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Andrea Capela Duarte



Contos do Tempo

Estou sentada na areia e, ao longe, vê-se o mar. A fotografia é tão nítida que se nota cada grão de areia, areia mais clara que o mar e o céu, mas tão cinzenta como eles. Roupa branca, pele cinza. Quando ele me tirou esta fotografia, disse-me para ficar séria, concentrada, embora, ao princípio, nenhum de nós conseguisse parar de rir. Depois disse que eu só parecia triste e recomeçámos a rir.

Estou sentada na borda da cama a olhar para isto há muito tempo. Gostava de chorar, mas todo o quarto tem uma atmosfera demasiado garrida. É a janela com as árvores, lá fora, e a luz filtrada, amarela.

Ouço tinir a porta e desço para lhe dar o almoço. Mal dizemos palavra e a refeição passa depressa, dolorosa. E eu volto ao quarto.

 

PASSAGEM

Vamos de carro e há uma cidade que aparece no cimo de um morro, com uma massa informe de nuvens roxas e laranja por trás e o sol a brilhar nas fachadas.

 Imagino que estamos os dois à espera: olho para ele e ele fareja o vento; depois concentramo-nos de novo num só ponto abrangente – o fim da estrada seca. A atmosfera está carregada de pólenes e cantos, de suor. O cheiro acre da relva esmagada sobre a minha pele, mais do que incomodar, embriaga. Há um cão, também, um pequeno animal adormecido, a cinco ou seis passos que nos separam. Entre o céu e a terra, mais duas libelinhas e uma rola. Esperamos. Está tanto calor… Viro-me como se caísse para experimentar o sol, agora na cara. Depois inclino só um pouco a cabeça para a direita, vejo que ele ainda vigia, e fico só a senti-lo.

O que fitávamos tornou-se indefinido e já não olho. Atrás da clareira que nos protege, a floresta respira como um animal ferido, escuro, e sei, sem o ver, que também ele não desvia o olhar do alvo. Mas o homem que espera junto ao castanheiro olha-me só por instantes…não fala: já dissemos tudo o que havia para dizer, só nos resta esperar. Mesmo assim, mesmo assim… se ele viesse até aqui e tocasse, mesmo só com um dedo, o meu corpo deitado na erva, sob o sol…

Não, eu não deixaria ninguém, excepto o sol, tocar-me. Aquela que espera não sente como eu. De qualquer maneira, não podemos sentir o mesmo, o que é tanto culpa nossa como das aves e do céu azul. Ou seja: mesmo que culpássemos alguém de que serviria?

Quando acordo, dentro do sonho, já chegaram as nuvens, e visto-me. Subitamente, está frio. Olho para o nicho do castanheiro, para onde ele estava, controlando a estrada de pó, e vejo que partiu. Fiquei sem saber de quem estávamos à espera.

 Vamos os dois de carro e, por entre as florestas, aparecem vilas e aldeias. E penso: as pessoas dali não podem sentir nada, qualquer emoção, que nós não possamos ter multiplicado por mil. Porque nós vemos tudo e não paramos.

 

ROMANCE

 

Era um dia de sol. Isto é importante, porque, se o dia fosse chuvoso, os barcos do jardim não teriam sido postos na água, não estaria ninguém nos bancos de pedra, os namorados não passeariam sob as árvores, as criancinhas não deixariam cair os gelados e o lago e o parque estariam desertos. Mas era um dia lindo de Setembro e o Verão ainda estava fresco na memória do barqueiro, dos parzinhos e das famílias. Se o céu estivesse forrado de nuvens, o remoinho sob as águas teria passado despercebido. Assim, dois homens que pegavam nos remos do mesmo barco viram-se, momentaneamente, levados por uma força que não compreendiam e quase não sentiam. O bote rodou uma vez, e depois mais uma, sem que qualquer deles remasse com mais força. Por uns segundos entreolharam-se, espantados. Depois, a vida continuou.

