Luís
de Miranda Rocha acaba de publicar mais um livro de poesia, estes Nocturnos
Litorais, título já de si tão pleno de significado se
tivermos em conta que o autor é natural de Mira, terra a dois
passos do mar, a dois passos das dunas, essa paisagem flutuante a
que já aludia Carlos de Oliveira, um gandarês pelas raízes
familiares que não pelo nascimento.
A
presença obsessiva do mar aparece-nos traduzida por um vocabulário
extremamente limitado e que se combina de muitas maneiras como se se
tratasse de uma análise combinatória (à semelhança do que já
acontecia no seu livro anterior, A luz da noite, o som do mundo).
Dois operadores assumem, no entanto, um papel muito
importante: os verbos ver e ouvir como se todo o conhecimento
pudesse ser veiculado apenas por eles. L. M. R. chega a fundi-los
numa palavra única criando assim um neologismo: ouvendo, ouvê
(p. 27), ouvê (p. 29).
Há um carácter obsessivo também na qualificação de
metal que aparece sob a forma de alumínio distorcido várias
vezes para ilumínio sugerindo a luz desse metal que ilumina
(p. 35, p. ex.). Mas a palavra metal adquire características
polivalentes ao qualificar não apenas a luz mas também o som.
Veja-se a este propósito o último verso do poema 3 (p. 17): o
som metal a luz metal denso alumínio. O real é tão complexo
(seja ele o mar ou seja o mar uma metáfora dele) que nenhum órgão
dos sentidos será capaz de esgotar o seu conhecimento e daí, a
nosso ver, esta necessidade de tentar criar uma fusão de tudo o que
pode contribuir para o conhecimento (fusão dos sentidos dando lugar
a um hipersentido, análise lógica de todas as combinações possíveis),
tudo com o objectivo claro de obter a síntese poética, aquela que
é a única que interessa ao autor porque é a mais rica de
significados ainda que com o sacrifício da objectividade, mas o
autor sabe que só assim é possível ao leitor participar na
construção da obra ou seja que só deste modo se pode dizer que a
obra é uma obra aberta, segundo a concepção de Umberto Eco, o
grande mestre da semiótica.
Outros aspectos relevantes surgem no texto poético.
Assim, nos aparecem, lado a lado palavras como sensação e percepção,
isto é o modo como o sujeito pode apreender o real (p. 47).
Note-se ainda a presença de sinestesias como: o grave
som azul escuro (p.53) onde os sons (ouvidos) e as cores (os
olhos) se interpenetram ou melhor dizendo interferem numa tentativa
de mais rigorosamente captar a realidade não deixando que se percam
as articulações que fazem dessa realidade uma coisa tão complexa,
impossível de ser reduzida a um somatório de qualidades.
Outros tropos são utilizados quais sejam, p. ex. o
pleonasmo como função de reforço: intenso intensivo crescendo
(p. 57), ou clamor interior interno dentro (p. 72) ou o seu
contrário (o paradoxo ou oximoro) tão demente
indemente esse rumor (p. 59).
Vocábulos há como sejam desliza e resvala
que ajudam a criar essa noção de atrito, de arrastamento e que
traduzem um movimento muito peculiar como se de vermes se tratasse.
Creio bem que estamos em presença de mais uma obra de L.
M. Rocha onde há uma procura exaustiva de encontrar um sentido para
um mundo que cada vez mais nos espanta com o seu non-sense,
mas ao contrário de condenar esse mundo, tudo nos leva a crer que há,
pelo contrário, uma tentativa séria de o entender; basta
atentarmos nos numerosos
pares antitéticos que referenciam essa luta dialéctica que é a
luta que travamos todos os dias: tão real irreal (p. 19), tão
grave tão agudo tão suave e agreste (id), por exemplo.
Mas o autor não é um mero contemplador do mar;
simplesmente, não pode prescindir dele (já que nasceu à sua
beira) para pensar nos outros. A este título leia-se o poema da
p. 46:
Ouvindo
grave a noite litoral/ ouvindo forte o som do mar nocturno// Ouvindo
intenso alto o som do ar/ ouvindo imenso o som vivo do mundo.
O
livro de L. M. R. vem enriquecido com algumas ilustrações de António
Ferraz que é também o responsável pela belíssima capa, de uma
sobriedade muito significativa, e por um retrato do autor saído das
mãos de Manuel de Oliveira.
Está, pois, de parabéns a Editora O Mirante de Santarém
que com esta obra mais prestigia a sua colecção Alma Nova.
Luís Serrano,
Aveiro, 02-12-2003
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