo algum hostilizando os que no desenfado do Turismo deixam no País o seu ouro. E para os atrair manda aos seus súbditos que rebusquem nas velharias do passado, vistam os seus trajes antigos, cantem as suas canções, executem as suas danças para com o seu pitoresco espairecer a mente entediada do turista.

Pede além disto, obediência às ordens da polícia, atenção aos sinais de trânsito, a caridade do bom samaritano quando lhe aconteça atropelar alguém na estrada e acima de tudo pontualidade no pagamento do imposto.

Verdade seja que às vezes este doce viver é quebrado pelo sobressalto das greves, mas depressa se atenua a quezília, tudo ficando reduzido a uma série de entrevistas entre os graves senhores dos respectivos sindicatos sob os olhos severos das autoridades.

Decerto, este modo de vida é perfeito, mas insuportavelmente monótono e não se compadece com as exigências do fundo selvagem do homem que sente avidamente o desejo egoísta de saborear a sua vitória sobre o próximo. O ódio ou o amor dentro da esfera da sua vida particular não o satisfaz, necessita de se entregar ao ódio ou ao amor colectivo! Além disso sente uma necessidade irresistível de tomar partido, de adorar, de engrandecer os deuses que venera!

Ora o desporto é um modo pacífico e legítimo de dar expansão ao atavismo das suas tendências de luta e opressão, que a civilização cobre com a sua capa rota. A multidão engolfa-se no desporto para se libertar do tédio que pesa sobre a sua vida monótona.

No entanto parece que este desafogo honesto das censuráveis tendências ancestrais de luta e opressão não basta já ao homem, especialmente aos rapazes que procuram fugir ao tédio, à náusea, não pelo desporto, mas pela aventura sangrenta e criminosa dos «tedy boys».

Sabe-se como a criminalidade juvenil aumentou em países altamente civilizados. Os jovens desorientados pelo cinema, assombrados pela carnificina duma guerra estúpida e cruel, ávidos de gozo, precipitam-se no crime realizado com um sadismo, melhor diríamos, com uma birra autêntica de meninos. / 13 /

 

As jovens por seu lado perderam o vivo sentimento de pudor que as mulheres dum modo geral possuem deixando de sobrestimar em si o valor da virgindade.

Parece cair sobre esta pobre Humanidade, afastada de Deus, a cinza dum tédio insuportável que leva ao suicídio em países altamente civilizados como a Suécia, a Noruega e a Dinamarca. Aí é tão grande o número dos indivíduos que atentam contra a existência que nos hospitais há ambulâncias prontas a partirem ao primeiro chamamento e nos precipícios que os suicidas costumam utilizar para porem termo à vida, há densas vedações de arame farpado. De que provirá este desgosto de viver, quando a Terra parece ser um paraíso que os democratas celebram como um exemplo maravilhoso da eficácia do seu sistema de governo? Não vemos outro senão o do Tédio, caindo com uma cinza densa dum céu nevoento e hostil. É que nestes países descristianizados tudo está sabiamente regulamentado pelo Estado e a vida torna-se numa regularidade perfeita, numa monotonia desesperante. A política já lhes não interessa, porque não desejam melhor forma de governo do que aquela que possuem e, além disso, todos os seus problemas estão resolvidos, Há o caso das complicações internacionais, mas esses afastam-se com uma prudente neutralidade ou com o estabelecimento de rampas de foguetões.

Saído da fábrica, do escritório, da oficina, o trabalhador tem oito horas para se distrair. Mas onde encontrar as distracções que afastem aquele tédio mortal? Talvez as mulheres... Mas de tal modo as relações sexuais são fáceis que já não interessam,.. Ainda de todos os prazeres sem dúvida o mais aceitável é o de beber porque leva ao esquecimento e debaixo da influência do álcool penetra-se no paraíso cor de rosa de que se anda à procura...

No entanto a consciência de se ser um bêbado, de se degredar da sua condição humana para esquecer o seu tormento, persegue-o desgraçado nórdico. Não será porventura melhor morrer, deixar esta vida enfadonha que sufoca o homem debaixo da cortina de chumbo do Tédio? Que tem temer na outra vida? Afinal de contas, nada. O seu Deus cristão está provado que não existe. E quem sabe se o paraíso dos Vikings não existirá?

