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Diversos


Alpondras
de Manuel Amaral

Luís Serrano, Feira do Livro do Porto, 14-6-2002

 

Afinal Amarante não é apenas a terra de Teixeira de Pascoaes e de Alexandre Pinheiro Torres. É também a terra de Manuel Amaral.

Estamos perante uma obra cujo título logo nos indicia a ideia de estabelecimento de ponte(s), quanto mais não seja por recurso àquelas pedras que se colocam de uma margem à outra de um curso de água. Bem necessitados estamos todos delas, já que estamos num tempo que apesar de ser de globalização e de incremento dos meios de comunicação, a verdade é que cada vez comunicamos menos uns com os outros. E a razão é simples: o tempo que perdemos com os meios de comunicação não nos deixam tempo para comunicar.

Ainda assim M. Amaral não desiste de lançar a sua corda ao outro, de se interessar pelo outro numa tentativa séria de perceber o mundo em que vive. E para isso serve-se da literatura. Escrevendo, provoca a realidade se assim me posso exprimir, extraindo dela (ou seja seleccionando) os aspectos que de algum modo sublinham uma realidade quer no seu espaço, quer no tempo que lhe tem sido dado viver, quer ainda pela atenção que tem prestado às contradições sociais, contradições sociais que têm desenvolvido nele um elevado sentido de militância ética.

Definição de Conto

Feito este preâmbulo introdutório digamos que o conto, porque é de contos que esta obra é feita, partilha com o romance e a novela o facto de ser um género de modo narrativo. De maneira geral, constitui-se como um relato pouco extenso (a short story dos autores anglo-saxónicos). Como corolário, arrasta consigo e para citar o Dicionário de Narratologia de Carlos Reis e Ana Cristina Macário Lopes um reduzido elenco de personagens, um esquema temporal restrito, uma acção simples ou pelo menos apenas poucas acções separadas, e uma unidade de técnica e de tom. Eu creio que estas condições se verificam nesta obra, ou neste conjunto de contos, se preferirem, e também, no que me parece ser predominante no conto, o narrador é o autor, narrador omnisciente, que vai puxando os cordelinhos e desvendando aos olhos do leitor aquilo que só ele sabe.

São dez contos e uma pequenina peça teatral que M. Amaral quis reunir neste seu livro.

O General Espanhol

Logo no primeiro conto, de resto muito bem conseguido, O General Espanhol (onde se percebe o triste comportamento das autoridades portuguesas face a um dos maiores horrores do século XX), Manuel Amaral vai buscar um episódio que se terá passado aí por volta de 1938 ou 1939. Um general espanhol ilude a polícia portuguesa (o sr. Administrador) apresentando-se à própria polícia como andando à procura de si mesmo (o outro).

Não faltam neste conto alguns ingredientes adequados: a casa de fado, o bar frequentado por gente avessa ao regime, frequentemente devassado pela polícia.

E, finalmente o logro, espécie de compensação para quem vinha de uma guerra perdida e deste modo, conseguia escapar à perseguição da polícia portuguesa ao serviço de Francisco Franco.

É uma linguagem enxuta, sem decorativismos, reduzida ao essencial, austera como a paisagem castelhana, palco das lutas fratricidas da década de 30 mas paisagem reduzida ao essencial, paisagem de linhas rectas ou como dizia João Cabral de Melo Neto, esse grande poeta da língua portuguesa mas brasileiro de nacionalidade, no poema Medinaceli:

... que poeta daqui escreveu
 
com a dureza de mão
 
com que hoje a gente daqui
 
diz em silêncio seu não.

O que João Cabral de Melo Neto diz de Medinaceli, creio que se pode generalizar a toda a Meseta Castelhana sem falsear a verdade.

 

Xota-Moscas

Constitui um painel de algumas personagens típicas do ancien régime desde o nacionalista suficientemente inteligente para saber quem mexe os cordéis da política até ao capacho mais subserviente a quem a mulher põe os cornos. O próprio título não deixa de ser sugestivo, trata-se de um daqueles sustentáculos do regime, indivíduo medíocre, que nem o respeito dos grandes a quem prestava serviço, tinha e por isso ao fim de algum tempo devia ser enxotado, quando a sua presença era mais um estorvo do que uma bengala. Aí passam neste conto os Saavedras, gente de teres e haveres, marialvas no sentido que José Cardoso Pires tão bem caracterizou, e sempre em pano de fundo o clima salazarento com reminiscências de franquismo. Estamos no final da II Guerra Mundial, aí por 44, quando a Alemanha dá claros sinais de derrota. Diz o autor: O Eixo nas últimas. Os distintivos flor-de-lisados da Legião, pouco a pouco, tinham já desaparecido das lapelas.

