Uma escapadinha a Luanda
Tive de ir a Luanda. Tinha partido os óculos e a sua
falta provocava-me constantes dores de cabeça. O médico da Companhia,
sem outra alternativa, resolveu mandar passar-me Guia-de-Marcha para o
Hospital Militar de Luanda, consulta de oftalmologia. Ainda me
perguntou, em ar de gozo:
– Não queres também uma consulta de psiquiatria?
Ele sabia que só os que estavam mesmo “apanhados”
para lá eram enviados. Iam para o Dr. Quintas, médico que havia nessa
especialidade e que, talvez à falta de mais saber ou por desconfiar o
que os doentes queriam era fugir do mato, agredia fisicamente os que lhe
caiam nas mãos!
– Não. Obrigado Doutor – respondi. Preciso só de
saber a graduação dos óculos e comprar novas lentes!
Segui na primeira coluna de reabastecimento que foi a
São Salvador. Aí embarquei no “Barriga de Guinguba”, que tinha trazido o
abastecimento de Luanda. Fossem dois ou dez passageiros havia sempre
lugar!
Ao aquecer os motores para levantar voo, aquela
geringonça tremia por todos os lados. Senti medo! Finalmente levantou e
quando entrou em velocidade de cruzeiro deixou de se ouvir tanto ruído.
Fiquei mais descansado. Passadas umas horas aterrávamos em Luanda.
Perguntei como seria para regressar ao Norte:
– Quando estiveres pronto apresenta-te, que se
arranja sempre um buraco!
“Ora bem, o que vou fazer agora?” Estava confuso!
Olhei a cidade ao longe. Era tarde de sexta-feira. Teria de me
apresentar no Hospital, num dia útil – não era uma urgência – às 9H00 da
manhã. Tinha o fim-de-semana por minha conta! Ah, o Plínio! Vou a casa
do Sr. Nero ou à PM e encontro-o.
Assim fiz. Apanhei o “Machimbombo” na Mutamba e
desembarquei na “Terra Nova”, dirigindo-me a casa do Sr. Nero. Lá
encontrei o meu irmão Plínio, que me informou que o Manuel também se
encontrava em Luanda. Tinha vindo do Norte em serviço!
Gafanhões por toda a banda
Vejam só, três irmãos separados por largas centenas de quilómetros, e
conseguirmos encontrar-nos em Luanda!
Fomos à procura dele e encontrámo-lo na Baixa, mesmo
junto à Câmara.
– Olha – diz o Plínio – na Câmara trabalha um
Engenheiro da Gafanha. Vocês conhecem-no, é o Eng. Dinis Caçoilo.
Não me lembrava dele. Era mais velho do que nós, foi
para a universidade e só o víamos nas férias! Depois deixei de o ver, o
que não impediu de que fôssemos apresentar-lhe cumprimentos. O Plínio
conhecia-o bem, já o tinha visitado. Estávamos satisfeitos com aquele
encontro de todo imprevisto e seria mais uma alegria ir encontrar gente
da nossa terra.
Visita ao Eng. Dinis Caçoilo
Fomos. O Plínio estava fardado, o que facilitou a nossa entrada. Fomos
levados ao gabinete do Sr. Engenheiro. O contínuo perguntou ao que
íamos:
– Falar com o Sr. Eng. Dinis.
– Não há cá nenhum Eng. Dinis!
– Não há?! – Pergunta o meu irmão – então queremos
falar com o Sr. Eng. Dinis Caçoilo da Rocha!
– Ah, o Sr. Eng. Rocha. É só um momento. E quem devo
anunciar?
– A família Ribau.
E, para não haver dúvidas:
– A família Ribau, da Gafanha.
O Engenheiro quando apareceu à porta do gabinete
ficou surpreso.
– Olá Plínio, tens algum problema?
– Não Sr. Engenheiro. Queria apresentar-lhe estes
meus dois irmãos. Este é o Manuel e este, o Ângelo!
Cumprimentou-nos com ar admirado.
– O que fazem eles em Luanda?
– Andam na tropa! – Diz o Plínio – O Manuel é Tenente
Miliciano, e está nos Dembos; o Ângelo é Sargento Miliciano e está na
região de Cuimba.
– Esperem um momento. Vou terminar um despacho e
saímos já. Quero ir apresentar-vos à minha família.
E assim foi. Fomos no carro dele até sua casa, onde
nos apresentou à esposa e filhos, tendo logo ali determinado que no
domingo iríamos todos lá almoçar. Achámos que seria muito trabalho para
a esposa e, por isso, convidámo-los a ir almoçar fora. Que não senhor,
que o almoço seria em família e por isso teria de ser em sua casa.