A Morte que venha, pois, ao seu encontro! Ela é a única realidade agradável da vida!

É este, meus senhores, o drama dos países supercivilizados, caídos no envilecimento e na Morte, porque renegando a Cristo não fica ao homem nada que possa dar sentido à vida.

Queria falar-lhes já que me estou referindo aos desregramentos sexuais a uma casa de regeneração de meretrizes existente na Gafanha da Nazaré fundada por uma alma ardente de mulher cristã, dessas que fazem a glória da história do Cristianismo.

Quero referir-me ao Lar da Divina Providência, na Gafanha da Nazaré, onde vêm buscar abrigo tantas almas perdidas nas misérias do vício. Se eu vos pudesse contar aqui as histórias dolorosas das infelizes ali recolhidas, a sua pungente realidade vos abalaria decerto mais do que aquele humano prefabricado e muito em voga hoje no cinema e no romance com que se pretende cativar a vossa sensibilidade e que, não é muitas vezes mais do que retórica posta ao serviço do pitoresco. Vou citar apenas o caso dum padre, homem modesto e desconhecido, que entra com a sua pasta, tira um maço de notas e sai enigmático e sombrio como entrara. Ninguém sabe quem é, ninguém lho pergunta, ninguém procura saber. É um penitente ou uma alma abrasada em caridade? Não é para os homens desvendar este segredo que, talvez só Deus conheça.

O que importa saber é que a sua esmola, e outras, a dedicação heroica de algumas meninas, uma das quais de precária saúde que esquece os seus muitos sofrimentos físicos para se dar como serva a estas infelizes que o mundo despreza, sujeitando-se a trabalhos com que a sua pouca saúde não pode, a estas sublimes dedicações, ia dizendo, se deve atribuir a salvação de muitas raparigas entradas naquele Lar da Divina Providência que Deus abençoe.

E agora para finalizar este trabalho quero referir-me, conforme prometi, a alguns episódios da ocupação pelos comunistas de Tito da Eslovénia, província da Jugoslávia habitada por católicos fervorosos. Este relato foi-me comunicado por uma testemunha abalizada, pessoa da minha maior consideração.

As liquidações faziam-se, diz o relatório, com a máxima crueldade. Assassinos comunistas entravam nas casas, anunciavam as / 14 / vítimas, ao pai de família, à mãe ou ao filho que eram suspeitos de colaboracionismo pois pertenciam à Guarda Branca. Começavam por lhe ligar as mãos e, se tinham pressa, matavam-nos logo ali. Se, porém, tinham tempo para delongas, conduziam-nos aos bosques onde os martirizavam de vários modos, antes de os matarem.

Muitas das vítimas, até mesmo mulheres grávidas deviam abrir as sepulturas com as próprias mãos e a sua crueldade chegava ao ponto de exterminarem famílias inteiras, até mesmo crianças inocentes. Assim aconteceu por exemplo à família Mausar da aldeia Prapoce, paróquia de S. Roberto, que constava de nove membros: O pai que se chamava José, a mãe Teresa, o filho mais velho, Darko, eminente desportista jugoslavo que tinha conseguido o primeiro prémio no lançamento do dardo nos jogos olímpicos, o filho Cirilo de 17 anos, a filha Maria de 15, Pedro de 13, EstaIlislau de 10, Guilherme de 11 e Adolfo.

Os comunistas levaram-nos para um curral, torturaram-nos de diferentes modos todo o dia e à tarde chegaram fogo ao curral e queimaram viva toda a família.

Salvou-se por acaso do incêndio o filho Guilherme de 11 anos que um ano depois foi também morto quando o comandante dos comunistas de nome Tomine o encontrou por acaso na estrada e o matou à pistola. Em Pedolo um comunista de nome Rafael Martine assassinou a própria sobrinha e o marido diante dos filhos, tenras criancinhas. Ao jovem Francis Intihar da aldeia de Vasek retalharam completamente o corpo tirando-lhe as vísceras. O Padre Norbert Clement, sacerdote cisterciense, foi suspenso duma árvore com a cabeça para baixo e nesta posição o seu corpo foi retalhado até expirar após um martírio de 11 horas.

