Paris, 1830
Às oito horas da noite
a nossa casa parecia o Inferno em toda a sua efervescência. Os criados
passeavam, ou melhor, deslizavam de um lado para o outro, consoante as ordens da
mamã. Transportavam candelabros, roupa, sapatos, fitas multicolores e terrinas
de porcelana com água a ferver. A mamã, a capitã deste navio prestes a afundar,
comandava os seus marinheiros na importante missão de a preparar para o baile
desta noite. Duas criadas penteavam-lhe os seus majestosos cabelos loiros, cujo
produto final seria um penteado guarnecido de correntes de jóias entrançadas com
brocados e fitas sedosas. Entrei no quarto da Mamã e mantive-me sentada na beira
da cama, observando toda esta frenética confusão da sua toilette. Depois
do banho, uma das criadas borrifou todo o corpo da mamã com um perfume novo com
essência de violetas. Ficou um cheiro floral muito intenso no ar e senti-me
enjoada.
A mamã levantou a custo
o seu corpo forte para uma das criadas lhe apertar o espartilho. Inspirou
profundamente e, à medida que a criada apertava os laços, a cintura da mamã
ficava cada vez mais fina e a sua cara cada vez mais roxa. Por fim, vestiram-lhe
um vestido cor creme com armação cheio de folhos e linhas douradas. Eu já estava
pronta, usava um vestido mais simples de um cor-de-rosa muito claro e sapatos
tingidos da mesma cor.
Toda esta tortura
feminina deixou-me incomodada, (já não bastava fazerem-me o mesmo a mim) por
isso desci as escadas, para encontrar no andar de baixo o papá com um ar muito
impaciente. Batia com o pé, chamando a mamã a cada minuto. O que não resultaria
em nada, pois estes gritos, em vez de a apressarem, apenas a punham ainda mais
nervosa. Passado um longo quarto de hora, a mamã desceu pela longa escadaria,
ajudada por uma criada que lhe segurava o vestido. Atrás de si, seguiam-se as
minhas duas irmãs mais velhas, Isabelle e Béatrice, e o meu irmão, Gallien.
Estamos mais do que
atrasados para o baile, comentou acidamente o papá. Ao que a mamã retorquiu que
um ligeiro atraso nunca fez mal a ninguém. Assim, seguimos apressadamente todos
para o coche.
O baile seria dado por
Monsieur e Madame Bouvoir, uma das famílias mais abastadas e conhecidas da alta
burguesia da cidade. Recebiam esta noite, na sua mansão, dezenas e dezenas de
convidados. Seria uma noite mágica, dizia a mamã para todos nós. Depois, fitando
atentamente as minhas irmãs e eu, disse-nos para estarmos atentas a todo e
qualquer homem bem-parecido. Depois, virando-se para mim, exclamou com ar jocoso
«Viola, minha querida, espero que esta noite consigas deitar o olho a alguém!»
Suspirei entediada. Era
sempre o mesmo discurso. A mamã não descansaria enquanto não nos visse a todas
casadas e repletas de herdeiros. Para ela nada mais importaria, e a nossa
felicidade seria medida através do número de filhos e tamanho da nossa futura
casa.
Entrámos pela porta
principal, onde dois criados permaneciam altivos, recebendo os convites dos
convidados e quaisquer malas ou casacos de que se quisessem aliviar. Assim que
entrei, fui recebida por um enorme bafo quente e um odor doce muito concentrado.
A mansão era enorme e
estava apinhada de convidados. Salas e salas recebiam-nos calorosamente e
convidavam-nos para a conversa, bebida e dança.
Eu estava encantada com
a festa. As mulheres eram todas muito elegantes, cada vestido era mais belo e
vistoso que o anterior. Todos os convidados pareciam extremamente alegres e
conversadores. Os grupos que se juntavam à conversa iam crescendo, admitindo
cada vez mais novos membros. As bebidas pareciam aparecer magicamente sempre que
se esgotavam nas mesas e as músicas tocadas por uma pequena orquestra eram
lindas e convidativas a dançar. E dancei. Dancei com os meus conhecidos e com os
desconhecidos que a Mamã me atirava a cada cinco minutos. Porém, houve um que me
captou a atenção, Filippo Stagnari, um jovem italiano aprendiz de pintor. Mas
assim que a dança terminou, a Mamã arrastou-me para dançar com outro convidado,
e nunca mais o vi.
Já as minhas irmãs
pareciam estar a divertir-se imenso. Quando as avistei noutro salão, Isabelle
dançava com o seu noivo, Paul Lettemple e Béatrice com Victor Boulevarde, o seu
actual e muito favorável pretendente.