A derrota não é apenas política, é também moral, lança uma nódoa na brancura dos costumes. E há sempre uma Égua Loira ou Cavalão ou Eva Braun a sapar os alicerces morais em que assenta o conservadorismo, tanto mais quanto mais retrógrado e mais hipócrita for.

 

A Senhora Maria

Belo conto onde se fala de afectos e de solidariedade a contrapor-se ao crime político de que infelizmente tivemos exemplos suficientes. Um eco do que acontecia a quem tinha um parente na cadeia e que de tempos a tempos recebia a notícia da próxima libertação do mesmo e isso muitas vezes tinha apenas a intenção de desmoralizar, não passava de um boato posto a circular de propósito para achincalhar e minar a esperança, bem único e último que era dado ter.

 

Documentário Envenenado

Neste conto, Manuel Amaral mostra-nos como nesses tempos idos, era muitas vezes necessário dar o dito pelo não dito, engolir sapos (uns maiores, outros mais pequenos); e até por coisas tão mesquinhas como chegar tarde ao cinema para não ter que gramar (permita-se-me o plebeísmo) os chamados documentários de actualidades que eram sistematicamente utilizados para a propaganda do regime. Frequentemente, as pessoas, sobretudo as que não tinham vocação para serem heróis viam-se obrigadas a afirmar convicções que o seu coração repudiava. Não podemos deixar de recordar a retractação de Galileu: E pur si muove, isto é a Terra continua a rodar quer os regimes queiram quer não. A verdade é que não deixava de constituir uma humilhação ter de assinar as tristemente célebres declarações anti-comunista e anti-maçónica para se poder entrar na função pública. Tristes tempos, mais negros do que cinzentos, esses em que as pessoas tinham muitas vezes que fingir para poderem sobreviver, ou então era o exílio como aconteceu com algumas personalidades e de que é bem conhecido o caso de Agostinho da Silva que se recusou a assinar tais papéis.

Não é, pois, por acaso que o conto termina assim, nas palavras da personagem principal: - Ah! Quem foi que disse que, se fôssemos todos verdadeiros, estaríamos na cadeia?

 

A Operação dos Apitos

O fascismo foi muita coisa: foi o crime, foi a mentira mas foi também o ridículo e o Manuel Amaral dá isso muito bem em A Operação dos Apitos. Os censores faziam coisas tão idiotas que as gerações mais novas terão dificuldade em acreditar. Mas elas existiram.

Ora, justamente, eu acho que o Manuel Amaral não desprezou este aspecto tão significativo do que foi, entre nós, o fascismo: a falta de inteligência de muitos dos serventuários do regime, ou para utilizar uma expressão do quotidiano, a burrice chapada.

O conto debruça-se sobre um qualquer centro de informações posto ao serviço de um regime e dá conta, entre outras coisas, de como a comunicação contém em si a sua própria contradição: ao comunicar, nem sempre é possível filtrar e então a comunicação pode ser apropriada pelo inimigo, auto-subverte-se se assim me posso exprimir. A história captada em Alverna (Centro de Informações) respeitava a uma manifestação numa qualquer cidade italiana, manifestação que a polícia se preparava para reprimir. Mas nesse momento, os manifestantes utilizaram uma arma que não estava apenas nas mãos dos agentes da autoridade: o apito. Milhares de apitos tocados ao mesmo tempo puseram em debandada os cavalos da polícia anulando-lhe o efeito repressor. Eu não sei se o autor de Praganas se inspirou num episódio passado em Coimbra numa das crises académicas (69?) em que os estudantes tentaram anular o trabalho de um árbitro num desafio de futebol. A Academia de Coimbra estava de luto e o futebol era um dos suportes ideológicos do regime.

Daí a uma operação de grande envergadura para recolher todos os apitos que se encontrassem à venda ia um passo. A paranóia dos inimigos da Pátria tinha expressões do género desta e Manuel Amaral tem idade suficiente para as ter conhecido bem. Muitas outras se poderiam contar.

 

Confins de Abril (Teatro)

Trata-se de uma peça em um acto ou se se preferir de um exercício dramático, de resto bem conseguido, sobre um tema que nos recorda Quando os Lobos Uivam de Aquilino Ribeiro. Nesta peça há uma série de indivíduos que são presos por se terem recusado a ir para o trabalho nos Serviços Florestais apenas por solidariedade com um colega porque este tinha pedido dois dias para ajudar a mãe o que o capataz recusou. A prisão é a consequência lógica desse acto de rebelião. Estes homens nada sabiam de política mas eram solidários como é de norma na vida dos pequenos povoados que vivem num equilíbrio próximo do limite de subsistência. O 25 de Abril vem libertá-los como se depreende da última nota do autor: Pode ouvir-se a “Vila Morena” e o pano cai lentamente..

