Moleiros
não faltavam por aqui noutros tempos; pois, sendo o pão o
principal alimento e tendo a farinha intensas aplicações,
eles eram indispensáveis.
Na
Silveira há até um local conhecido por Azenhas, dado o
elevado número de moinhos de água que ali funcionava.
Existiam azenhas ao longo de todos os cursos de água do
concelho de Oliveira do Bairro. Eram várias as famílias que
tinham moinhos próprios.
Em
casa de muitos lavradores moía-se o grão nas atafonas,
moinhos com grandes rodas dentadas de madeira, que, engrenando
noutras menores, faziam girar as mós. Estes engenhos eram
manuais ou movidos por bestas. Escaparam à demolição alguns
exemplares, mas cremos que por pouco tempo, dado que todos estão
desactivados por não haver, hoje em dia, quem tenha gado
adestrado para tal serviço.
Vem-nos
à ideia alguns moleiros de Monte Longo da Areia com quem
contactámos durante muitos anos.
O
senhor Manuel Moleiro, um velhote risonho com a piada na ponta
da língua e que, quase todos os dias, ao regressar da "volta",
levava já o seu grãozinho na asa.
A
Senhora Maria Moleira, uma mulher forte já para lá da meia
idade, muito afável e cordial e que andava sempre bem
disposta.
Embora
trajassem de escuro, apresentavam-se brancos da cabeça aos pés,
polvilhados da farinha, que transportavam às costas ou à
cabeça o dia inteiro, desde o alvorecer até altas horas da
noite.
Cada
um trazia a sua égua ou macho, carregado de sacos brancos e
bem arrochado.
Levavam
milho e traziam farinha branquinha, com a qual se fazia a
broa, as papas de nabiça, se engrossava a sopa e as papas de
abóbora, se criavam as galinhas, se cevava o porco, se
mantinha a vaca em tempos secos, se engordavam os coelhos...
Depois
destes dois moleiros vieram os filhos e netos, rapazes novos,
robustos que sucederam aos mais velhos após eles terem
partido. Foi numa dessas partidas que pela primeira vez nos
deslocámos a Montelongo, para levar à sua última morada
quem nos prestara serviços ao longo da vida, que conhecemos
essa terra que, embora próxima, parecia então muito
distante, dados os caminhos maus que serviam, ao tempo, esse
povoado.
Os
burros dos moleiros conheciam, sem equívoco, as casas de
todos os fregueses e, aí chegados, paravam sempre sem aviso
prévio. O dono podia dormitar a cavalo no jumento ou acompanhá-lo
a pé a cambalear que o animal nunca deixava de fazer a
respectiva paragem, chegando mesmo a chamar a atenção do
dono com um relincho. Dado que a maior parte das casas recebia
quase diariamente a visita do moleiro, era costume dizer-se de
quem parava a conversar com todas as pessoas que encontrasse
no caminho: - “es como o burro do moleiro!... paras em todas
as portas”!...
As
pessoas menos previdentes iam trocar a farinha às lojas onde,
como é óbvio, pagavam mais pela moagem.
Não
tendo dinheiro, era-lhes descontada a maquia, uma porção de
farinha que bastasse para pagar o serviço do moleiro e o
ganho do merceeiro.
Com
o aumento da clientela os moleiros passaram a fazer a
“volta” de carro de cavalo, mais tarde de carro de bois e
por fim de camioneta. Poucas vezes temos passado por Montelongo
que é agora um bonito lugar.
Deslocámo-nos
lá, há dias atrás, para fotografar uma das azenhas que
ainda por ali existem, porém nada lográmos. Não resta uma
única em funcionamento. Alguém, ligado ao ramo, disse-nos
que as azenhas deixaram de moer por não haver quem limpe as
valas. Informaram-nos que na Silveirinha, sim, iríamos
encontrar um moinho de água ainda a laborar. Nunca tínhamos
ido à Silveirinha, embora soubéssemos que ficava muito próximo.
Dirigimo-nos
para lá sem delongas, não fossemos chegar tarde demais e
encontrar as mós irremediavelmente quietas. Acolheu-nos com
visível alegria e muita afabilidade o Senhor Manuel Santiago,
que é nesta altura o único moleiro do nosso concelho a moer
para fora, no seu moinho de água. A azenha está instalada
num bucólico vale, perto de um casario velho, à beira de uma
vala por onde ainda corre água todo o ano, mas o Senhor
Santiago raramente consegue ter as duas mós a trabalhar ao
mesmo tempo, porque a agua tem escasseado e as valas não são
limpas com a frequência que seria desejada e necessária.
Disse-nos
sentir-se velho e cansado, pois que desde os oito anos se
dedica a este serviço e já conta uns bons janeiros.
Parece-lhe que não irá ter continuadores, dado que hoje
ninguém se quer dedicar a este trabalho.
O
Senhor Manuel Santiago disse-nos que eram preferidos os
moinhos eléctricos por serem mais rápidos e rentáveis.
Apresentamos abaixo o senhor Manuel Santiago junto do seu
moinho.
Fez
questão de frisar, no entanto, que a farinha moída pelo
processo antigo mantém todas as suas qualidades; -«sai
sempre fria, ao contrário do que acontece nas outras formas
de moagem».
Contou-nos
que foi ali criado e ali tem vivido toda a vida, embalado pelo
cantar do moinho, o chilrear dos pássaros e o coaxar das rãs,
na calma e pacatez daquele local que parece estar esquecido e
parado no tempo.
Falou-nos,
com saudade e os olhos marejados de lágrimas, da sua última
égua, à qual só lhe faltava falar, companheira dedicada de
tantos anos de trabalho árduo...
Contou-nos
como tinham sido os seus últimos momentos de vida, após
transpor o portão de casa, depois da sua última viagem...
Ao
vale da Silveirinha que nos encantou, fazemos votos para que não
seja absorvido pelo progresso mas sim aproveitado e
respeitado.
Ao
seu último moleiro e a todos os que conhecemos são dedicados
estes versas que, naquele encontro com a Natureza e a
simplicidade de viver duma vida pura e sã, ali mesmo
escrevemos.
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Mói
a mó deste moinho
Tão branquinha da farinha.
Passa a água de mansinho
Branca, pura, tão fresquinha!
E
à sombra do moinho
Polvilhado de farinha
Canta o melro no seu ninho
Nos vales da Silveirinha.
Cansado
e com tristeza
Se o moleiro esmorecer
Seu moinho, com certeza
Nunca mais volta a moer.
Está
o moleiro sozinho
Segue o voo da andorinha.
Preocupa-o o caminho
Da fonte da Silveirinha! |
Mas
deste vale a beleza
Co ‘a água sempre a correr
Quem gosta da Natureza
Nunca mais irá esquecer.
E
o moinho vai moendo
Grão a grão, o trigo loiro.
E o moleiro vai vivendo
Tem ali o seu tesoiro!
Não
te entristeças moleiro
Esta vida é mesmo assim
Há uns que passam primeiro
Outros passam mais p'ró fim.
Não
tenhas pena, moleiro
Não te doa a solidão
Que o nosso bem verdadeiro
E cumprir nossa missão. |
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