Talvez isto tenha de ser melhor explicado. E talvez eu não seja a pessoa indicada para isso…Só sei que, da ponte, o centro do lago parecia vivo. Era um dia de sol. Já disse isso?... Um daqueles dias que parecem um cenário de tão perfeitamente verde, azul e rosa. No relvado clarinho havia mesmo uma família perfeitamente feliz, com pai, mãe, filhitos loiros e gordinhos, cão e cesto de piquenique. Estavam todos vestidos de cores claras, beges e cremes, e nem o Bobi se incomodou a olhar quando ouviram gritos provindos das margens. Estavam no seu paraíso, por baixo de uma árvore. Mas outros foram até ao estrado do barqueiro para ver se alguém se afogava. E, desiludidos, (era só um colar), voltaram aos seus lugares, pouco depois. Estavam todos à espera de alguma coisa, mas ainda não era aquilo.

A tarde decorria calma por entre as árvores que abafavam o ruído dos carros. A certa altura, um coelho branco saiu da toca, farejou um fumo distante e voltou a entrar.

Àquela hora, um homem caminhava sozinho pela parte nova da cidade. Apesar do dia luminoso, só conseguia ver ruínas e cinzas. Olhava o chão e não via os ladrilhos brancos lavados há poucas horas, via terra batida com entulho a limitar um caminho tortuoso: eram pedaços de cal acinzentada e tijolos e adobes partidos, esfarelados, diluindo despojos de uma guerra que nunca foi, (ainda), bonecas cegas e carecas, cartuchos vazios, trapos sangrentos… Louça às flores, quebrada, e, aqui e além, metal torcido. E tudo coberto por uma patine dolorosa, que se agarrava também aos ombros, cabelos, mãos, olhos de pessoas insensíveis a tudo aquilo. As casas estavam mutiladas, reduzidas a paredes incompletas e raros telhados. Para esconder os habitantes, tinham-se pendurado, dos tijolos sobreviventes, panos rasgados e incolores, macios do uso. Todos os vidros se tinham estilhaçado nos bombardeamentos. Ele caminhava de cabeça baixa, porque o céu estava tão escuro que quase o tocava e sentia vidrinhos sob as solas.

O homem virou à esquerda, depois da igreja, e parou um instante em frente da velha torre de menagem. Esta tinha resistido a oito séculos, mas não à guerra recente. Ele passou sobre as tábuas que tinham sido uma porta. Entrou. Talvez fosse a torre que suportava o céu, pensou. Decapada, o céu invadia-a, e à terra, como peso de fuligem. A base da torre era circular e, pelas paredes, trepava uma escada de pedra negra ao longo da qual tinham sido construídas estantes para registos paroquiais e civis. Agora, todos os nascimentos da cidade repousavam pelo chão, em folhas chamuscadas.

E as pessoas que tinham nascido, as que não sabiam da guerra que lhes roubara a identidade, abriam as bocas como peixes atónitos, no parque do lago, e podiam jurar, todas elas, que tinham visto…! A estátua branca tinha mesmo saído da água, flutuado uns minutos, e voado para terra!... Eles tinham visto… Mas não foi isso que eu vi. Eu vi uma coluna de água (branca, sim) erguer-se do lago e saltar para terra num ângulo improvável, enquanto um dos dois homens que remavam juntos se atirava com fúria à garganta do outro. E eles e eu percebemos, como o outro que vagueava sozinho, a guerra, uma guerra sem explicações nem realidade. Era só uma memória, uma guerra passada muito antes de nascer, voltando agora para nunca esquecer. Mas nenhum de nós sabia o que lembrar.

Portanto parámos o tempo um minuto e analisámos a situação, mas o tempo avançava sem nós e a coluna desapareceu, criando a ilusão da estátua como podia ter criado a de um elefante e não conseguimos saber o que fazer. Quando nos mexemos de novo, o homem quase estrangulado tira do bolso uma navalha que entra facilmente na carne do amigo. Constato que já começámos a morrer: o conjunto ficou reduzido a três.