– Domingo, ao meio-dia, quero-vos aqui os três!
Despedimo-nos e cada um foi à sua vida.
“Tango dos Barbudos”
Eu fui dar uma volta pela Baixa. Recordo que tomei um fino na “Biker”
com coiratos de porco torrados e cheios de sal! Mais uma volta (vejam
lá) a ver montras!
Tudo aquilo era um espectáculo estranho para mim
naquela altura. Tanta gente, e eu tão sozinho.
Ia a passar na esplanada em frente à Portugália e
resolvi tomar uma “bica”. Há tanto tempo que não tomo uma bica!
Sentei-me na esplanada, saboreando o café bem tirado, acompanhado de um
cigarro. Que bem me estava a saber aquele momento! Enquanto isto, ouço
um “pxsst” e vejo um indivíduo a olhar para mim, tentando inteirar-se se
não estaria equivocado!
– O Sr. não esteve no Caçadores 5?!
– Sim, estive, até há cerca de um ano. Depois
embarquei e cá estou.
– …
– Mas eu estou a reconhecer a sua cara. Você tocava
clarinete na banda do Caçadores 5. Vão formar aqui em Luanda alguma
banda?!
O homem estava mais triste do que uma noite sem luar!
E respondeu-me:
– Olhe, mandaram-me para aqui, para substituir um
operacional que morreu em combate.
– Um operacional? Mas a sua especialidade é música!
– Pois é, e nem instruções me deram!
Senti uma grande revolta. A ser verdade o que acabava de me contar, só
há uma palavra para qualificar esta reprovável atitude: assassinos…
Tentei acalmar o homem! Soube que ia para a região de Bessa-Monteiro e
pensei “meu Deus, ali ouve-se quase sempre o “Tango dos Barbudos” ( ).
Fiquei calado...
Aquele militar, por ter encontrado alguém que o
ouviu, sentiu-se mais calmo e entabulou uma conversa:
– Onde está o vosso Batalhão?
– Em Cuimba – respondi.
Ficou pensativo.
– Cuimba…Cuimba...é o 357. É o “Rebenta”! – Disse.
– O nosso Batalhão pertence a Caçadores 5, como
disse.
– Como é que vocês conseguem viver lá com tanta mina
anti-carro? Já vos morreram tantos homens! Deve ser difícil! A notícia
já chegou à nossa Unidade, onde o vosso pessoal é considerado uma
espécie de heróis.
– Heróis?! – Indaguei com espanto! – Olhe, os mortos
são enterrados, e os vivos continuam a viver até que calhe a vez a mais
alguns. A vida aqui é assim!
Tentei parecer descontraído para não assustar ainda
mais o pobre homem do clarinete!
– Olha se me mandavam para lá! – Diz ele – Ainda tive
sorte!
“Coitado…” pensei eu, que julgava exactamente o
contrário. Bessa-Monteiro, na altura, era dos piores sítios, segundo
alguns que nunca lá tinham estado!
A distância e a falta de informação completa,
distorcem a realidade, como eu acabava de comprovar com a informação
recebida do que “corria” no Caçadores 5.
– Tenho de ir apresentar-me no RIL (Regimento de
Infantaria de Luanda) e lá aguardar a ordem de seguir para o “Norte” –
diz-me o clarinetista.
Despedimo-nos, com desejos de boa-sorte mútua.
Fiquei por ali, pedi mais um café, e fiquei a pensar
no encontro que tinha tido.
Ia saboreando o café, sempre acompanhado do fiel
cigarro. O sol ia tombando lá para os lados da baía. A grande árvore que
fazia sombra à esplanada ia perdendo o seu valor, pois o sol já não
incomodava.
Heróis…! E veio-me à mente o que Saint-Exupéry
escreveu um dia no seu livro “Piloto de Guerra”: “E eu penso muito
simplesmente que aqueles que morrerem servem de caução aos outros”!
Também nesta guerra parece suceder a mesma coisa, pelo que ouvi há
momentos. Os que morreram serviram simplesmente de caução aos que
ficaram vivos: os “Heróis”?!
Passeio na baixa Luandense
Incomodado com estes pensamentos, abandonei a esplanada e dirigi-me à
marginal, donde se via a baía e, para lá da Ilha de Luanda, o mar. O sol
já se escondia mergulhando para além do horizonte, tal como na Gafanha!
Passeei pela Avenida, larga e limpa, durante tempo
esquecido, até que se começaram a acender as luzes das ruas e dos
anúncios. Já não me lembrava que normalmente as coisas eram assim. Um
espectáculo maravilhoso!