Duas horas, três copos
de ponche e muitas danças depois, dirigi-me para junto da mamã (que se tinha
cansado de me arranjar mais pretendentes) e o seu grupo de amigas, que se haviam
sentado numa roda de cadeiras a um canto do salão.
– Ah, Viola, minha
querida, chega mesmo a tempo de lhe apresentar Madame Boulevarde. – Exclamou a
mamã demasiado entusiasticamente, dando um tom muito teatral ao seu discurso.
Era a mãe de Victor
Boulevarde. A respeitosa senhora acenou-me com o seu chapéu coberto de penas
tingidas de azul para combinar com o vestido e sapatos. Elogiou-me com o
discurso do costume, que eu era uma jovem encantadora e seria uma honra para
qualquer homem ter-me como esposa. Acho que, depois de ouvir isto tantas e
tantas vezes, as palavras já nem sequer faziam sentido. Se era assim uma honra
tão grande para qualquer homem ter-me, porque é que teria de ser eu a
“caçá-los”? Ainda pensei em colocar esta questão à Madame Boulevarde, mas achei
que isso equivaleria a meses de castigo; por isso decidi sensatamente permanecer
em silêncio no meu lugar. As seis senhoras continuaram com a sua conversa, que
quase sempre era ocupada a contar mexericos, ignorando a minha presença.
Na meia hora seguinte,
observei este grupo tão peculiar e, sinceramente, achei imensa piada ao seu
comportamento tão aparatoso. As mulheres conversavam e cacarejavam ritmadamente
ao som da música. Abordavam sobretudo as mais recentes novidades e segredos,
quer fossem completamente insignificantes ou embaraçosamente escandalosos. Tudo
era discutido e opinado por estas senhoras, onde cada uma segurava uma chávena
de chá ou uma taça de ponche. Juntavam as cabeças quando algo importante era
debatido e, depois, atiravam-nas para trás, acompanhadas de grandes gargalhadas
e olhares cúmplices. Arranjavam sempre os temas mais banais para discutir, como
a cor ou o corte do vestido de determinada senhora, as conversas que ouviram
entre certos casais, ou os dotes das debutantes actuais. Toda esta conversa me
parecia muito banal e frívola. Quando passava uma jovem solteira, o grupo
começava a conspirar contra ela, debatendo se era boa rapariga, quais os seus
dotes, e com quem provavelmente casaria. Era esta a única maneira que estas
matronas haviam arranjado para esquecer as suas vidas rotineiras e passar o
tempo. Ao fim de meia hora a conversa tornara-se ridícula, senão completamente
patética. Estas senhoras, tão ingénuas e despidas de conhecimentos, opinavam em
relação a tudo e, quase sempre, davam uma resposta absurda e em nada concordante
com a realidade. As pessoas gostam de falar sobre as outras pessoas, pois fá-las
sentirem-se importantes, pensei para mim mesma. O que é completamente absurdo,
se querem saber a minha opinião.
Mas há uma coisa que me
incomoda ainda mais do que todo este aparato. São os cheiros. Sou muito sensível
a cheiros. Estamos na época em que, quanto mais aparatoso melhor e isso também
toca às fragrâncias. A nobreza e a burguesia usam e abusam dos perfumes. As
senhoras ao meu lado estavam cobertas de perfumes de essência floral, para mim
um odor muito forte e enjoativo. A meu ver, cheiravam todas como um cavalo que
passou o dia a rebolar num campo de flores. Pairava no ar do salão um misto de
cheiro a rosas muito concentrado com aroma de citrinos. Os cheiros era realmente
algo que me perturbava desde sempre. As fragrâncias das madames começavam a
tornar-se-me insuportáveis, por isso desculpei-me e atravessei apressadamente o
salão para o jardim.
Passei por umas imensas
portas de vidro e dei por mim numa ampla varanda de mármore com vista para o
jardim salpicado de canteiros de flores e pequenas árvores. O frio da noite
cortou o cheiro que me ficara impregnado no Salão. Respirei profundamente,
agarrada à varanda, e suspirei de alívio. Eu não era realmente uma criatura de
hábitos sociais. Que prazer me dava estar sozinha naquela varanda abandonada.
Sentia-me solta e livre. Os perfumes fortes do salão já não me atordoavam a
mente e os pensamentos fluíam agora com mais eficácia. Uma ligeira brisa passou
por mim, renovando-me a alma.
Um bater de portas
tirou-me do meu estado de êxtase. Fiquei atenta, enquanto escutava passos cada
vez mais próximos de mim. Inspirei profundamente o ar carregado pelo aroma a
frésias, sentindo um outro cheiro intruso. Era Filippo Stagnari. Cheirava a
especiarias, a álcool e a aventura. Sorri para mim mesma e voltei-me para
encarar o intruso.
