A "coisa"
Certa noite apareceu-nos esbaforida a sentinela que
estava de guarda à casa do Comando:
– Meu Furriel, venha ali depressa que entrou uma
”coisa” para a varanda da casa do Comando!
– Deixa lá – disse o Malha (de serviço como
sargento-de-dia) – Deve ter sido o Dick, (o pastor alemão que o Costa
Pereira trouxe consigo para Angola).
– Não era não, eu apalpei e era uma coisa fria!
– Uma coisa fria?! – Ripostou o sargento Crava –
Cuidado que pode ser uma cobra!
Lá foram uns quantos. O Malha pegou na lanterna, e ao
aproximarmo-nos da varanda, vimos duas enormes cobras enroscadas a um
canto. Eram mesmo enormes. Levantou-se a discussão:
– Dá-se-lhe um tiro com a pistola e acabasse-lhe com
a raça! – Diz um.
– Um tiro não – disse outro dos mais cautelosos – A
bala pode fazer ricochete nos tijolos e um de nós pode lerpar.
– Eu trato disso – retorquiu o Blica. Vou buscar uma
catana e resolvo já o assunto da puta da cobra!
Ainda foi advertido de que as cobras eram duas,
grandes, e quando lhe dirigíamos a luz levantavam a cabeça para nós. Era
muito perigoso. Chegado com a catana, o Blica disse para o que tinha a
lanterna:
– Aponta a luz para aquele canto. A cobra dirige-se
para lá, eu debruço-me na varanda e dou-lhe uma catanada nos cornos que
a lixo.
Assim foi. Com todo o cuidado e com muito medo, a
operação foi executada com êxito. Ao ver a companheira a morrer com a
espinha partida, a outra cobra fugiu a toda a velocidade, esgueirando-se
por entre as nossas pernas.
– Ó c’um caraças! Foge, foge!
Era quem mais podia fugir, aos gritos...
Maldita fotografia
No dia seguinte, lembrei-me de tirar uma fotografia com a cobra. Era um
lindo animal – depois de morto! Media 3,80m de comprimento. Toda a
Companhia apareceu querendo tirar uma fotografia com o bicho. Gastei um
rolo inteiro, o único que tinha. Foi revelado e posto a secar.
– Ó diabo! – Disse eu quando contei as folhas de
papel que tinha para as provas. Tinha dezoito e as fotografias eram
trinta e seis! Trabalhou “o” cabeça! Cortam-se as folhas ao meio, e fica
resolvido o problema.
Reuni com os “modelos” que se fizeram fotografar com
a cobra nos braços e disse-lhes o que se passava:
– Rapaziada, não há papel suficiente. Vou cortar as
folhas ao meio, mas o preço é o mesmo por cada fotografia: uma “Cuca” ou
uma “Nocal”.
Alguns torceram-se, mas por fim todos concordaram.
– Deixem lá! – Respondi em jeito de consolação mas
com um certo cinismo – Assim até os “Bate Estradas” vão mais leves!
Obs.– “Bate Estradas” eram os aerogramas em que cada
militar escrevia dando notícias.
Todos quiseram a sua foto para enviarem à família,
que seria transportada em carta por uma coluna da Companhia quando esta
fosse a São Salvador. E cada um podia dizer à família que ele é que
tinha morto a cobra, o que seria motivo de admiração dos familiares e,
quem sabe, dos vizinhos! Agora ia ficar com um crédito na cantina em
cerveja bem jeitoso...
A cobra
As
fotografias tinham de ser feitas de noite. De dia não havia nenhum sítio
em que a escuridão fosse suficiente para isso. Além de que de dia o
calor era muito e a temperatura tinha influência no tempo de revelação e
de fixação das imagens. De maneira que, só de noite, e enquanto houvesse
electricidade o poderia fazer.
O Sargento Tendeiro, das transmissões, cedeu-me um
pequeno quarto na secção das transmissões e era aí que eu tinha todo o
equipamento de laboratório e onde fazia os meus trabalhos fotográficos.
De vez em quando, lá se faziam meia dúzia de fotos, só que desta vez
eram trinta e seis e tinham de ser feitas no ampliador. Pedi ajuda ao
Tendeiro mas este escusou-se. Fiz o trabalho sozinho, duas noites
seguidas. Não dava para mais, porque o gerador eléctrico era desligado
às 23H00, para não se gastar muito gasóleo.
