Muito animado e
divertido era o Entrudo, nesse período as pessoas
entusiasmadas brincavam com alegria e despreocupação!
No Domingo Magro começava
a paródia. As crianças eram as primeiras a dar início aos
festejos; nas escolas, viviam a festa do galo com aquela
alegria e entrega de que só elas são capazes, começavam
pela manhã, só terminando à tardinha.
Nos três dias de
Entrudo, após a refeição do meio dia, as pessoas
juntavam-se nos largos para aí aguardarem a chegada das
contradanças e cegadas e a passagem dos entrudos.
Quando algum rancho
se fazia anunciar pela respectiva bandeira trazida, na frente,
por um rapaz de bicicleta, as pessoas formavam uma roda
demarcando assim o espaço onde o grupo iria actuar.
Por vezes os
componentes das contradanças, vendo o povo reunido num local,
dirigiam-se para outro propositadamente. Havia fortes
despiques entre grupos de terras vizinhas ou até da mesma
terra; nestes casos perseguiam-se uns aos outros chegando a
exibir-se ao mesmo tempo no mesmo arraial o que punha o povo
em polvorosa, já que querendo ver os dois, não sabiam para
qual deles se deviam voltar.
Chegaram a formar-se,
aqui à volta, em alguns anos, nove ou dez contradanças e
duas ou três cegadas.
Quase todas as povoações
tiveram as suas contradanças; as de Oiã, Troviscal,
Mamarrosa e Águas Boas eram sempre das melhores. Malhapão e
Bustos, por exemplo, eram peritos em cegadas.
A exibição que começava
no Domingo Magro, prosseguia no Domingo Gordo e só
terminava na terça feira de Carnaval.
Durante toda a tarde
passavam os entrudos, mascarados das formas mais diversas.
As mimosas, popularmente
chamadas bichaneiras, com a sua cor amarelo forte, pelo
Carnaval, enfeitavam tudo e todos: bicicletas, burros,
carneiros e cães, vinha tudo para a rua jogar o Entrudo.
O que mais encantava
rapazes e garotos era empoeirar a cabeça das miúdas com pó
de arroz o qual se vendia em caixinhas e quando faltava era
substituído por farinha.
Rapariga que chegasse
ao fim de um dia de Entrudo sem parecer uma moleira, poderia
considerar-se uma heroína, pois as lutas travadas entre moços
e moças eram deveras renhidas. Eles tentavam destapar-lhes a
cabeça e pôr-lhe o pó de arroz; elas tentavam fugir
amarrando fortemente o lenço que então usavam e escaparem às
investidas masculinas. Com frequência, os olhos eram
atingidos nestas demandas facto que era muito incómodo e
desagradável.
Tudo servia para se
disfarçarem, se enfeitarem, se divertirem: a cara pintada com
um tição, uma máscara improvisada, roupas velhas ou
trocadas entre homens e mulheres.
Bastava um simples
lenço, chinês ou minhoto, ao pescoço para dar à pessoa um
ar de Carnaval, de brincadeira. A alegria era constante e a
imaginação prodigiosa; deitavam mão de tudo para fazer um
coche puxado por carneiros, um automóvel armado em papel e
movido por duas bicicletas, enfim um sem número de coisas
curiosas e deveras interessantes.
À noite
realizavam-se bailes nos salões, continuando aí a exibição
das contradanças e dos entrudos.
As partidas de
Carnaval eram também um modo de diversão muito frequente e
ninguém se agastava ao ser enganado ou assustado por um
entrudo, pois “no carnaval ninguém levava a mal”.
FESTA
DO GALO
A festa do galo começou
no concelho de Oliveira do Bairro e alargou-se a algumas povoações
vizinhas de outros concelhos.
Não se sabe bem em
que terra terá sido feita pela primeira vez, porém, é voz
corrente que a ideia que presidiu a esta festa foi mostrar ao
professor o apreço e reconhecimento que o povo tinha pelo seu
trabalho.
O galo, o rei da
festa, comprado inicialmente com a participação de todos,
era levado num carroço enfeitado de bichaneiras, por um grupo
dos alunos mais velhos, à casa do professor no meio de grande
farra. Ao galo foram-se juntando outras aves de capoeira.
A festa realizava-se
no Domingo Gordo e variava de terra para terra. De início, os
alunos colectavam-se para comprar o galo. Depois, os galos
começaram a ser oferecidos pelos pais e o dinheiro passou a
custear outras despesas, tais como: foguetes, serpentinas e
papel de seda para enfeites, estes além das mimosas, eram
feitos com serpentinas, canas da índia e bandeirinhas de
papel. Era hábito o professor presentear as crianças com
gulodices.
