E não nos
estavam apenas no linguajar de aveirismo mais ou menos
castiço, de aveirismo incipiente. Trazíamo-los no coração e
tomávamo-los como o nosso paradigma vivo desbordante de
bem-querer (quiçá de bem-fazer) ao nosso semelhante.
Estou a
rememorar, comovido, a minha saudosíssima Mãe, um dia,
quando eu vinha da escola, cá fora da porta da inesquecível
botica, a pedir-lhes ansiosos socorros, em esganiçados
brados para acorrerem a apagar umas primeiras chamas que se
haviam ateado numa qualquer obra em curso no primeiro andar
da nossa casa. E eles extinguiram, sem grande esforço, esse
princípio de incêndio. Morávamos, na altura, no alto prédio
de três andares e um sótão habitável – da já Praça do
Comércio, e hoje do Dr. Joaquim de Melo Freitas, e que
ocupava quase metade da que é hoje a sede do Clube dos
Galitos. O prédio era da família há várias gerações, ali
mesmo, no centro citadino, na praça onde o Conselheiro
Joaquim José de Queirós, e demais sequazes das ideias
emancipadoras, soltaram, em 16 de Maio de 1828, o primeiro
brado contra o miguelismo reinante.
Estou a
vê-la, a chamar ansiosa, voltada para o quartel dos
"guilhermes", para o outro lado da ria, para o prédio que
tinha, por cima, com porta para o lado do Largo da Cadeia, a
Conservatória do Registo Predial. Voltada para aquela casa
que se erguia, no extremo da na época Praça do Dr. Luís
Cipriano e à entrada da desaparecida Rua dos Tavares, que
acabaria ocupada pelos sanitários públicos da zona cêntrica.
Nesse
longínquo período da minha já estiradota vida, havia, cá por
Aveiro, e na minha roda, em matéria de bombeiros, "os
guilhermes" e os outros. Que eram tão prestantes como eles,
e até mais antigos. Mas ficavam fora do nosso alcance
imediato, escondidos na que se chamou Rua de Santa Catarina
e hoje é denominada da Revolução – estreita e mais ou menos
escondida. Sediavam-se, num piso apenas, pegados ao Teatro
Aveirense, como que uma excrescência deste. E eram os
"outros" não obstante o meu cunhado
Francisco Ferreira da
Encarnação ser o comandante, por essas alturas, e disporem,
eles só, de uma altíssima escada "Magirus", que me
deslumbrava, e era muitas vezes múltipla da minha reduzida
estatura de criança traquina, que encetava esta longa e
fastienta caminhada pelo mundo.
"Novos"
não é, pois, a denominação que eu, no íntimo mais profundo,
adopto e sigo. Não, não eram os "novos", mas – como mais
tarde se apelidava a banda que
/ p. 24 / mantiveram e era
competentemente regida por
António dos Santos Lé –, mas,
repita-se, os "guilhermes". Era com esse chamadoiro que nos
meus tempos de petiz os designávamos. E é esse que me ficou
nos hábitos e me está mais na ponta da língua. Só que eu
envelheço de cada vez que nasce o Sol, ininterrompida,
inexoravelmente, com declínio cada vez mais acentuado de
capacidades e sem qualquer esperança de efectivo
remoçamento. E as corporações de bombeiros se persistem,
vivem espiritual, e objectiva, e organicamente, em perpétua
primavera, em ininterrupto desabrocho, vicejante e
revivescente.
Só não
são os "novos", porque, logo que comecei a vir para um
círculo mais dilatado que aquele que tinha como raio a minha
própria sombra – digo-o por consciente imperativo de
consciência – porque, repito, logo me serviram de modelo
para os infantis e inoperantes anelos das minhas
fragilíssimas construções de ocupação dos tempos sobejantes.
Não eram
os "novos", nem podiam ser. Eram os meus, os maiores, não
sei mesmo se os únicos. Era mais velho (muito mais que eu,
como é evidente) o comandante, baixote, mas para mim, como
que um marechal, o sucessor do que primeiro comandou o corpo
activo dos "guilhermes" – o aveirense, de grandes qualidades
artísticas, Carlos Mendes, que viria a ser o festejado autor
de um desafogado projecto para a transformação do antigo
"recolhimento das beatas", e depois transmudado em Sé, num
Hotel Cidade de Aveiro", que nunca chegou a concretizar-se,
e de que foi seguido para o futuro quartel-sede da
corporação, voltado ao largo da Vera-Cruz, com obras de 1920
a 1922, e que já então ostentava a denominação toponímica
que ainda mantém – Largo de Maia Magalhães – e próximo da
igreja paroquial, nunca reconstruída. E, quando festivamente
ali se instalaram já eu, com as pernas ao léu – deixadas,
assim, pelos calções que enverguei até já ser espigadote –
frequentava, ladino e vivaz, o liceu, erguido por influência
e esforços do nosso patrono cívico, desde há mais de um
século.