– Boa noite, Miss
Parson. Mas que noite agradável. – Disse ele com um sorriso nos lábios.
Aproximou-se de mim e
olhei-o nos olhos banhados pela luz do luar. Eram os olhos mais bonitos que já
vira, azuis e brilhantes. Ao contemplá-los senti-me perdida e inebriada e, ao
mesmo tempo, febril.
– De facto.
– O que faz aqui
sozinha, Miss Parson?
Stagnari esperava uma
resposta, mas permaneci em silêncio. Não conseguia desviar o olhar daquela
pequena amostra de céu que eram os seus olhos.
Nesse momento, uns
tímidos primeiros acordes de violinos começaram a ressoar de dentro do salão.
– Oh! Começaram a tocar
de novo a música que dançámos há pouco…! – Continuou ele – Gostaria de dançar,
Miss Parson?
Este pedido repentino
deixou-me surpreendida e extremamente contente. Fitei-o sem saber o que fazer ou
dizer. Felizmente ele sabia, estendeu-me a sua mão e, quando coloquei a minha na
dele, colocou gentilmente a sua outra mão na minha cintura. Posei a minha mão
livre no seu ombro, e ele agarrou-me mais para si, à medida que me conduzia pela
varanda. Ele era mais alto do que eu; lembrando-me dos conselhos de minha
preceptora, Madame Fairfax, endireitei as costas para parecer mais altiva e ter
uma postura elegante, como convinha a uma senhora. A dança seria quase perfeita,
se não fosse o seu cheiro a álcool tão intenso, além de uma outra fragrância
desagradável que não conseguia bem distinguir o que era. A única vez que sentira
aquele cheiro fora quando falara com o nosso jardineiro, Willy, a propósito de
rosas.
Tentei ignorar o cheiro
e concentrar-me apenas no homem que me conduzia na valsa, mas o meu pobre e
sensível nariz não conseguia aguentar por muito mais tempo. Era estranho não ter
notado este cheiro quando dançáramos da primeira vez, mas penso que o cheiro do
salão conseguia ainda ser mais forte e, portanto, suprimir o de Stagnari.
Comecei a sentir-me enjoada com este cheiro e com todas as voltas que dera pela
varanda. Tentei afastar um pouco a cabeça para trás, mas à medida que me tentava
afastar, mais ele me puxava para si.
Desviei-me de Stagnari
com uma certa brusquidão. Ele ficou a olhar para mim perplexo.
– O que se passa? Não
estava a gostar?
– Não é exactamente
isso… Sinto-me um pouco tonta, só isso.
Stagnari chegou-se a
mim na melhor das intenções, para me ajudar a sentar num banco da varanda. Mas
assim que se aproximou, senti de novo o seu cheiro acre. Comecei a cambalear
para trás e a gritar que não se aproximasse, enquanto me segurava à varanda. Mas
sem sucesso: tropecei numa pedra e caí para trás. Stagnari correu em meu auxílio
e tentei suster a respiração tanto quanto podia.
– Mas o que se passa?
Miss Parson, diga-me o que se passa! Desagrado-lhe ao ponto de querer fugir de
mim?
– Não é o senhor que me
desagrada, mas sim o seu cheiro!
– O que tem o meu
cheiro de mal? – Balbuciou ele perplexo, cheirando depois a sua camisa de linho
branco. – Não gosta do meu perfume?
– Não, não gosto mesmo
nada. Cheira horrivelmente mal! – Exagerei.
Stagnari continuou a
olhar para mim, não compreendendo a minha sensibilidade e repulsa pelo seu tão
requintado (e horrível) perfume.
Fitei o chão para não
ter de encarar os seus olhos perfeitos e disse com firmeza:
– Lamento, senhor, mas
tenho de o deixar e agradecia que não me seguisse.
Não esperei qualquer
resposta dele, e abandonei a varanda, deixando Stagnari com a perplexidade
estampada no rosto, assim como a minha curta paixão por ele. Assim que abri a
porta, fui recebida por um bafo quente e pelo odor intenso e adocicado.
Os meus olhos,
anteriormente habituados à fraca luz do luar, lacrimejaram ao serem recebidos
por uma luz tão intensa, de mil candeeiros acesos. Tentei passar despercebida ao
atravessar o salão. Olhava repetidamente para trás, para me assegurar que
Stagnari não me seguia. Pelo menos teve a decência de não o fazer. Segui
decidida novamente para junto da mamã e suspirei quando vi que tanto ela como as
suas amigas não tinham saído do seu lugar desde o meu súbito desaparecimento. A
cadeira que abandonara continuava vazia, esperando por mim, segura e acolhedora.
