Naquele
tempo, Ílhavo ostentava um torreão com a sua cúpula arabesca,
purpúrea, e o mercado ribombava, num gorgolejar de vozes que
mercadejavam hortaliças, fruta e galeota, até aos confins dos
ínfimos tostões. As mulheres, envoltas em eternos xailes negros,
agasalhavam sobre o ventre maletas de palha, afadigando-se no
regateio, interpelado por uma voz conciliatória e melada, que
anunciava: "— Venha cá, ó freguesa, ainda hoje não me estreei.
Leve lá a dúzia das laranjas pelos cinco mil réis."
A vendedeira
enfiava as mãos numa interminável algibeira, pendente da
cintura, a galinhos-de-barcelos-debruada, zangalhava as moedas,
tacteando-as em busca de trocos, enquanto lançava já o olhar no
endireito de uma outra que, de soslaio e fingindo desinteresse,
rolava os olhos, fitos de desejo, sobre aquelas reboludas e
luzidias laranjinhas de umbigo.
Decifrando-lhe o interesse, a vendedeira, melíflua, clamava:
"Venha cá, ó freguesa, venha cá..." e o dia consumia-se
donairoso e leve neste incessante regatear.
Sob um
telhado em arcaicas telhas abrigado, de traves expostas, onde se
anichavam vetustos casulos de teias de aranha enegrecidos, uma
chusma de vozes riscava o ar de pregões e, a galeota
(1) enchia
minúsculas maquias, que eram manipuladas com ambidestreza, na
estridência dos regateios, enquanto as velhotas, embiocadas nos
seus eternos xailes negros, franziam as rugas, no manejo dos
fugidios tostões.
As peixeiras
eternizavam o luto em suas negras vestes e distinguiam-se pelos
gestos azougados, a leveza no falar, o atar do lenços na nuca, a
voz leve, flutuante, no seu intérmino algaraviar. A dois passos,
sob o mesmo abrigo, quedavam-se as padeiras de Vale de Ílhavo,
mulheres precavidas na fala e nos gestos, que estampavam na face
o rosáceo das labaredas dos fornos. Vestiam-se com a frescura do
pão e atrelavam medonhos cestos de vime bifurcados, no assento
dos biciclos. Quando o vento, soprava rijo, era vê-las retesarem
os músculos das pernas, a esgrimir num esforço eriçado, que lhes
afogueava o rosto, a revelar-se de uma ternura amassada, na
fresquidão da água e na alvura da farinha.
Daquele
tempo, a memória retém, ciosamente intactos, os dias na
imaculada recordação da infância. No jardim, as tílias
adocicavam o ar e uma brisa sinfonizava o vento nas folhas,
entrelaçando-se nos seus ramos, em suavidade perfumados. Os
velhos pigarreavam as mazelas das gronelândias alojadas nos
brônquios, de parceria com os "amaricanos", torna-viagem das
Califórnias da abundância com seus bonés, inevitavelmente
brancos, repousando, nos bancos do jardim, os músculos exauridos
nas "raiueis"
(2) e " bludins"
(3), dos calcinados tempos da
juventude.
As lojecas
que circundavam o mercado retinham a marca onomástica e
indissociável dos seus donos. A mais personalizada seria a do
João da Fonte, que recebera baptismo pela proximidade do
fontanário.
Pela torneira
reluzente, em cuja perpendicular assentava um cilíndrico e puído
banco de pedra, a água cantarolava em cântaros e jarros.
Revejo o
hercúleo esforço da miudagem ao premir a torneira, com força
desmedida para os seus dez anitos, quando artilhavam as pistolas
plásticas, municiadas de água, pelo Entrudo, as bombas de
rabear, os gabões, os figos impossíveis de serem tragados, na
ponta da linha saltitante, os nauseabundos gases engarrafados, o
Padinhas, barbeiro-travesti de saia talhada nas embalagens de
cigarros.
O pregoeiro
oficial do enterro carnavalesco também pintava letras com
esmero. Ainda hoje conservo como enigma a dissonância entre o
seu nome — Borrão — e a sua habilidade artística. O cavernoso
vozeirão servia-lhe magnificamente para leiloar os relógios e
lençóis hipotecados das gentes em transe financeiro. A loja da
Maria da Tendas seria a mini-Disneylândia do tempo. Com novelos
de fio e papel colorido para estrelas e papagaios, bolas de
praia, relógios de imitação — para a miudagem que desejava
aceleradamente ascender a homem — as serpentinas, minúsculos
baldes e pás, e demais bugigangas que eram o epicentro do
fascínio da infância.
Dessa saudade
vos falo. Do Manuel das Senhas, rosto de açafrão,
ventre-não-te-rales, homem bojudo e bom, de falas de mansidão.
Toda a vida do mundo se lhe ia em recortar senhas que mui
pachorrentamente cedia às vendedeiras por um escudo,
outorgando-lhes régios direitos de mercadejar suas hortaliças e
frutas.
O Pitato,
creio que Manuel, com sua autoridade inexpugnável, de rosto
administrativo, perna enrolada na muleta, era personagem
temível, até ao dia em que, mercê de acusação de peculato, foi
vítima implacável da pantomímica carnavalesca, pela língua
mordaz ao rubro do citado leiloeiro-artista.