Fiquei até tarde a caminhar a gozar aquele
espectáculo. Dormi na cidade. Quem está no mato e tem a possibilidade de
vir a Luanda, não vem “gozar” dois, três, cinco dias, uma semana! Vem
gozar, 2.000, 5.000, 10.000 angolares. Aquilo que tiver! O dinheiro no
mato não vale nada.
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Avenida Marginal – Luanda/1963 |
Tive o cuidado de passar numa “Óptica” e saber quanto
custariam mais ou menos as lentes, e pôr esse valor de parte!
Quando acordei no dia seguinte, tive uma sensação
estranha. A noite foi passada calmamente mas agora, sozinho no quarto –
um quarto só para mim – senti-me mesmo só. Levantei-me, tomei um banho
com água de temperatura regulável e à farta! Depois tomei o “mata-bicho”
e saí. Não sabia o que ia fazer naquele sábado.
Ao entrar na rua notei logo que o dia seria quente.
Uma quentura diferente da que existia no mato. Havia uma humidade
incomodativa! Andei ao Deus dará por ruas desconhecidas, vi montras, vi
gente que passava, vi muita coisa, mas nada parecia interessar-me!
Continuava a sentir-me só! Devo ter olhado para muita coisa sem nada
ver! Os pretos olhavam-me sem o menor interesse. Alguns brancos
olhavam-me fixamente e seguiam o seu caminho!
Tento descobrir o que se está a passar comigo. Paro
em frente de uma montra que reflectia a minha imagem, olho fixamente
para ela. Não pode ser! Sou mesmo eu, pensei! O cabelo cortado curto, a
barba cortada, a pele da cara escura e, os olhos… Os olhos pareciam
olhar para o infinito sem nada verem…! Ah, já sei: É a falta dos óculos
que me faz parecer um desconhecido!
Mas estas gentes não me conheciam sem óculos, nem com
eles, pensei. Pronto, é da falta de óculos e está tudo esclarecido.
Café Versailles
Estava absorto nos meus pensamentos, quando ouvi alguém chamar-me! Olhei
e vi o homem do clarinete, sentado na esplanada da Portugália. Sentei-me
com ele e conversámos. Ele estava muito mais calmo, e eu não me senti
tão só.
Tal como eu, aquele homem andava perdido! Era sábado.
O pessoal passava em direcção à praia. Na ilha de Luanda devia estar um
excelente dia de praia. Não consegui imaginar-me a tomar banho na praia,
a estender-me ao sol, e os meus colegas no mato! Senti um estremeção
pelo corpo. Que seria aquilo?!
O clarinetista notou-o e perguntou-me:
– Passa-se alguma coisa? Sente-se bem?!
– Não é nada – respondi. É este calor húmido, que
causa mal-estar! Lá no “Norte” o calor é mais seco e custa menos a
suportar! É preciso é ter cuidado com o cacimbo!
– Cacimbo?! O que é isso?
Então expliquei-lhe que cacimbo é uma espécie de
nevoeiro que se levantava pela madrugada, frio e molha tudo onde cai.
Nem o “poncho” – uma espécie de capa que cobre os ombros e desce até à
cinta – que é leve, impermeável, fino e cabe num bolso do fato de
combate – apenas protege da molha, não do frio!
– Ah! – Responde o homem do clarinete.
E ficou-se por aí. Falámos de coisa nenhuma. Nada
parecia interessar; nem a mim, nem a ele! Conversa de “xaxa”, para quê?
Ele, para que o tempo passasse, eu aguardando que algum dos meus irmãos
aparecesse!
– “Versailles”, parece ser um salão chique – disse o
meu companheiro, olhando para o lado oposto da rua!
– E é – retorqui.
Já lá tinha passado uma vez com o Costa Pereira e
contei-lhe a história:
– Tínhamo-nos sentado os dois numa mesa ao canto,
tentando não ser notados, tal era o luxo. Era tudo gente de idade, bem
vestidos e bem acompanhados. Pedimos duas bicas. Fomos servidos e
inquiridos pelo “criado” se iríamos demorar muito tempo! Estranhámos,
pelo que perguntámos se havia algum problema!
– Não – responde o homem – Mas esta mesa costuma ser
a preferida de um fazendeiro rico, que vem cá todas as tardes tomar o
chá com uma menina nova. Todos os dias esta mesa me rende só de gorjeta
duzentos angolares!
Tomámos a bica e saímos. O homem agradeceu-nos!