 

Da Ensinança de Bem Pescar

Aqui se fala dos tempos logo a seguir ao 25 de Abril de 74 com todos os seus entusiasmos mas também com todos os equívocos que se foram gerando, as promessas logo ignoradas, as grandes e legítimas esperanças logo traídas, também alguma pressa em resolver problemas que demoram anos ou décadas. Esse clima de perturbação, em parte resultado da inexperiência de vida democrática, tudo está dado neste conto. E até está lá, implicitamente pelo menos, como as forças do capital souberam tirar partido do clima de democracia que foi ponto de honra dos obreiros da revolução. Mas, como o título insinua, ninguém ensinou este povo a pescar, o que certamente daria outras possibilidades a esse mesmo povo, a acreditar na velha história chinesa. Tudo isto a propósito de um teatro (para o povo) que virou banco.

 

O Isqueiro do Almeida

Gosto de todos os contos embora alguns me tenham tocado mais do que outros como é natural. Provavelmente, a estória que mais me comoveu terá sido a d’ O Isqueiro do Almeida. Recordo bem esse tempo onde se despia um homem de tudo, às vezes até da sua dignidade. Era necessária uma licença para se poder usar um isqueiro!!! Creio que esta exigência ridícula só existia em Portugal e dava o tom do carácter saloio (sem ofensa para os naturais da região saloia) do sr. Salazar. Era um homem inculto, desconfiado e reaccionário. Não ouso chamar-lhe de jesuíta porque houve bons e dignos jesuítas (o P. António Vieira, por exemplo); era, pura e simplesmente um hipócrita, que nunca teve a coragem de assumir uma relação amorosa. Vingava-se em coisas como este imposto ridículo, o do isqueiro.

Que poderia um homem responder a esta forma vil de humilhar? Quando não se possui mais nada do que um isqueiro como luxo, há que protestar quando se põe em dúvida a qualidade do mesmo. Como dizia a personagem Macedo: Com a chama a vencer na torcida do isqueiro, tu, Almeida, ergueste o que fica muito caro, o último reduto de ti...

Acho que o Manuel Amaral pegou muito bem neste fait divers e fez dele um belíssimo conto, porventura repito, o melhor do livro.

 

A Procissão do Seixas

É certamente um dos melhores contos deste livro. Manuel Amaral pegou numa personagem típica da terra, como os há quase sempre nestas pequenas cidades do interior, e contou algumas dessas estórias que nos fazem lembrar o Lazarillo de Tormes, esse pícaro tão conhecido. Pois este pícaro Seixas é um homem que nos dias em que não há trabalho e em que portanto, não há ganho se vira para o Sol e diz: Só tu, meu estupor, tens trabalho certo todos os dias. Sirva esta citação de apresentação do Seixas, homem de muitos recursos com os quais enfrentava a vida e enganava a morte

São várias as estórias que Manuel Amaral nos conta do Seixas e eu só tenho pena que o autor não tenha feito destas estórias quatro ou cinco contos porque a riqueza desta personagem dava perfeitamente para isso. Preferiu gastar tudo num único conto e assim os vários episódios aparecem-nos diluídos o que no meu entender é uma pena.

Não resisto a contar a estória das alminhas: Vieram os homens da rica confraria de Aboadela ou Bustelo, tanto faz:

- Senhor Seixas, queríamos que nos pintasse umas alminhas, claro, baratas.

- E como as querem?

- Bem, o senhor é entendido, mas assim a fugir para o céu...

Ora, para encurtar razões, digo eu: o Seixas não podia, pelo preço acordado, utilizar materiais de primeira qualidade pelo que, quando uns dias depois caiu uma das chuvadas de outono, as alminhas desapareceram. Demos a palavra ao autor:

- É que das alminhas, nem uma! diz um dos da Confraria

- Não me digam! Já todas no céu? Ora vêem, isto é que foram alminhas a sério! Bem me poderiam pagar agora mais alguma coisa, pois estão todas na Santa Glória! responde o Seixas.

A estória que dá o título ao conto tem a ver com a preparação de uma procissão e foi obra do Seixas, desde pintar a Santa Ana de vermelho e verde já que a santa era republicana (!!!) até à suspeita de que o padre que integrou a procissão era ele mesmo, o maroto do Seixas. Maroto mas com sentido de humor, aquele sentido de humor com que a plebe se vinga do poder e denuncia as suas artimanhas.

- Ó Seixas de onde era o padre?