O terceiro sai da torre e senta-se a ver um grupo de rapariguinhas da escola passar, chilreando. Levanta-se quando o silêncio volta e passa pelas casas das ruas do parque. A única que lhe chama a atenção está abandonada há mais de vinte anos. A tinta verde desfaz-se em escamas, precipita-se da parede. Junto às goteiras formaram-se colónias de cogumelos que formam degraus. As duas casas que geminam com estas, a amarela, à direita, e a vermelha, à esquerda, estão em melhor estado. Ao longo dos anos, as demãos sucessivas de tinta maquilharam-lhes as rachas das fachadas. O telhado também parece mais seguro, nestas casas vizinhas, mais limpo de ervas daninhas, as traves menos dobradas ao peso das telhas. Da rua, o conjunto parece um V brando. Finalmente, o homem chega à entrada do parque.

E o dia parecia igual! Desculpem a exclamação, mas, naquele momento, eu ajudava o homem do barco a esconder um corpo morto e olhei, de repente, para a margem oposta e era como se nada tivesse acontecido, ou fosse acontecer. E, um segundo depois, chega o homem que esteve no arquivo da cidade, a passos largos, seguros, assustadores, fazendo voar atrás de si a gabardina preta e atirando para a frente olhos pretos também como um actor de filme mudo. E ele pára os olhos dois centímetros dentro do meu crânio e diz qualquer coisa, que não percebo, sobre as rosas vermelhas. Toda a gente que está no parque acorda de um sonho e grita em conjunto… e finalmente dança em reviravoltas, e piruetas mágicas, que criam um novo mundo.

Vê-se-lhe cada osso, por baixo dos pêlos compridos e baços como os de um animal aquático. As pernas da mulher que espera não podem ser mais grossas que os punhos dos homens que passam por ele o seu nojo ou indiferença. Toda ela parece desengonçada ou morta: os ombros, a cabeça, os braços até à ponta dos dedos, uma só peça dura. Tem uma coroa de espinhos depenada sobre a massa do cabelo. Veste-se melhor que o resto das putas da rua (mas o vestido fica pendurado do seu corpo, secamente); as outras desprezam-na e só dois ou três clientes lhe tocam, por curiosidade; um, sempre o mesmo, por pena.

Mesmo que chova ela vai para a rua. Protege-se com um pequeno guarda-chuva cor de neve. Passa um carro, outro, outro, e mais nenhum. (Este é um mundo desolador.) As poças de água enchem-se de sapos e cobras. Ela fixa uma serpente, vê-a contorcer-se, com olhos vazios de indiferença. Uma bota pesada aproxima-se, esparrinhando chuva e vísceras calcadas. Pára em frente à serpente e esmaga-a também.

O homem é pouco mais que velho e muito natalício: barbas brancas como um Pai Natal, casaco cor de azevinho, e um embrulho púrpura-dourado na mão esquerda; na direita, uma mala de viagem. As mãos e as roupas foram amolecidas pela chuva e pela sombra dos prédios bolorentos, burocráticos. O Príncipe das Trevas é um velho cavalheiro bondoso. A piedade escorre dos olhos luminosos que lhe dominam toda a cara. No entanto, há qualquer coisa, na maneira como o seu corpo respira que denota uma certa ansiedade. Confrontam-se, os feiticeiros.

E, no parque, parámos todos a ver a luta no fundo do lago. Quando tudo acaba, levanto-me com todo o cuidado. Todas as caras estão assombradas, confusas, enlevadas, perfeitamente imóveis. Sem as desfitar, recuo serenamente, um pé sempre atrás do outro, até chegar a casa onde me sentei à janela, à espera das novas ordens da nova Senhora da cidade, Aquela que tínhamos inventado depois do sacrifício, para nos devolver as identidades incineradas.

E, então, o centro do lago agitou-se em forma de rosa.

 

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