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Diversos


A Reconquista de Olivença - Ascêncio de Freitas

 

Portugal foi obrigado a entregar Olivença à Espanha em 1801. Em 1814-15, o Congresso de Viena restituiu Olivença a Portugal mas a Espanha recusou-se a cumprir essa determinação. Olivença estava destinada a ser um espinho na consciência da alma nacional, se assim me posso exprimir. Por isso me parece ter muito sentido que Ascêncio de Freitas tenha escolhido este título e não outro se bem que tenha havido outras praças que pertenceram a Portugal e mais tarde passaram a integrar o território espanhol.

Ora, a estória passa-se posteriormente à guerra civil de Espanha como se depreende dos comentários à matança de Badajoz feitos por um octogenário (que já viu muita coisa).

A estória é contada de um modo diacrónico ainda que aqui e ali ocorra uma ou outra analepse (flash-back do cinema).

Trata-se de um romance que é, antes de tudo, uma análise de um conflito humano e de como um indivíduo é bem o resultado da educação que recebeu dos seus pais. Nesta obra, os pais corporizam duas maneiras de encarar a vida: uma que decorre de uma postura conservadora (permanência dos mesmos valores morais, dos mesmos usos e costumes alicerçados numa visão judaico-cristã tradicional e institucional) e outra que aponta para o sonho (a generosidade, a solidariedade para com os outros, uma certa perspectiva dionisíaca da vida).

Não é por acaso que o romance começa pela epígrafe, devida a Camões, autor, de resto, várias vezes citado ao longo da obra:

E aos pais com filhos jovens:

“Olhai que vos obriga

verdes que em vosso tempo rebentou

o fruto daquel ‘horta, onde florecem

plantas novas, que os doutos não conhecem.”

E também não é por acaso que grande parte da obra tem como narrador Francisco Tavares Sacoto, aliás Chico Sacoto, fruto dessa relação ou fruto daquel’horta a que se refere Camões.

Mas essa relação esconde, no meu entendimento, uma relação mais geral, é uma metáfora das relações humanas, umas que apontam no sentido do progresso, outras que apontam no sentido contrário. 

A mãe e o filho

A mãe, Florbela Tavares consubstancia o apego ao passado, apego acrítico, obsessivo ou até mesmo fanático.

Isso percebe-se desde o primeiro momento; logo a páginas 6, ela diz: “Filho, eu não quero morrer sem tu ires a uma guerra É esse o destino dos homens”. E esse “destino dos homens” repete-se como um refrão inúmeras vezes.

A mãe representa aquilo que várias vezes aconteceu neste pais: a vertigem que conduz ao desastre. Foi assim em Alcácer-Quibir e seria assim em Olivença se esta vertigem não fosse apenas ficcional. Mas foi assim em África, na década de 60 e nos primeiros anos da década de 70. A ida para a guerra era vista, nesses tempos, como um acto nobre por um número significativo de famílias ligadas ao regime.

Ainda na página 6, a mãe fala de um salvador que está à espera: não é o D. Sebastião mas é agora um senhor Almirante que haveria de chegar pelo Guadiana, rio quase sem água onde seria certamente, impossível, meter qualquer barco de guerra por menor que fosse o seu porte. Aquilo era apenas a desilusão de um rio, onde se podia andar a pé em todos os sentidos, dir-se-á mais tarde, a p.161. [As forças estariam] a ser organizadas algures para irem reconquistar Olivença, como noutros tempos os cruzados se organizavam para reconquistar o Santo Sepulcro (p. 6).

Esta mãe recusa o mar (movimento centrífugo) porque o mar é a saída, é a aventura, é o sonho. Diz ela logo na p. 7: “Ouve sempre o correr da água do rio e segue o rumo de onde ela vem, meu filho, porque é do lado onde nascem os rios que está a esperança”.

Ou na p.14: Não vás para a praia, filho! [..] O mar é um traidor E constituindo um movimento centrípeto, é simultaneamente, uma recusa da água, fonte da vida.

