POR TERRAS DE
ÁFRICA
Isto passou-se em África, mais propriamente na Guiné. Éramos
meninos novos, moços com o sangue na guelra. Estávamos perto de
Mafatá. Eu pertencia à companhia 757. Para nos divertirmos,
jogávamos futebol de salão, e a mim costumavam chamar-me o Sete de
Espadas.
Tinha um colega meu, chamado Leal. O Leal era um indivíduo muito
mais alto, muito mais forte que eu. Um determinado dia, por
qualquer motivo, começámos a discutir futebol um com o outro.
Discutimos tanto, que chegámos a vias de facto; houve mesmo
agressões. Eu usava óculos, e o meu amigo Leal partiu-mos. Além da
pancada que me deu, porque tinha mais força do que eu, partiume
os óculos. Caiu-me mal, sobretudo o facto de ele me ter partido os
óculos; apresentei queixa, ele teve de mos pagar, aliás era a
única coisa que eu pretendia, o problema era nosso. Não queria que
ele fosse castigado, de nenhuma outra forma, a contenda ficava
entre nós. Os meus óculos, sim, ele tinha de pagá-los, porque mos
partira. Se queria lutar, ao menos deixasse-me tirar os óculos.
Bom, o tempo
foi correndo, correndo, e nunca mais falámos; até hoje nunca mais
falámos. Num dia em que fomos fazer uma viagem (a nossa companhia
abria estradas, na Guiné, entre várias cidades), saímos do nosso
aquartelamento e fomos até Mafatá. Na volta, caímos numa
emboscada. O meu carro ia à frente e um morteiro de basuca caiu
mesmo sobre uma árvore, onde eu passava naquele momento. O
condutor perdeu a noção do que ia a fazer, entrámos pelo mato
dentro sem controlo, e, por azar, logo para o lado onde estavam os
guerrilheiros, os terroristas, como lhes chamávamos, naquela
altura. Perdido o controlo do carro, este acabou por virar,
ficando voltado para o lado de onde os indivíduos estavam a
disparar, e eu exposto a levar uns balázios valentes. Não sei
explicar ainda hoje como, mas consegui fugir por debaixo do
volante e sair da viatura.
Ainda mal me tinha posto em pé, e já gritavam por mim:
– Ó meu
furriel, – dizia um. – Ó meu furriel, o Bigodes está ferido. (O
Bigodes era um soldado do meu pelotão).
Vejo o Bigodes; entrara-lhe uma bala por um lado da boca, saindo
pelo outro, tendo-lhe partido, dois dentes.
Digo-lhe:
– Não é nada de grave Bigodes, ponha-se aí quieto e escondido,
temos de ver no que isto dá, depois cuidamos de si.
Ainda não tinha atendido o Bigodes, já me chamavam de outro
ponto.
– Ó meu
furriel, o Penamacor morreu.
Corro para o Penamacor, que estava de cara para o chão, volto-o e
verifico que ele levara um tiro certeiro no coração. Coitado!
Tinha-lhe morri do o pai quinze dias antes, era filho único, e
agora marchava ele.
Encontrávamo-nos no meio de toda aquela aflição, tiros de um lado,
tiros do outro, quando ouço uma voz a gritar:
– Vamos a eles. Vamos a eles.
Quem era? Para meu espanto e admiração, era o meu amigo Leal, que
entrava pelo mato dentro com a sua secção, naquela altura,
rodeados de fogo cruzado. Vendo-nos todos a cair como tordos, sem
salvação possível, ele sem sequer pensar no enorme perigo que
corria ao expor-se daquela forma com os seus homens, gritava:
– Vamos a eles. Vamos a eles. Disparava, disparava, e em menos de
nada, os terroristas sumiram-se.
O Leal apanhou uma grande condecoração. A cruz de qualquer coisa,
que eu não posso precisar.
Apesar disso,
continuámos sem nos falar, durante todo o resto do tempo de tropa.
Pior, até hoje, ainda nunca falámos. Precisava de confiar isto a
alguém, porque trago dentro de mim a mágoa de o não ter abraçado.
Mas nunca, nunca mais nos falámos depois daquela peripécia dos
óculos. Tenho cá dentro esta pena. É uma história que me marcou
bastante, porque apesar das discussões, e de tudo o resto, quando
foi preciso, ele salvar o companheiro, o amigo, na altura exacta,
ele foi lá, e fê-lo com a maior coragem, e sem olhar a
ressentimentos.
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