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Barbosa Tavares - Canadá

Figuras de Ílhavo de outrora

 

Naquele tempo, Ílhavo ostentava um torreão com a sua cúpula arabesca, purpúrea, e o mercado ribombava, num gorgolejar de vozes que mercadejavam hortaliças, fruta e galeota, até aos confins dos ínfimos tostões. As mulheres, envoltas em eternos xailes negros, agasalhavam sobre o ventre maletas de palha, afadigando-se no regateio, interpelado por uma voz conciliatória e melada, que anunciava: "— Venha cá, ó freguesa, ainda hoje não me estreei. Leve lá a dúzia das laranjas pelos cinco mil réis."

 

A vendedeira enfiava as mãos numa interminável algibeira, pendente da cintura, a galinhos-de-barcelos-debruada, zangalhava as moedas, tacteando-as em busca de trocos, enquanto lançava já o olhar no endireito de uma outra que, de soslaio e fingindo desinteresse, rolava os olhos, fitos de desejo, sobre aquelas reboludas e luzidias laranjinhas de umbigo.

 

Decifrando-lhe o interesse, a vendedeira, melíflua, clamava: "Venha cá, ó freguesa, venha cá..." e o dia consumia-se donairoso e leve neste incessante regatear.

Sob um telhado em arcaicas telhas abrigado, de traves expostas, onde se anichavam vetustos casulos de teias de aranha enegrecidos, uma chusma de vozes riscava o ar de pregões e, a galeota (1) enchia minúsculas maquias, que eram manipuladas com ambidestreza, na estridência dos regateios, enquanto as velhotas, embiocadas nos seus eternos xailes negros, franziam as rugas, no manejo dos fugidios tostões.

 

As peixeiras eternizavam o luto em suas negras vestes e distinguiam-se pelos gestos azougados, a leveza no falar, o atar do lenços na nuca, a voz leve, flutuante, no seu intérmino algaraviar. A dois passos, sob o mesmo abrigo, quedavam-se as padeiras de Vale de Ílhavo, mulheres precavidas na fala e nos gestos, que estampavam na face o rosáceo das labaredas dos fornos. Vestiam-se com a frescura do pão e atrelavam medonhos cestos de vime bifurcados, no assento dos biciclos. Quando o vento, soprava rijo, era vê-las retesarem os músculos das pernas, a esgrimir num esforço eriçado, que lhes afogueava o rosto, a revelar-se de uma ternura amassada, na fresquidão da água e na alvura da farinha.

 

Daquele tempo, a memória retém, ciosamente intactos, os dias na imaculada recordação da infância. No jardim, as tílias adocicavam o ar e uma brisa sinfonizava o vento nas folhas, entrelaçando-se nos seus ramos, em suavidade perfumados. Os velhos pigarreavam as mazelas das gronelândias alojadas nos brônquios, de parceria com os "amaricanos", torna-viagem das Califórnias da abundância com seus bonés, inevitavelmente brancos, repousando, nos bancos do jardim, os músculos exauridos nas "raiueis" (2) e " bludins" (3), dos calcinados tempos da juventude.

 

As lojecas que circundavam o mercado retinham a marca onomástica e indissociável dos seus donos. A mais personalizada seria a do João da Fonte, que recebera baptismo pela proximidade do fontanário.

 

Pela torneira reluzente, em cuja perpendicular assentava um cilíndrico e puído banco de pedra, a água cantarolava em cântaros e jarros.

 

Revejo o hercúleo esforço da miudagem ao premir a torneira, com força desmedida para os seus dez anitos, quando artilhavam as pistolas plásticas, municiadas de água, pelo Entrudo, as bombas de rabear, os gabões, os figos impossíveis de serem tragados, na ponta da linha saltitante, os nauseabundos gases engarrafados, o Padinhas, barbeiro-travesti de saia talhada nas embalagens de cigarros.

 

O pregoeiro oficial do enterro carnavalesco também pintava letras com esmero. Ainda hoje conservo como enigma a dissonância entre o seu nome — Borrão — e a sua habilidade artística. O cavernoso vozeirão servia-lhe magnificamente para leiloar os relógios e lençóis hipotecados das gentes em transe financeiro. A loja da Maria da Tendas seria a mini-Disneylândia do tempo. Com novelos de fio e papel colorido para estrelas e papagaios, bolas de praia, relógios de imitação — para a miudagem que desejava aceleradamente ascender a homem — as serpentinas, minúsculos baldes e pás, e demais bugigangas que eram o epicentro do fascínio da infância.

 

Dessa saudade vos falo. Do Manuel das Senhas, rosto de açafrão, ventre-não-te-rales, homem bojudo e bom, de falas de mansidão. Toda a vida do mundo se lhe ia em recortar senhas que mui pachorrentamente cedia às vendedeiras por um escudo, outorgando-lhes régios direitos de mercadejar suas hortaliças e frutas.

