O rio das Quatro Luzes
Conto moçambicano
Sugestões de exploração didáctico-pedagógica
O coração, a árvore — onde quiserem voltam a
nascer
(Adaptação de um provérbio moçambicano)
Vendo
passar o cortejo fúnebre, o menino falou:
—
Mãe: eu também quero ir em caixa daquelas.
A
alma da mãe na mão do miúdo estremeceu. O menino sentiu esse arrepio, como
corrente de corpo se desalmando. A mãe puxou-o pelo braço, como repreensão.
—
Não fale nunca mais isso.
Um
esticão enfatizava cada palavra.
—
Porquê, mãe? Eu só queria ir a enterrar como aquele falecido.
—
Viu? Já está falar outra vez?
Ele
sentiu a angústia em sua mãe já vertida em lágrima. Calou-se, guardado em
si. Ainda olhou o desfile com inveja. Ter alguém assim que chore por nós,
quanto vale uma tristeza dessas?
À
noite, seu pai foi visitá-lo na penumbra do quarto. O menino colocou a dúvida
entre os dois: nunca o pai lhe dirigira um pensamento. O pai avançou uma tosse
solene, anunciando a seriedade do assunto. Que a mãe lhe passara os seus
soturnos comentários no funeral. Que se passava, afinal?
—
Eu não quero mais ser criança.
—
Como assim?
—
Quero envelhecer rápido, pai. Ficar mais velho que o senhor.
Que
valia ser criança, se lhe faltavam meninices? Este mundo não estava para infâncias.
Porque nos fazem com esta idade, tão pequenos, se a vida aparece sempre adiada
para outras idades, outras vidas? Deviam-nos fazer já graúdos, ensinados a
sonhar com conta medida. Mesmo o senhor, meu pai, passa a vida louvando a sua
infância, seu tempo de maravilhas. Se foi para lhe roubar a fonte desse tempo,
por que razão o deixara beber dessa água?
—
Meu filho, você tem que gostar de viver, Deus nos deu esse milagre. Faz de
conta que é uma prenda.
Mas
ele não gostava dessa prenda. Não seria que Deus lhe podia dar outra,
diferente?
—
Não diga disso, Deus lhe castiga.
E
a conversa não teve mais diálogo. Fechou-se sob promessa de punição divina.
O menino permanecia em desistência de tudo. Sem nenhum entanto nem consequência.
Até
que certa vez ele decidiu visitar seu avô. Certamente ele o escutava com
maiores paciências.
—
Avô, o que é preciso para se ser morto?
—
Necessita ficar nu como um búzio.
—
Mas eu tanta vez estou nuzinho.
—
Tem que ser leve como lua, além da nuvem.
—
Mas eu já sou levinho como a ave penugenta.
—
Precisa mais: precisa ficar escuro na escuridão.
—
Mas eu sou tinto e retinto. Pretinho como sou até, de noite, me indistinto do
pirilampo avariado.
Então
o avô lhe propôs o negócio. As leis da vida fariam prever que ele fosse
retirado primeiro da vida. Pois, ele falaria com Deus e requereria mui
respeitosamente que se procedesse a uma troca: o miúdo fosse transferido em
lugar do avô.
—
A sério, avô? O senhor vai pedir isso por mim?
—
Juro, meu filho. Eu amo demais viver. Vou pedir a Deus.
E
ficou combinado e jurado. A partir daí, o menino visitava o avô com ansiedade
de capuchinho vermelho. Desejava saber se o velho parente
não estaria atacado de doença, falho no respirar, coração gaguejado.
Mas o avô continuava direito e são.
—
Tem rezado a Deus, avô? Tem-lhe pedido consoante o combinado?
Que
sim, tinha endereçado os ajustados requerimentos. A troca das mortes, o negócio
dos finais. Esperava deferimento ensinado pela paciência. Conselho do avô: ele
que, entretanto, fosse meninando, distraído nos brincados. Que ainda agora, o
mais que ele se lembrava era o mais antigo de sua existência. E lhe contou os
lugares secretos de sua infância, mostrou-lhe as grutas junto ao rio,
perseguiram juntos pegadas de bichos. O menino, sem saber, gozava os amplos territórios da infância. No
contar do avô o moço se criançava, convertido em menino. A voz antiga era o pátio
onde ele se adornava de folguedos. E assim sendo.
Uma
certa tarde, o avô visitou a casa dos seus filhos, sentou-se na sala e ordenou
que o neto saísse. Queria falar, a sós, com os pais da criança. E o velho deu
entendimento: criancice é como amor, não se desempenha sozinha. Faltava aos
pais serem filhos, juntarem-se miúdos com o miúdo. Faltava aceitarem despir a
idade, desobedecer ao tempo, esquivar-se do corpo e do juízo. Esse é o milagre
que um filho oferece — nascermos
em tempos nunca havidos. E mais nada falou. Agora, disse ele, já me vou, porque
senão ainda adormeço com minhas próprias falas.
—
Já assim velho, sou como o cigarro: adormeço na orelha.
Se
ergueu e, na soleira, rodou como se tivesse sido assaltado por pedaço de
lembrança. E anunciou que estava sofrendo um cansaço. Que era natural,
respondeu apressado o filho. O velho emendou, sereno.
—
Não é desse cansaços que nos pesam. Ao contrário, agora ando mais celestial
que nuvem.
Que
aquela fadiga era a fala de adeus, mensagem que estava recebendo na silenciosa língua
dos céus.
—
Estou a ser chamado. Quem sabe esta é nossa
última vez?
O
casal recusou despedir-se. Acompanharam o avô a casa e sentaram-no na cadeira
da varanda. Era ali que ele queria passar a última fronteira. Olhar o rio, lá
em baixo. E ali ficou, em silêncio. De repente, ele viu a corrente do rio
inverter de direcção.
—
Viram? O rio já se virou.
E
sorriu. Estivesse confirmando o improvável vaticínio? O velho cedeu às pálpebras.
Seu sono ficou sem peso. Antes, ainda murmurou no ouvido de seu filho:
—
Diga a meu neto que eu menti. Nunca fiz pedido nenhum a nenhum Deus.
Não
houve precisão de mensagem. Longe na residência do casal, o menino sentiu o
reverter-se o caudal do tempo. E ele se achou mais celestial que nuvem. E os
olhos do menino se intemporaram em duas pedrinhas. Mas, no leito do rio, se
afundaram quatro luzências.
Da
feição que fui fazendo vos contei o motivo do nome deste rio que se abre na
minha paisagem, frente à minha varanda. O rio das Quatro Luzes.
Mia
COUTO (Moçambique)
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