Chico Sacoto é um pobre pau-mandado sem vontade e sem ideias, dependente de uma mãe repressiva e obsessiva em nome de princípios cuja origem ela própria desconhece. Assim (p.8) à pergunta do filho: - Mas que destino é esse de que tanto fala, mãe? Que destino é esse?... responde a mãe: Não sei, mas sempre ouvi dizer que era assim. O meu pai repetia sempre isto que eu te digo, e dizia-me que já o pai e também o avó e o tetravô do avô dele diziam a mesma coisa Mas eu não sei que destino é esse. Juro, meu filho.

O próprio filho tem consciência da sua fragilidade face a esta mãe. O medo constante de contrariar a minha mãe, [dirá a p. 131] e fazendo sempre o que ela quer, tornou-me no que tenho sido até agora, um pau-mandado sem vontade própria... “Seja como Deus quer “, é o que está sempre a dizer.. Mas é como Deus quer ou como ela manda? Quem é que pode saber o que Deus quer ou não quer?...

Do carácter obsoleto, reaccionário desta mãe, que nós podemos identificar com muita gente do nosso conhecimento, desde a classe política até ao povo simples, muitos exemplos poderíamos encontrar nesta leitura. Assim, para mostrar como estas pessoas funcionam em circuito fechado, narcisicamente viradas para o seu umbigo, temos na p.9: Não, meu filho, não ouço nada. Nós só ouvimos o que queremos ouvir Esta mulher recusa a vida e procura a morte porque para ela [...] Morrer é caminhar para Deus.

Quem defende um tal ideário acaba por viver, paredes meias, com a mentira e é por isso que a encontramos reiteradas vezes dizendo que o marido partiu para a guerra onde se terá coberto de glória pela sua coragem, etc., etc., quando na verdade ele foi simplesmente assassinado. Baboseiras destas ouvíamo-las amiúde na década de 60 a propósito da guerra colonial.

De resto, algumas páginas adiante (p. 38) ouvimo-la conjecturar: De certeza segura o teu pai morreu na guerra como um herói.

Esta mãe e este filho partem, pois, rumo ao Alentejo, caminho de Olivença; ela, cega, porque não precisa dos olhos já que a sua vida é uma cegueira completa, transportada num carrinho de mão, pelo filho.

Vão à procura de um qualquer D. Sebastião numa manhã de nevoeiro, mas por esses campos que nos rodeavam nem um sopro de vida: o mundo imenso, o caminho interminável e nem uma só alma viva, apenas o enorme peso da solidão sobre nós (p.28). De resto, [...] em Olivença não se sentem senão os cheiros do bolor e da desilusão... (p.l02). 

Outros aspectos poderíamos ainda pôr em evidência sobre esta personagem como a xenofobia detectável na cena com a ciganita Marina.

Já dissemos como o filho é o produto de um fogo cruzado entre esta mãe e um pai que aparece sob a forma de espírito reduzido apenas a uma simples voz. Algumas vezes, este filho interroga a mãe quando esta lhe diz: “aguenta, meu filho, porque um homem precisa de ser valente” e fá-lo deste modo directo e cândido: Ser valente para quê?...” (p.31).

O pai

O  pai, já ficou dito, constitui o contraponto. É muito interessante assistir a um diálogo

entre ambos (p.34):

H — Mas quem é que o obriga a ir para a guerra? Se ele não quiser ir não vai.

Mãe — Eu não sei porque é que ele tem que ir, mas sei que esse é o destino dos homens.

H — Mas qual destino dos homens? Que conversa é essa?... A guerra pode lá ser o

destino de alguém?

Mãe Tu também foste para a guerra, e só agora regressaste. Era o teu destino... Não

tens porque falar.

H  Eu?... Mas qual guerra?... Eu nunca estive em guerra nenhuma!

E mais adiante Heliodoro Sacoto acrescenta: Nunca gostei de guerras!... E muito menos

de quem as faz e de quem acredita que possam servir para alguma coisa.

