O CORAÇÃO DO
ARRAIS
Uma carta
Meu caro
Américo
Só ontem à
noite pelo «Século», soube da morte do Arrais Ançã. Como homem
do mar, principalmente, eu tenho de me curvar, com sentimento
e respeito, perante a morte duma das grandes glórias que teve
a nossa terra.
O Arrais,
em qualquer parte do mundo, seria, já em vida, homenageado e
rodeado de carinhos e atenções que não teve, sequer, na sua
própria terra. Teve amigos; e um deles foi o meu caro Américo.
É, pois, ao meu amigo a quem eu escrevo, para dizer que sinto
imenso a morte do nosso glorioso Ançã.
Eu não sei
se Beira-Mar homenageará, condignamente, a memória do Arrais.
Entendo que os nossos amigos Cesário e Guilhermino tinham esse
dever.
Vou
contar-lhe um facto, que diz respeito ao herói desaparecido do
número dos vivos, e que mostra bem o carácter
(Continua na 3ª página) e os
sentimentos que ele possuía.
Quando o
Arrais era de facto Arrais, no tempo em que dizia que a
senhora francesa, que ele salvara, não se compreendia a falar,
porque era... «gaga»; no tempo em que ele dizia aos homens que
arrancava à morte, devido ao seu saber, ao seu sangue-frio, à
coragem e à sua bravura, que deitassem as lágrimas no «vertedoiro»
para ele beber, porque tinha sede — havia uma «coisa» que
muito o preocupava e o fazia sofrer imenso. Era a triste sorte
dos velhos pescadores que jaziam nos seus casebres, sem terem
pão para comer, por‘que já não tinham força nos braços para
remar, nem nas pernas, para, ao menos, se «mexerem a atar
cordas», no arrastar das redes...
E então, o
nosso Arrais, confrangido por ver os seus irmãos do mar sem
pão para comer, se tinha lugar, na remendagem das redes, para
dois velhinhos, logo empregava nesse serviço, seis ou oito. E
depois, já menos amargurado e enquanto a sua companha
descansava, ele ia às outras do Norte ou do Sul, e até às da
Vagueira e S. Jacinto, e dizia para os outros arrais:
Na minha
companha já tenho tantos velhos, mas na minha terra ainda há
tantos sem pão. Preciso que m’os «arruem». E, se conseguia o
que desejava, que consistia em dar pão a todos ou quase todos
os inválidos, seus irmãos do mar — a sua alegria era enorme e
manifestava-a, pagando o «alvorque» aos valentes — à sua
companha.
Veja o meu
amigo que grande coração não albergava aquele arcaboiço,
aquele valente!
E o Arrais
morreu velho e pobre, e nem todos os que podiam procederam
assim generosamente, para com ele.
Isto foi-me
contado por um velho pescador, que trabalhou, anos seguidos,
sob as ordens do Arrais.
Se vê que
deve tornar-se público este grande gesto do velho lobo-do-mar
— e eu entendo que sim — queira o meu amigo publicar o que aí
fica.
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Mande
sempre o amigo certo e dedicado
Viana do
Castelo, 26-2-1930.
José Simões Bixirão. |