Um dos carrascos de nome Majnik com o nome comunista de James, comandante da brigada de Tito chamada Cankar, recolheu o sangue num copo e levou-o aos lábios dizendo: «A quem bebe sangue dum padre, nenhuma bala o fere, O jovem estudante Grozne Luís, membro da Acção Católica que tinha vindo passar as férias natalícias à sua terra natal na aldeia de Mirna foi preso pelos comunistas. Encontraram-lhe no bolso um devocionário em língua latina e alguns livrinhos religiosos. Isto bastou para o condenarem à morte. Arrastaram-no ao Teatro onde se reuniram os comunistas para festejar o ano novo, pois estava-se em 31 de Dezembro. O único número do programa daquela festa foi o martírio do santo jovem. Depois de lhe arrancarem os olhos, fracturam-lhe os ossos, deixaram todo o corpo numa posta de sangue. Ficou de tal modo deformado que os comunistas não se atreveram a sepultá-lo publicamente.

Terrivelmente e sem outro fim que não fosse o de aterrorizar a população foi martirizada a jovem Malnarcek da aldeia de Sad. O seu delito de colaboracionismo com o fascismo foi este: Como fosse comprar sal à aldeia de ST. Vid, ocupada pelas tropas italianas, dois comunistas prenderam-na e conduziram-na ao bosque onde se encontrava o comando comunista. Amarraram-na a uma árvore e o Comissário Político interrogou-a: − Que foste fazer a St. Vid? Comprar sal? − Mentes.− gritou o bandido e quando a rapariga ia falar para se justificar um dos guardas bateu-lhe com um pau na boca que se inundou de sangue. Condenaram-na à morte e tiraram à sorte quem a devia matar. Coube aos comunistas Tigre e Lince fazê-lo.

Aproximaram-se da rapariga e disseram: − Estamos livres durante três dias. Vamos bater o record das mortes lentas! Começaram a torturar com sofrimentos lentos, horríveis e inacreditáveis, a desgraçada rapariga, que ao fim de dois dias morria.

Podíamos citar muitos casos como estes, e até outros mais horrorosos. Mas para quê? Estes bastam para mostrar a fera em que o homem se torna quando renega os sagrados deveres impostos pelo Cristianismo aos homens de boa vontade.

Meus senhores, pretendi mostrar-vos, ainda que com pouca eloquência, as consequências da ausência do cristianismo no mundo. O assunto era vasto e profundo e demasiado para as minhas pobres forças intelectuais. Dei o melhor que tinha: a minha boa vontade. Oxalá ela vos tenha convencido de que a religião cristã não tem a explicação económica que lhe dão os comunistas, nem é originada pelo medo como pretendem os materialistas liberais. mas antes uma revelação divina que vem ao encontro das angústias humanas e da plena expansão às suas sublimes aspirações.

O papel da religião no mundo não pode / 15 / ser substituído pela ciência, nem por normas empíricas capazes de, pela sua observação o levarem à felicidade. E para que substituir a religião mesmo no seu papel exclusivamente social? Porventura é ela anti-humana? Amesquinha ou engrandece o homem? A história nos diz se foi ou não o Cristianismo quem criou os direitos da pessoa humana e isto bastaria para fazer toda a sua glória.

Penso também que se uma justiça perfeita duma regularidade mecânica conseguisse substituir, tornar inúteis as divinas arbitrariedades da Caridade a Vida seria menos bela. É que a Caridade é Amor e a vida sem Amor ficaria reduzida a uma engrenagem horrorosamente estrídula.

Meus senhores, decerto esperáveis que neste breve bosquejo do Destino Humano vos apresentasse a Humanidade como Rainha de manto e coroa, vestida de púrpura e coberta de ouro e eu apresentei-vo-la como uma pobre mendiga errante pelos caminhos da História de mãos erguidas à espera duma esmola de luz que venha do alto.

Contemplando-a assim, sinto por ela e por mim que sou seu filho, uma piedade escaldante. Desejaria ajoelhar e beijar-lhe os pés cansados da longa jornada, desejaria dar-lhe o meu braço e guiá-la para o País de Maravilhas por que ela anseia, mas Deus não me deu esse poder nem decerto a ninguém do mundo, porque Ele não a criou para esse destino mesquinho, mas para outro mais alto: o da sua felicidade eterna.

CONFERÊNCIA PROFERIDA EM 21 DEZ. 1959 NO CENTRO DE ESTUDOS POLÍTICO-SOCIAIS DE AVEIRO

 

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07-02-2022