 

Ao contrário desta mãe que representa, o dissemos, tudo quanto é retrocesso, hipocrisia, mentira, Heliodoro assume o sonho e a alegria de viver, qualidades que coabitam com o gosto pela cultura repudiando com veemência a ignorância como se pode ver a p. 47: É uma vergonha ser ignorante, mas nunca fizeste nada para deixar de o ser, dirigindo-se a Florbela.

Não deixa de ser curioso cotejar pai e mãe através de um diálogo onde ambos se pronunciam face aos problemas do colectivo. Assim, a p. 68:

Mãe: Para que te metes tu em trabalhos, Heliodoro? [...] Que te interessam a ti os problemas dos outros?

H: Interessam-me, porque a fome e a miséria são coisas que interessam a toda a gente. Pelo menos deviam interessar., assim como a prepotência e o abuso do poder E a arrogância dos poderosos. Deviam interessar... [...]

Mãe: Mas sempre te metes em encrencas, homem! Podes muito bem viver sem isso, porque tu não passas fome. ninguém abusa de ti...

H: É o que te parece. Mal dos homens que não sabem repartir com os outros a generosidade que guardam no coração. E que não sentem a humilhação dos outros, a sua indignação...

De resto, Heliodoro, pronuncia-se de modo inequívoco sobre as verdadeiras razões da guerra. Veja-se a esse propósito a p. 81:

Não compreendes que a guerra é uma infantilidade da inteligência?... Ah, que desgosto que eu sentiria se estivesse vivo! Porque nunca poderia imaginar que um filho meu não fosse capaz de entender que aqueles que fazem a guerra ficam tranquilamente em suas casas, preparando os seus heróicos discursos, enquanto os tontos se matam uns aos outros para servir os interesses de velhos hipócritas. Velhos cínicos, capazes de beber uns com os outros pela morte dos próprios filhos no fim de cada discurso Mas sem serem capazes de o confessar, porque o fazem, no dizer deles, pelo “dever sagrado de servir a pátria”

Idealista, no sentido moral, sonhador porque sonhar, para mim, é ser capaz de errar e de repetir o mesmo erro o número de vezes que for necessário até extrair disso alguma lição dirá a p.86.

Creio ter deixado suficientemente caracterizadas as 3 personagens mais importantes: o narrador Chico Sacoto, sua mãe Florbela e seu pai Heliodoro.

Passemos em revisão duas outras personagens: Marina, a ciganita, amiga de infância do Chico e o coveiro, homem lido, íntimo da morte que quer à força compreender, pois foi ela, a morte, que lhe levou o grande amor da sua vida.

Marina

Marina é a mulher que ficou criança toda a vida para se manter fiel a esse amor infantil por Chico. É ela que ao saber que Chico vai a caminho de Olivença para participar numa guerra, através da qual esta cidade será reconquistada, lhe diz: Nunca se sabe se Olivença é perto ou se é longe. Porque não há ponte para se chegar até lá. Dizem que é uma terra onde não se pode chegar a não ser em sonhos. Onde não há noites nem manhãs. [...] Há lugares onde só há desdita. Olivença é assim, e por isso só se pensa nela com tristeza. (p.102)

Esta Olivença ficcional não é, pois, um locus amoenus, um lugar aprazível onde se chega para repousar, não é um lugar da utopia mas pelo contrário, é um lugar da contra-utopia, se assim me posso exprimir, um lugar onde não há mais esperança. Ora esse lugar é, na mitologia cristã, o inferno. Nada mais contraditório: então este Chico, filho da cristianíssima Florbela, é empurrado para o inferno pela própria mãe, apesar dos esforços no sentido inverso do pai Heliodoro e de Marina. Recordem-se neste momento as palavras de aviso escritas por Dante à entrada do Inferno: Lasciate ogni speranza, voi ch’ intrate (Dante, A Divina Comédia, Inferno, Canto III).

São ainda de Marina as seguintes palavras: Nunca pensaste que caminhas num mundo de ilusão?... Só que o passado é sempre a única ilusão feliz. A ilusão que nos fica de quando éramos felizes, o que apenas acontece quando somos crianças e caminhamos, sem o saber, para um futuro que não nos pertence. (p.l03)

É uma afirmação que sublinha a importância de um passado que não deve ser negado, pois é ele que em grande parte alimenta o lastro cultural de que se nutrem as populações. Não é, certamente, por acaso que Marina é cigana. É bem conhecido o apego com que os ciganos defendem as suas tradições e lutam pela sua perenidade, que disso depende a sua conservação, enquanto minoria étnica.