Festa do Galo em Malhapão.
Em Malhapão começou
a fazer parte da festa uma brincadeira muito interessante - o
partir da cântara, antecipado da leitura do testamento do
galo. Esta leitura, feita por um aluno com boa entoação e
voz forte, era muito apreciada, toda a gente gostava de
assistir juntando-se no arraial. Malhapão inteiro vinha, não
só ver mas participar.
Numa cântara era
metido o maior galo do carroço. Pela asa da cântara
passava-se um adival. Uma das pontas deste amarrava-se no
velho sobreiro, a outra passava por cima de um ramo de outra
árvore, ficando solta até ao chão. Esta ponta da corda,
comandada por dois homens iria fazer subir ou descer a cântara.
Os alunos da quarta
classe eram os candidatos a parti-la. Um de cada vez, de olhos
vendados com um pano, depois de volteado para se desorientar,
começava às pauladas no ar tentando acertar na cântara.
O miúdo depois de três
tentativas dava o lugar a outro. Começava-se a brincadeira
pelos mais novos e pequenotes para a festa durar mais tempo.
O galo estrebuchando
fazia balançar a cântara que, por sua vez, subia e descia
segundo a vontade dos homens que comandavam a corda. O público,
entusiasmadíssimo, gritava ordens controversas.
- Para a direita! - diziam
uns. Para a esquerda! - gritavam os do outro lado. - Mais para
cima!... Dá-lhe agora. O rapazito baralhava-se de tal modo
que, por vezes, vinha sobre a assistência de pau em riste.
Era ver quem mais corria, e a risota era geral.
A certa altura um
mais espertalhote mexia o lenço de forma a ficar a ver e a cântara
despedaçava-se ante os aplausos da assistência, saltando
cacos por todo o lado.
O galo ao ver-se em
liberdade e meio aturdido pela pancada fugia. Logo era
perseguido e apanhado por um aluno que receberia como prémio
uma quantia igual àquele que partisse a cântara: uma moeda
oferecida pelo professor.
Com o correr dos anos
a festa passou a integrar-se nas actividades escolares.
A partir daí, a sala
de aula começou a ser enfeitada pelos alunos da quarta
classe, que eram os organizadores e responsáveis por tudo. As
bichaneiras, as camélias, as canas da índia nunca deixaram
de estar presentes na ornamentação que foi sendo enriquecida
progressivamente com serpentinas, flores, tiras e balões em
papel colorido.
A arte da decoração
sempre aperfeiçoada era transmitida pelos mais velhos aos
mais novos.
Tornou-se habitual no
final da festa o professor oferecer um lanche aos alunos o
qual começou por ser pão, tremoços e figos secos e mais
tarde foi sendo alterado.
TESTAMENTO DO
GALO
Quadras recreadas com
base em relatos orais.
|
Aos meninos e
meninas,
E aos Senhores Professores
Nesta tão linda festinha
Eu quero cantar Louvores.
Daqui de dentro
da cântara
Agora não canto, eu falo:
- Foi para mim uma honra
Ter vindo à festa do galo.
Mas como o
tacho ou caçoila
Não me sai do pensamento;
Antes que se faça tarde,
Vou ler o meu testamento.
À rapaziada
nova
Com bigode a despontar
Deixo a crista vermelha;
Eles gostam de a levantar.
Gostam de
levantar a crista.
Mas tem que ter juízo.
Ficam também c ‘os miolos
P ‘ra terem tudo o preciso.
As minhas penas
mais lindas
São para as moças solteiras,
P’ra elas se enfeitarem,
E as porem nas cabeleiras.
O meu pescoço
altivo,
A que chamam as goelas
Deixo-o para um bom petisco,
Juntamente c'o as moelas.
Para os velhos
vão as coxas.
Cuidado!... Comam com jeito
E para as mães de família
Deixo as penas do peito. |
Deixo pr’às
mulheres viúvas
As minhas esgravatadeiras,
Para esfregarem as costas,
Quando tiverem coceiras.
Deixo os
fígados ruins
Aos maridos rabugentos,
Para untarem a barriga,
E fazerem unguentos.
Por mal que vos
pareça
Esta minha doação,
É a uma franguita nova
Que deixo o meu coração.
Dizem que
antigamente,
No tempo das avozinhas
Lugar onde havia galo,
Não cantavam as galinhas
Agora, diz a
galinha:
- Eu calada é que não fico!