Assim que me viu, a
mamã parou de tagarelar, fulminando-me com o seu olhar de águia, mas com tanto
rouge o resultado era mais hilariante que aterrador.
– Ora, Viola, onde se
meteu a menina? Pensei que já não a veria hoje… A menina estava tão bem aqui
sentada e, de repente, desaparece, deixando-me raladíssima! A menina sabe muito
bem que não me posso preocupar, não faz bem aos meus nervos! Como pode assustar
assim a sua pobre mamã, não tem qualquer tipo de compaixão pelos meus pobres
nervos? Oh, os meus nervos! Tu e os teus irmãos acabarão por ser a minha ruína!
Como me podem fazer isto? Tudo o que peço é respeito! Mas nem isso consigo,
quando a menina desaparece assim sem dizer nada! Ai os meus nervos! Ai os meus
nervos que me matam!
Sinceramente, não achei
que tivesse ficado assim tão preocupada, considerando que tinha passado a última
meia hora a jogar cartas com as amigas e já ia no seu terceiro copo de ponche.
– Desculpe, mamã, mas
não precisava de se preocupar. Fui apenas apanhar um pouco de ar ao jardim… Mas
já voltei, mamã. Pode continuar a jogar descansada, que eu ficarei aqui sentada
a assistir a uma partida…
Mas era escusado
acalmar a mamã. Assim que acabei de falar, já ela estava a contar a todas as
amigas como a sua filha era um anjo e como qualquer homem desejaria ter uma
mulher como eu como esposa. Limitei-me a suspirar, entediada pelo mesmo
discurso. Sentei-me na minha cadeira, e assim permaneci durante o resto da
noite, limitando-me a aguentar os horríveis cheiros que pairavam no ar e a
recusar um ou outro convite para dançar. Depois da aventura italiana dessa
noite, apenas queria descansar e apreciar o resto do serão calmamente. Comecei a
acompanhar o jogo de cartas das senhoras perto de mim, mas rapidamente me
enfadei e deixei-me levar pelos meus próprios pensamentos.
Os convidados pareciam
estar a ter a melhor noite das suas vidas: dançavam aparatosamente, bebiam
demasiado, conversavam altíssimo e riam a cada momento. As senhoras
pavoneavam-se com os seus vestidos, enquanto os homens discutiam preços de
cavalos e benefícios de se ter carruagem própria. Vi inclusive o meu irmão
Gallien (um inocente rapaz de quinze anos) a namoriscar com uma jovem debutante,
Marie Surmonte, seis anos mais velha que ele.
Pensei no episódio da
varanda e recriei-o na minha mente. Num espaço de meros minutos tinha-me
apaixonado perdidamente por um italiano e apagara toda a chama da paixão logo a
seguir. E tudo devido ao seu cheiro insuportável. Amaldiçoava constantemente o
destino. Stagnari era aparentemente perfeito; era lindíssimo, inteligente,
cortês e amável. E por ser pintor semi-famoso deveria ter já alguma fortuna,
além de que me daria a oportunidade de visitar Itália. Parecia o marido
perfeito. “Só se…” eram as palavras que ecoavam na minha cabeça… “A não ser
aquele odor horrível…” Mas como conseguiria eu viver com um homem que parecia
não tomar banho e se encharcava em perfume? Simplesmente não podia. E isto seria
o grande desapontamento que a mamã receberia… dificilmente me casaria, pois toda
a gente, mas mesmo toda a gente insistia em se encharcar em perfumes, acumulando
cheiros e criando um odor forte resultante duma mistura prolongada.
Eu era, muito
provavelmente, a única pessoa que tomava banho diariamente (mesmo com a mamã a
refilar que a minha pele secaria com tantos banhos) e que recusava usar perfume
(mesmo com a mamã a insistir que eu seria a escória da sociedade se não
cheirasse a um jardim de rosas).
A razão pela qual eu
não punha perfumes era porque não os suportava. Não havia nenhum cheiro que me
parecesse agradável, eram todos demasiado intensos, ásperos e ferozes. Talvez
tivesse de criar um cheiro próprio que me agradasse. Teria de ser um aroma
completamente novo, nunca antes cheirado, algo que finalmente agradasse ao meu
sensível nariz; teria de ser um cheiro interessante, leve, quente e apaixonante.
Seria a fragrância perfeita. Sim, estava determinada a encontrar ou até fabricar
tal aroma. Teria também de ter um nome apelativo e agradável, que combinasse com
o seu cheiro. Chamar-se-ia Eau de Toilette.
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