– Ainda há por cá “disso”? – Perguntou o homem do
clarinete!
Pelos vistos há, e haverá sempre, enquanto houver
dinheiro e pessoas interessadas em levar uma vida “fácil”!
Um almoço muito especial
A tarde desse sábado passou, a noite também e no domingo ao meio-dia
apresentámo-nos na casa do Engenheiro para o almoço combinado. Foi uma
agradável refeição, com perguntas de todo o género acerca da Gafanha,
onde ele já não ia há muitos anos.
Terminada a refeição, meteu-nos no carro e foi
mostrar-nos a “sua obra”. A segurança das “barreiras” que desciam desde
o cinema Miramar – um cinema a céu aberto – como tantos outros em
África, até à baixa da Cidade. Tinha sido obra dele e mostrou-nos com
orgulho essas barreiras, com largas dezenas de metros de altura,
explicando qual a técnica que usou para evitar que as enxurradas
provocadas pelas fortes chuvadas arrastassem a terra barrenta,
provocando acidentes na Cidade.
– Agora – dizia ele – estou habilitado a fazer este
serviço em qualquer parte do mundo!
Mostrou-nos ainda um bairro para gente de poucas
posses, que a Câmara de Luanda tinha mandado construir. Estava quase
todo desabitado, e as habitações ocupadas estavam todas “pintadas” com
fumo. Os que as habitavam não queriam cozinhar a gás. Preferiam a lenha!
Alem disso, como tinham de pagar uma renda simbólica, preferiam as
habitações tradicionais.
No dia seguinte, segunda-feira, fui ao Hospital
Militar onde fui observado por um especialista. Receitou-me novas
lentes. Saí, fui a um oculista para aviar a receita. Ao pôr os óculos
senti-me melhor, embora um pouco tonto, mas foi coisa que rapidamente
passou.
Estava terminada a justificação da minha ida a
Luanda. Já começava a acostumar-me ao ambiente citadino. “Não pode ser”,
pensei. Lá longe, no “Norte”, nós sempre pensávamos que a cidade de
Luanda era o ideal para se viver. Agora, a experiência demonstrou-me que
a cidade é simpática para quem cá vive, não para quem pensa que este não
é o seu lugar! A mim pareceu-me estranha! Não sentia as ruas, não sentia
os prédios que nos rodeavam por todo o lado, enfim, pareceu-me uma
cidade bastarda!
De regresso à “Pensão Pangala”
Fui ainda nesse dia ao aeroporto, à zona militar, para saber quando
haveria boleia para São Salvador. Atendido pelo oficial-de-dia, fui
informado para estar no dia seguinte às 08.00 horas no aeroporto, que
havia boleia no avião de abastecimento. Assim fiz. À hora aprazada lá
estava pronto a partir. E cheguei sem percalços a São Salvador, seguindo
na coluna de reabastecimento da nossa Companhia, que estava à espera do
avião para levar o abastecimento.
Estava finalmente com a minha gente! Durante o
percurso comecei a sentir o ambiente do mato. Algum tempo depois, havia
qualquer coisa que não entendia! Ia pensando no dia anterior, em Luanda,
onde tudo me parecia estranho!
Passámos a ponte do Luvo e começámos a subir pela
estrada má, a da grainha de cobre. Lá estava o local onde os nossos
companheiros perderam a vida! Aqui compreendi o que havia de estranho em
mim: não levava arma; era como se fosse nu!
Finalmente chegámos ao nosso acampamento. A vida por
aqui continuava na mesma. Durante a minha ausência, não tinha havido
nada de anormal. Emboscadas, serviço de segurança, serviço da água, tudo
como tinha sido antes, felizmente sem baixas. Parece que o IN tinha
desistido de armadilhar a estrada na nossa zona. Agora actuavam mais
para o lado das Companhias 307 e 304, que ficavam no caminho de Cuimba
para Maquela do Zombo. As únicas novidades seriam as que trazia de
Luanda. Mas eu não estava interessado em falar de Luanda e, segundo me
pareceu, poucos estavam interessados nisso. Um ou outro perguntava-me
como estava a cidade e a resposta era invariavelmente a mesma: No mesmo
sítio!
Só por puro masoquismo poderia falar na vida que se
levava em Luanda! E a pergunta que já há uns tempos andava no ar era a
seguinte:
– Quando é que vamos para baixo?
Tinham-nos dito que estaríamos por aqui um ano e
depois regressaríamos ao Grafanil, para fazer serviços de intervenção
onde houvesse necessidade de reforços. Dito por outras palavras: “para
outro local do mato”, mas por pouco tempo – diziam.
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