 

O Pitato, creio que Manuel, com sua autoridade inexpugnável, de rosto administrativo, perna enrolada na muleta, era personagem temível, até ao dia em que, mercê de acusação de peculato, foi vítima implacável da pantomímica carnavalesca, pela língua mordaz ao rubro do citado leiloeiro-artista.

 

O Ti Simão, barba de três dias, pequeno e buliçoso, benigno de rosto, sempre se me afigurou personagem bíblica extraída do Velho Testamento. Vejo-o, entre os beirais do carro de mão, face contorcida de esforço, franzindo as rugas, a recovar — rodas forradas a arcos de ferro — estralejando Cimo de Vila arriba.

 

Ao ti Manelzinho Fazenda nunca se lhe ouvira um mínimo resmungo. Era a paz personificada. Caminhava dobrado, em vértice, aos solavancos, carreava à cintura um tira de cabedal, com a qual afiava a sua indefectível navalha de barba. Atracava pelas tabernas, feitas barbearias, onde devastava cabelos e escanhoava barbas. Cobrava apenas quanto bastasse para bebericar as suas "chamadinhas" (4) até ao meio-dia; daí em diante, seriam marqueses (5) tintos.

 

E o Rão... essa figura lendária! Atribuía-se-lhe com respeito que enlouquecera devido à sua enorme inteligência. Outrora oficial náutico, obsidiante, desenhava navios bacalhoeiros e "icebergs" a lápis, em papel pardo, pelas tabernas, onde deambulava, enquanto por compaixão lhe fritavam uns "jaquinzinhos" que, compadecidas, lhe davam as peixeiras do mercado. Implorava que tratassem dos seus "peixinhos" e, ao mínimo gesto de impaciência, largava em ciclones de furibundo humor.

 

Cabelo liso e lambido, de penteio esmerado, gabardina azul-marinho e botas de borracha, era a encarnação da loucura inteligente. Falava em fantasmas e vozes que o visitavam nas suas deambulações, vagueava pelas noites de insónia, as quais palmilhava de Ílhavo à ponte de Água Fria. Descrevia-me fantasmagorias que a minha insipidez de criança não ousava decifrar: vozes, temores, clamores, visões demoníacas que impenitentemente o flagelavam. Nos dias de apaziguamento do seu ditirâmbico miolo, era vê-lo rodeado de miudagem em alarido, a caçoar da sua frase-amuleto, que lhe era tão querida: "Olha o inflamável, eu sou o inflamável", e a criançada delirava a caçoar, inconsciente, daquela rocambolesca tragédia, em loucura talhada.

 

E o ti Júlio!... Sempre ensimesmado, mãos nos bolsos, olhos fitos no chão, habitava um mundo-outro, impenetrável, atravessava as ruas, eternamente absorto na sua tormenta sem cuidar de se precaver do trânsito. Dizia minha mãe que tinha na sua sombra um anjo da guarda. Era de acreditar. Quando se ouviam sonoras e arrepiantes derrapagens, sabia-se que o Ti Júlio fora de novo miraculado pelo tal anjo. De onde a onde, levantava a cabeça, balbuciava palavras desconexas, indecifráveis, e prosseguia nos imperceptíveis labirintos do seu mundo, no seu interminável roteiro, sem cuidar de se precaver da chuva ou sol.

 

E o Leão!... Implacável adorador de Baco, dilecto venerador da bagaceira, recostava-se na sua caixa de engraxar, tomado de etílica orgia, soltava a cabeça que lhe caía a pique do pescoço, de tal sorte que parecia ter-se-lhe desprendido do corpo, e dormia impassível, por entre o rum-rum dos camiões, o resfolgar troante dos travões e a pura indiferença dos passeantes.

A velhota sua mãe, que vivia de alvejar roupa no rio da Fontoura, rodopiava pelas tabernas num gesto pressuroso e aflito em busca de seu filho. Já se lhe conhecia a pergunta sacramental: " — Não viram por aí o meu álcaro (6). Ai o meu álcaro..."

 

É de Ílhavo, da minha (nossa) infância nele esculpido, que vos falo, desta saudade feita mágoa a tamborilar na vivência de todos os dias, das recordações, dos sonhos de criança que são autenticamente os mais inocentes e gratos no arquivo das cruciais memórias de uma vida. Um dia, quando regressar — o regresso é uma atormentada linha de rumo, ainda que ilusória — é leme da alma apontado ao coração da terra maruja, direi, tal o pensador-exilado "não preciso de regressar ao país, porque nunca de lá saí" ou ainda, como um filósofo na diáspora experimentado "nunca se regressa a de onde de nunca se partiu".

 

Barbosa Tavares
Brampton, Canadá
In: www.portugalnoticias.com

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Notas:

(1) - Galeota: espécie piscícola da ria, peixe de caldeirada.

(2) - Corruptela emigratória de highways (auto-estradas)

(3) - Idem para buldings (prédios)

(4) - Diminutivo de "chamada" mistura de vinho branco e vinho abafado, tipicamente Ilhavense.

(5) - Copo de vinho de aproximadamente um 1/4 de litro

(6) - Corruptela de álcool

           

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