- Não sabem o trabalhão que tive para desencantar aquele padre de tanta santidade! Demorou algum tempo a paramentar-se mas os paramentos dele eram de uma riqueza nunca vista!

Tiro o meu chapéu ao autor por não deixar morrer esta e outras estórias que certamente foi encontrando ao longo da vida através desta ou daquela pessoa que se calhar até conheceu pessoalmente ou de que teve conhecimento por interposta pessoa. Seria uma pena e ficaríamos todos mais pobres se não viéssemos a ter conhecimento destas aventuras levadas a cabo, às vezes por um marginal, isto é, por alguém que não se enquadra convenientemente na pirâmide social e que de uma forma ou de outra e de um modo gozoso ousa pôr essa mesma hierarquia em questão.

 

Alto da Serra

Uma viagem à serra no carro dos Castros, um carro de luxo, onde a pequena e modesta família (o marido, a mulher e o filho que tem a seu cargo fazer um trabalho para a escola sobre ecologia) se acoita para gozar o ar fresco das altitudes. Afinal, um sonho legítimo e inocente por concretizar mas que necessita de transporte. O Castro acede a levá-los mas não os vai buscar de regresso como prometido. Nunca chegamos a saber porquê. Iniciam o regresso a pé sempre atentos a qualquer carro branco que poderá aparecer na curva da estrada de um momento para o outro. Mas o marido corta-lhes as ilusões quando julgam avistar o carro dos Castros.

- Vamos continuar, faltam duas horas a pé. Não é só o Castro. Há mais carros de luxo, todos branquinhos...

Esta estória é um fait divers, dir-se-á mas pode ser visto como uma metáfora de claras ressonâncias sociais: os pobres não têm o direito a subir mas se acaso o tentam, hão-de ter de regressar (descendo) e a pé.

 

O Senhor Manuel

O último conto/crónica relaciona-se com uma viagem a terras gandaresas pela mão do nosso comum amigo, o escritor Idalécio Cação.

Nesse paraíso terreal, entre dunas e pântanos, de visita a velhos moinhos, Manuel Amaral teve o ensejo de ver de mais perto a tremenda contenção desta paisagem pobre onde se vivia ao nível da subsistência mínima ainda não há muitos anos. Neste espaço aberto viveu Carlos de Oliveira, poeta e ficcionista, que não teve outro tema na vida que não fosse a sua Gândara, onde de resto ia raramente, segundo consta. Mas isso não o impediu de tratar essa realidade gandaresa, suas paisagem e povoamento, para utilizar o subtítulo dessa obra fascinante que é Finisterra, através do filtro da memória. Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual, diz  em Sobre o Lado Esquerdo.

Uma outra abordagem tem sido feita nos últimos anos por Idalécio Cação através dos seus contos e da novela Os Sítios Nossos Conhecidos.

Não quis Manuel Amaral perder esta oportunidade de homenagear esta região através da figura hospitaleira de Manuel, falecido por atropelamento alguns dias após esta visita do autor: Entre ficção e realidade daquele dia não haverá discrepâncias mas o que faz protestar o “bicho da terra tão pequeno”, com punhos erguidos contra os deuses é, poucos dias passados, como numa fileira mítica de séculos de Prometeus e Sísifos, quatro pneus, circulares e negros, terem trucidado o senhor Manuel, na própria passadeira dos peões! diz o autor em nota final.

 

Conclusão

O seu livro é, pois, na minha modesta opinião, um retrato rigoroso e esteticamente conseguido, do mais recente período negro da nossa história com duas ou três incursões no pós 25 de Abril.

Fico sempre muito feliz quando vejo alguém (um amigo, neste caso) utilizar tão bem os recursos da nossa língua para dizer de sua justiça. Os escritores não mudam o mundo mas podem contribuir seguramente para a consciencialização daqueles que por uma razão ou por outra andam afastados da vida cívica que é a vida colectiva enquadrada pelas normas que a própria sociedade vai definindo ao longo dos tempos.

Também não tenho dúvidas de que o seu posto de observação é um posto de observação privilegiado: no meio das fragas, um pé no Minho, outro em Trás-os-Montes, um olhar sobre o Tâmega e outro lá mais adiante sobre o Douro, ao autor não podiam escapar certos detalhes em que a geografia humana e a geografia física são aspectos da mesma realidade.

Estou certo que o Alexandre Pinheiro Torres ficaria feliz de ver estes contos em letra de forma. Infelizmente para nós, ele já não faz parte do número dos vivos ou melhor dizendo, ele só está vivo em nós pelo muito que deixou escrito e por esse sentido de generosidade e de solidariedade que eu também encontro em Manuel Amaral.

Luís Serrano - 14-06-2002

 
 
 


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