O coveiro

Do coveiro ficam algumas páginas deliciosas das suas conversas com Heliodoro, entre tiradas “filosóficas” e citações de Camões como acontece da p. 105 a 113 e da 125 a 130. Justamente a p. 128, diz-nos o coveiro: o homem ainda não perdeu totalmente o seu equilíbrio em relação ao resto da natureza, mas está bem próximo disso E mais adiante, na mesma página: [...]mas não deixa de ter graça isto de o homem ir cada vez mais conhecendo as infinitas leis da natureza e, mesmo assim, não hesitar em provocar a sua destruição.

São, naturalmente, observações do autor que de vez em quando se esconde na pele desta ou daquela personagem, para veicular ideias suas. E ideias pertinentíssimas, pelos vistos. Parece impossível que o homem, por mera ganância, não entenda que os malefícios de algum desenvolvimento tecnológico se irão abater um dia, ou se estão a abater, sobre todos, ricos e pobres, numa distribuição finalmente democrática.

É bem uma das grandes contradições do nosso tempo. São os mais poderosos sempre que fecham os ouvidos à voz da razão, como aconteceu há poucas semanas quando os Estados Unidos declararam não estarem dispostos a cumprir os acordos de Kioto.

Já do final da obra vale a pena, penso eu, retirar algumas reflexões de Heliodoro, (outro alter ego do autor?), como seja esta a p.197: Deus é a aspiração quase instintiva dos homens para serem melhores do que aquilo que são ou esta outra de p. 203: [...] A guerra, como destino do homem [...] é o sinal da sua irremediável demência e o aviso de que ele continuará em vão à procura de Deus mas sem nunca o poder encontrar Será esse o estigma da sua bestialidade.

E ainda esta, da p.20l: Não me abandone, meu pai. São palavras de Chico Sacoto que lembram aquelas outras de Cristo: Pai, porque me abandonaste?

De facto, este é um livro de abandono, pois como se pode ler na contracapa, o futuro é um abismo de dúvidas e de medo do qual resulta a pergunta também constante da contracapa para que caminhos do futuro estamos nós a conduzir a juventude?

São dúvidas que partilhamos com o autor do livro. No entanto, julgamos que a esperança se não perdeu de todo na mente do autor. A atestá-lo estaria a clara condenação dessa viagem louca a caminho de Olivença, pela boca de Heliodoro, de Marina e do velho que viu os horrores da guerra civil, de que ficou para a posteridade a tristemente célebre matança de Badajoz.

Não creio que este livro seja uma simples reflexão sobre um conflito de gerações ou sobre uma juventude perdida, desanimada, desnorteada, isto é, não conseguindo saber qual a via mais correcta para o percurso da sua vida. Uma juventude, de tal modo vulnerável, que aceitaria correr, rumo a uma qualquer Olivença. Para mim, esta obra tem um alcance claramente mais geral, e nela se interroga, ainda que metaforicamente, o destino de um país que tem passado a vida a adiar a definição do seu destino, que não tem sabido encontrar os caminhos mais adequados para os seus filhos e teima , contra toda a lógica, em regressar a um passado que está morto ou em efectuar uma fuga para a frente, irracional, incapaz de resolver os grandes problemas do nosso tempo.

Afinal Olivença existe para nosso castigo!

É uma leitura possível que se pode retirar de mais esta obra de Ascêncio de Freitas, sem dúvida um grande escritor que não precisava de ter tido o Prémio Literário Vergílio Ferreira 1999 para se impor no panorama das nossas letras. O Canto da Sangardata, de que tive o privilégio de falar noutro local, era uma prova inequívoca do talento deste escritor que tão bem tem sabido reflectir sobre a nossa pobre condição humana.

Luís Serrano

 


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