Era menos
velho, e muito mais alto e esganifrado que o comandante, o
Senhor Fortunato. Fortunato Mateus de Lima, se a memória,
que numismaticamente me vai falhando, não me trai na
circunstância que era pai de dois amigos, o Jaime e o
Domingos, e tinha, assim, o nome completo.
Os
"guilhermes", na sua benemérita lista de espontâneos
servidores da comunidade, incluíam, nesses tempos heróicos,
um farmacêutico. E esse diplomado nas artes galénicas era o
meu tio por afinidade,
Domingos João dos Reis Júnior, cuja
farmácia, às Cinco Ruas, era um pólo de atracção e um centro
de reunião de vermelhuscos republicanos.
E eu, que
nunca cheguei a ser bombeiro a sério, e apenas os macaqueara
em pequeno, inspirei-me, nesses já recuados tempos, em que
vi ocupar o prédio onde fora a sede dos benfazejos
"guilhermes" pelos sanitários públicos do centro citadino.
Mal encobertos por uma palmeira. E para vantajosamente
substituir um urinol situado entre os quiosques da "Pitania"
e da Maria Augusta Tenaz, que ficavam quase encostados ao
cais, entre as duas velhas pontes.
Mas, não
obstante ter ficado aos
/ p. 25 / "guiIhermes"
inextrincavelmente ligado, ao mesmo tempo que crescia,
Aveiro ia sendo vista globalmente, sem espírito de
parcialidade esterilizadora, com mais rasgado raio de
apreciação e valoração. Havia os "guilhermes" e os outros –
que estavam subtraídos às minhas vistas ávidas, mais
imediatas e radicadoras. E essa circunstância prevaleceria,
apesar dos sobrevindos sentimentos globalizadores, de
aveirismo, sem divisionismos nem consequentes diminuições. E
passei a ser, natural e logicamente dos dois.
Vejo,
todavia, os "guilhermes", na minha dissaborida, ainda que
sentidíssima evocação, nestas comemorações das "bodas de
diamante" – a que do mais íntimo do coração penhoradíssimo e
muito enraizado nos meus sedimentos mnésicos, neste benévolo
ensejo me associo calorosamente – a montar e a subir escadas
que eles mesmo acresciam até grandes alturas, que me
pareciam capazes de alcançar o céu, e a bem-aventurança, por
ali arriba, da fachada desse edifício desaparecido, ágeis e
disciplinados, metas e modelos dos meus anelos pueris,
desmedidos mas platonicamente inatingíveis.
Estou a
rever, reluzentes e a cintilar, no seu amarelo que me
parecia de ouro e valia mais, no seu simbolismo, do que este
metal precioso – os capacetes, e as suas apuradas fardas, a
de serviço e a de gala, que tão vincadamente os diferençavam
dos da corporação mais antiga – como tantas coisas na cidade
que tinha duas freguesias, e tantas dualidades, e era pátria
de tantos refilões e insubmissos. Radiavam, em comparação
vantajosíssima com o meu rudimentar capacete de papelão
recoberto de papel de seda berrante de cor. Que eu, valha a
verdade, e suponho que já então tinha disso a consciência no
meu bombeirismo de reduzida expressão, não passava de um
arremedo insignificante, mas muito mimoso e de grande
disponibilidade sem reserva, da companhia prestantíssima que
me suscitava e eu procurava reproduzir paradigmaticamente.
E nem só
no capacete, mas nas capacidades de dádiva idealista a tudo
sobreposta, mas num capacete inoperante e tosco de madeira
mal afeiçoada e no cinturão que me cingia a barriga pouco
protuberante, e me abanava a alma dadivosa e ingénua, cheia
de bons propósitos altíssimos e magníficos para os meus
diminutos predicados de infante pouco dotado.
Lembro-os, como se fosse hoje, e agora, nesta altura em que
tão significativamente comemoram os setenta e cinco anos de
oferenda ao socorro filantrópico, nos sacrifícios, que eu
não era capaz de reproduzir com a fidelidade a que aspirava
na minha veneta de mundo traquina e macaqueador. E nas
paradas e cortejos, de farda de gala, escura e impecável de
alinho, conscientes das suas beneméritas potencialidades
prestimosíssimas. E esticava-me, por fora e por dentro,
anelava, pelo dia – que nunca mais chegou – de marchar, como
eles, ao som estridente e ritmado, de uma corneta. E se não,
ao lado deles mesmo. Colocava-os nos páramos mais altos,
como meta, como fim, como aspiração a perseguir
ininterruptamente, até ao alquebramento de todos os alores
jovens, e empréstimos do ocaso.
Compartilho, pois, emocionadamente, destas tão promissoras
"bodas de diamante", com ardentíssimos votos de
prosperidades contínuas para um muito dilatado futuro de
bem-fazer. |