E, há p’raí muito galucho,
Que nunca há-de abrir o bico
Por isto deixo
aos homens,
Aqui no meu testamento,
(Se quiserem ser felizes!...)
Um moderno pensamento.
Cantem à vez,
lá em casa.
Façam da vida um namoro
Ou cantem ao desafio,
Ou cantem os dois em coro.
Distribuam as
tarefas
Com amor e alegria
Os filhos crescem melhor,
Onde reina a alegria. |
Quem recriou estas quadras foi a própria autora deste livro,
em 1987, época em que era professora em Malhapão. Ouviu os
primitivos versos da boca de seu Pai José Caetano de
Oliveira.
AS CONTRADANÇAS
As contradanças que
se viam nos nossos entrudos não se assemelhariam muito às clássicas
danças de salão: mas tinham nelas as suas raízes, embora
fossem de sabor bem mais popular
Não é muito
conhecida a data em que elas terão começado a alegrar os
carnavais das nossas terras. Sabemos porém que um rico e
abastado lavrador(*),
nascido e criado no lugar da Silveira, mandou construir no século
passado, uma casa, ainda existente, que já tinha uma sala própria
para estes grupos se exibirem para a sua família e criados.
Sabemos que a última
contradança a formar-se no nosso concelho foi a que se
organizou em Malhapão e que saiu para a rua durante anos.
Pode dizer-se que,
nas décadas de 40 e 50, as contradanças tiveram o seu auge,
quer em número, quer em diversidade de trajos e cantares.
Chegavam a formar-se
e a apresentar-se cerca de uma dezena em cada Carnaval.
Era muito discutível
afirmar quais seriam as melhores pois havia grande despique
entre elas.
Todas as terras
queriam que o seu grupo sobressaísse e fosse o mais
aplaudido, não poupando esforços para que isso sucedesse.
Tinham fama as contradanças de Oiã, da Mamarrosa, do
Troviscal e de Águas Boas.
Por vezes chegavam até
nós, grupos de fora do concelho, nomeadamente de
Fermentelos e de outras terras vizinhas.
As contradanças eram
formadas por mais ou menos pares conforme o maior ou menor número
de raparigas e rapazes solteiros, e só na falta destes se
recorria aos casados. Os menos jovens, no geral eram
tocadores e cantadores ou então acompanhantes a servir de
claque. No grupo dos tocadores, composto de vários
instrumentistas, nunca faltava o acordeão. Todos os ranchos
tinham uma bandeira de seda bordada, enfeitada com muitas
fitas, também de seda, de diversas e garridas cores.
O par que
transportava a bandeira abria o desfile, a que se se guiam
todos os outros, indo atrás os cantores e os músicos a
fechar o cortejo.
Os trajes variavam de
ano para ano e de terra para terra, mas eram sempre, bem ao
jeito das nossas gentes e tradições, alegres e coloridos.
As raparigas traziam
na mão uma pandeireta ornada de fitas, que muito enriqueciam
as danças com o seu colorido.
Por sua vez os
rapazes traziam, preso ao punho por uma fita, um pau curto e
torneado e que tinha na ponta uma maçaneta de tiras de
serpentina.
Também estes, tal
como as pandeiretas, entravam nas danças, servindo
especialmente para acenar à multidão na marcha final. Os
passos de dança eram mais ou menos variados, conforme os
ensaiadores e a arte dos intervenientes, porém todos os
grupos, apresentavam obrigatoriamente a marcha de entrada, um
ou dois viras e a marcha de despedida. Nos intervalos das
modas, para que os dançarinos pudessem descansar, alguns
pares destacavam-se do grupo cantando ao desafio ou recitando
versos alusivos às suas terras e gentes.
Aqui deixamos algumas
quadras cantadas na contradança de Oiã no ano de 1948, ano
em que foi inaugurada a rede eléctrica de Malhapão.
Cada um dos lugares
da freguesia tinha a sua quadra. Das originais, porém, só
conseguimos recolher as que se seguem.
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OlÁ
Oiã nasceu ao
luar.
Com suas belas tradições
E um berço de embalar
Que anima os corações.
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SILVEIRO
Junto ao rio
Levira
Com seus belos arrozais
Sempre bonito o Silveiro
E seus belos pinheirais.
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MALHAPÃO
Malhapão está
contente.
Já tem luz e energia.
Com a sua boa gente
Engrandece a freguesia.