Quando no dia seguinte entreguei as fotos feitas
durante a primeira noite, foi um caso sério:
– Mas por que é que o meu Furriel não fez a minha
primeiro? Já escrevi o “Bate Estradas” dizendo que juntava a fotografia.
E agora?
– Deixa que logo à noite faço o resto e amanhã todos
têm as fotografias. E para mais só além-de-amanhã é que a Companhia vai
a São Salvador.
Lá os convenci. E cumpri.
No dia aprazado fomos a São Salvador. Foi o nosso
pelotão escalado para ir. Ao chegar lá, sempre a mesma coisa: o
abastecimento, comprar umas coisas, passear naquele pequeno oásis centro
de ligação com outras povoações. Ir à Sé de São Salvador do Congo, um
espaço fresco, com imagens de santos, como no “Puto”. A Sé era uma
construção desproporcionada, grande, comparada com as construções
restantes da cidade. Entrei diversas vezes, mas nunca consegui fazê-lo
levando a arma comigo, deixava-a sempre com um companheiro, à porta. Não
sei porquê! Sentia que não era lugar onde uma arma devesse entrar.
À noitinha estávamos no acampamento.
No dia seguinte o nosso pelotão estava de folga!
Folga? O que é isto no sitio onde nos encontramos? Em qualquer parte, no
mundo civilizado, folga era sinal de descanso, de descontracção, de
passear um pouco pela cidade. Assim era em muitas partes de Angola.
Aqui, descanso era sinal de não sermos obrigados a sair do acampamento e
isso era o melhor que nos podia suceder!
“Bate Estradas”
Acordei cedo. Com sol era impossível estar na cama. Dei uma volta pela
caserna do nosso pelotão. Estava tudo em ordem. Uns entretinham-se a
limpar a arma – quem diz que em tempo de guerra não se limpam armas? –,
outros conversavam e havia ainda outros que estavam a escrever o
inevitável “Bate Estradas”. Ainda no dia anterior tinham estado em São
Salvador, onde tinha sido depositada toda a nossa correspondência. Ainda
bem que este tipo de cartas era exclusivamente de, e para militares.
Eram de borla, distribuídos no Ultramar pelas Companhias e no “Puto”,
salvo erro, pelas Juntas de Freguesia.
Chegou a hora do almoço. E como cheirava bem! Ao
tirar o testo do panelão, lambi os lábios. Outra vez dobrada com feijão
branco! Para mim era das melhores refeições que me podiam dar no sítio
onde nos encontrávamos. Ao provar, alguns torceram o nariz. O cozinheiro
tinha-se descuidado no sal… O manjar estava salgado mas não foi por isso
que deixaram de ficar os pratos limpos. Foi tudo!
Passado um bocado começou a sede a apertar. Beber
muita água? Não: Era um luxo! Alguns de nós fomos à cantina beber uma
“Cuca” bem fresquinha. Conversa puxa conversa, “Cuca” puxa “Cuca”, e
quando dei por mim estava deitado na minha cama, molengão, a dormitar.
Nisto ouço o médico da Companhia a dizer:
– Este gajo está com uma bebedeira nos cornos que nem
se aguenta!
Ao ouvir isto acordei daquele torpor. Vejo o médico,
pessoa franzina, de bigode fininho, debruçado sobre mim e digo-lhe com
voz entaramelada:
– Bebedeira nos cornos, não doutor, que eu sou
casado! É no estômago!
O médico pediu desculpa e obrigou-me a tomar um
medicamento. Nós nunca sabíamos qual era o medicamento que tomávamos.
Era uma pastilha LM (Laboratório Militar), tinha que fazer bem. E fez!
Passadas umas horas estava fino. Foi então que me contaram o que tinha
sucedido: tinha bebido quatro cervejas seguidas enquanto fazia a
digestão, que parou! Levaram-me para a cama e chamaram o médico.
Este acontecimento deu azo a que os meus
companheiros, Sargentos como eu, quando passavam por mim, dissessem:
– “Nos cornos não, doutor, que sou casado”.
Não valia a pena um gajo chatear-se. Então resolvi
começar a rir-me ao ouvir tal frase. Não tinha alternativa. Era uma
risada de parte a parte! As figuras que uma pessoa faz!
Este entretenimento durou uma semana e tal, até que tudo esqueceu.
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