O Ti Simão,
barba de três dias, pequeno e buliçoso, benigno de rosto, sempre
se me afigurou personagem bíblica extraída do Velho Testamento.
Vejo-o, entre os beirais do carro de mão, face contorcida de
esforço, franzindo as rugas, a recovar — rodas forradas a arcos
de ferro — estralejando Cimo de Vila arriba.
Ao ti
Manelzinho Fazenda nunca se lhe ouvira um mínimo resmungo. Era a
paz personificada. Caminhava dobrado, em vértice, aos
solavancos, carreava à cintura um tira de cabedal, com a qual
afiava a sua indefectível navalha de barba. Atracava pelas
tabernas, feitas barbearias, onde devastava cabelos e escanhoava
barbas. Cobrava apenas quanto bastasse para bebericar as suas
"chamadinhas"
(4)
até ao meio-dia; daí em diante, seriam marqueses
(5)
tintos.
E o Rão...
essa figura lendária! Atribuía-se-lhe com respeito que
enlouquecera devido à sua enorme inteligência. Outrora oficial
náutico, obsidiante, desenhava navios bacalhoeiros e "icebergs"
a lápis, em papel pardo, pelas tabernas, onde deambulava,
enquanto por compaixão lhe fritavam uns "jaquinzinhos" que,
compadecidas, lhe davam as peixeiras do mercado. Implorava que
tratassem dos seus "peixinhos" e, ao mínimo gesto de
impaciência, largava em ciclones de furibundo humor.
Cabelo liso e
lambido, de penteio esmerado, gabardina azul-marinho e botas de
borracha, era a encarnação da loucura inteligente. Falava em
fantasmas e vozes que o visitavam nas suas deambulações,
vagueava pelas noites de insónia, as quais palmilhava de Ílhavo
à ponte de Água Fria. Descrevia-me fantasmagorias que a minha
insipidez de criança não ousava decifrar: vozes, temores,
clamores, visões demoníacas que impenitentemente o flagelavam.
Nos dias de apaziguamento do seu ditirâmbico miolo, era vê-lo
rodeado de miudagem em alarido, a caçoar da sua frase-amuleto,
que lhe era tão querida: "Olha o inflamável, eu sou o
inflamável", e a criançada delirava a caçoar, inconsciente,
daquela rocambolesca tragédia, em loucura talhada.
E o ti
Júlio!... Sempre ensimesmado, mãos nos bolsos, olhos fitos no
chão, habitava um mundo-outro, impenetrável, atravessava as
ruas, eternamente absorto na sua tormenta sem cuidar de se
precaver do trânsito. Dizia minha mãe que tinha na sua sombra um
anjo da guarda. Era de acreditar. Quando se ouviam sonoras e
arrepiantes derrapagens, sabia-se que o Ti Júlio fora de novo
miraculado pelo tal anjo. De onde a onde, levantava a cabeça,
balbuciava palavras desconexas, indecifráveis, e prosseguia nos
imperceptíveis labirintos do seu mundo, no seu interminável
roteiro, sem cuidar de se precaver da chuva ou sol.
E o Leão!...
Implacável adorador de Baco, dilecto venerador da bagaceira,
recostava-se na sua caixa de engraxar, tomado de etílica orgia,
soltava a cabeça que lhe caía a pique do pescoço, de tal sorte
que parecia ter-se-lhe desprendido do corpo, e dormia
impassível, por entre o rum-rum dos camiões, o resfolgar troante
dos travões e a pura indiferença dos passeantes.
A velhota sua
mãe, que vivia de alvejar roupa no rio da Fontoura, rodopiava
pelas tabernas num gesto pressuroso e aflito em busca de seu
filho. Já se lhe conhecia a pergunta sacramental: " — Não viram
por aí o meu álcaro
(6). Ai o meu álcaro..."
É de Ílhavo,
da minha (nossa) infância nele esculpido, que vos falo, desta
saudade feita mágoa a tamborilar na vivência de todos os dias,
das recordações, dos sonhos de criança que são autenticamente os
mais inocentes e gratos no arquivo das cruciais memórias de uma
vida. Um dia, quando regressar — o regresso é uma atormentada
linha de rumo, ainda que ilusória — é leme da alma apontado ao
coração da terra maruja, direi, tal o pensador-exilado "não
preciso de regressar ao país, porque nunca de lá saí" ou ainda,
como um filósofo na diáspora experimentado "nunca se regressa a
de onde de nunca se partiu".
Barbosa
Tavares
Brampton, Canadá
In:
www.portugalnoticias.com
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Notas:
(1) - Galeota: espécie piscícola
da ria, peixe de caldeirada.
(2)
- Corruptela emigratória de highways (auto-estradas)
(3) - Idem para buldings
(prédios)
(4) - Diminutivo de "chamada"
mistura de vinho branco e vinho abafado, tipicamente Ilhavense.
(5)
- Copo de vinho de
aproximadamente um 1/4 de litro
(6)
- Corruptela de álcool |