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CARRIS
Carris embora
pequeno
Também é nosso vizinho.
Tem raparigas bonitas
Que são mesmo um amorzinho.
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ÁGUAS BOAS
Águas Boas tão
perfeita,
Com vinhedos e choupais,
Com muitas casinhas brancas,
Verdejantes milheirais. |
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CEGADAS
Das várias
actividades que se desenrolavam pelo Carnaval, as Cegadas eram
das mais apreciadas quer pela música, quer pela crítica
mordaz que caracterizava os seus ditos e versos, brejeiros e
jocosos.
Formavam-se grupos de
doze a quinze elementos, todos do sexo masculino. Vestiam
camisa branca e calças pretas, usando ao pescoço um lenço
vermelho, tabaqueiro, com as pontas enfiadas por dentro da
parte exterior de uma caixa de fósforos.
Havia sempre um dos
elementos disfarçado de militar ou polícia que tentava em vão
impor a ordem.
Todos, excepto o
militranga e o porta bandeira, vinham munidos de cajados com
os quais marcavam o compasso e batiam fortemente no chão em
sinal de assentimento ou chamada de atenção ao público,
quando este prolongava demasiado as risadas ou os comentários,
impedindo ou perturbando desta forma o prosseguimento da actuação.
É que a assistência
não regateava aplausos se as piadas eram directas e
apimentadas, e mais ainda se deixavam facilmente descobrir os
visados sendo esses conhecidos da maioria dos presentes.
A bandeirola tinha
pintados o nome e o distintivo do grupo. A sua actuação
desenrolava-se da seguinte forma:
entravam a marchar
cantando, seguia-se uma pausa durante a qual os componentes
formavam uma roda, deslocando-se dois a dois ao centro, onde
travavam um diálogo em rima. De vez em quando entrava em cena
o magala tentando manter a ordem, pois os que dialogavam,
simulavam por vezes grandes discussões.
Nestes despiques é
que vinham à baila todos os acontecimentos do ano. Era “o
cabo dos trabalhos”!...
Em seguida dançavam
um vira. Repetiam a pausa com os diálogos e terminavam com a
marcha de despedida.
Os versos das
cantigas entoadas, escritos propositadamente para o efeito
em cada terra por alguém mais inspirado ou erudito, deviam
apresentar de um modo crítico e divertido os factos mais
relevantes ocorridos nesse ano. Rapazes solteiros ou homens
casados eram aceites indiscriminadamente nos grupos desde que
tivessem sido convidados e entregassem ao caixa, como depósito
de garantia para as despesas, uma determinada quantia
previamente estipulada. Há vinte anos, quando se realizou em
Malhapão a última cegada, a importância depositada foi de
quatrocentos escudos por pessoa. Se cumprissem a missão a que
se propunham até ao fim, receberiam não só o que haviam
depositado mas também a parte que lhes coubesse do dinheiro
angariado nas actuações, depois de deduzidas as despesas
feitas.
O banqueiro era
sorteado ou eleito pelos intervenientes. Se algum deles
desistisse antes do términos das cegadas o dinheiro que
tivesse depositado no início, revertia a favor dos restantes.
Os ensaios decorriam
geralmente à noite e começavam com um mês de antecedência.
Os componentes do
grupo deslocavam-se em bicicletas e deste modo percorriam toda
a região.
Entre as terras onde
tiveram mais implantação e foram mais famosas as cegadas,
conta-se Malhapão e Bustos. A última a sair no concelho em
1971 tinha o nome de “Os Parodiantes de Malhapão”.
Desta divertida paródia
aqui ficam alguns dos versos da autoria de António Fresco.
|
Fui ao Porto e
vim agora
De lá trouxe esta menina;
Ela é linda e jeitosa
O seu nome é Sarafina.
Fui ao Porto e
vim agora
Arranjei um amorzinho.
Estava-me a vir, a vir embora
E deixei-a no caminho |
Já não quero
ser do Porto
Nem no Porto ter alguém.
Já não quero a liberdade
Que as moças do Porto têm.
Esta não é a
Sarafina,
Sarafina já morreu.
Pois c'o maldito machado
Quis matar o vizinho seu. |
|
Estribilho
Eu venho do dar
e toma
Ora toma, ora toma.
Eu venho do toma lá
Eu nunca vi dar sem toma
Ora toma, ora toma;
Nem o toma sem dá cá. |
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O Porto a que se
referiam era o Porto das Cales em Malhapão.
NOTAS:
(**)
- Manuel Bártolo. bisavô da autora.
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