LEMBRANDO ZÉ AUGUSTO… O ARTISTA QUE DAVA VIDA AO
BARRO
Tratava-se de pública sessão de póstuma homenagem a D. João
Evangelista de Lima Vidal, falecido havia pouco tempo e, se bem
me lembro, o padre Manuel Caetano Fidalgo, então director do
semanário Correio do Vouga, abeirou-se de mim pedindo que
fizesse um retrato do arcebispo, de grandes dimensões, para pano
de fundo do palco do Teatro Aveirense.
Respondi que o desenharia mas que, para o pintar, teria de
recorrer a alguém que me desse uma mão.
Bati à porta do Zé Augusto. A resposta foi sim. E em poucas
horas, tal o curto tempo de que se dispunha, saiu em fundo de
verde musgo sobre papel de cenário posto no chão da sala do
Senhor de uma pequena casa térrea da rua do Norte ou do Vento, o
recorte branco, esgalhado à brocha, da face sorridente,
bondosamente sorridente, do nosso Arcebispo.
Assinámos os dois, pois se tratava de trabalho de parceria.
Depois das luzes da ribalta onde se desenrolou a sessão solene,
dei que o esquiço de retrato não fora destruído. Passeou pelo
edifício do Correio do Vouga, pelo Seminário Diocesano,
quedou-se no gabinete de Monsenhor João Gaspar, no Paço
Episcopal. Hoje, parece que voltou para o Seminário.
Se falo deste episódio, tal resulta da leitura que fiz duma
entrevista dada, em tempos, pelo artista Zé Augusto ao Dr. Amaro
Neves e dada à estampa nas páginas dum Boletim da Associação de
Defesa do Património Natural e Cultural da Região de Aveiro,
repositório de dados historicamente relevantes para a abordagem
da vida do grande barrista aveirense.
A certa altura diz-se que o artista preferia trabalhar sozinho,
isolado.
Eu não diria isso dele. O que se passava é que a sua timidez
sempre o levava a um resguardo grande que se quebrava só quando
ele sentia que estava com alguém que conhecesse bem.
Prova disso mesmo são os muitos trabalhos em que ele foi dando
as mãos a Jeremias Bandarra na consubstanciação de painéis
policromos que foram surgindo em feliz parceria e que ficaram
para nosso usufruto, enriquecendo o nosso património público
Zé Augusto sempre se reclamou de pessoa pouco dada à abordagem
das disciplinas teóricas que integravam o seu curso de pintura
cerâmica, quer nos tempos da Escola Técnica de Fernando
Caldeira, quer, depois, na Escola Industrial e Comercial de
Aveiro.
Quem o conheceu, como eu, desses tempos, sabe qual era a sua
postura face ao curso de que colheu só o que quis: o traquejo do
desenho pelas mãos dos professores Porfírio de Abreu, Júlio
Sobreiro e Ferreira Alves; a descoberta do mistério das tintas
cerâmicas, através dos professores Gervásio Aleluia e Hernâni
Moreira da Silva; a abordagem dos volumes, trabalhando o barro,
sob o seguro e competente conselho do mestre escultor Mário
Truta que tantos de nós marcou na sua passagem por Aveiro.
Ele, Zé Augusto, sempre disse que pensava pelos seus olhos e
falava melhor com as suas mãos.
Contudo, quem frequentou a sua oficina, a caminho de São
Bernardo, sabia da alegria que lhe vinha ao de cima quando tinha
amigos à sua volta, sempre pedindo opiniões, críticas,
sugestões, estabelecendo o diálogo que ele tanto sentia
necessário e útil para abrir as portas à sua criação artística.
Apesar de avesso a teorias, os livros de técnica e de história
de Arte misturavam-se em abundância com as formas de gesso que
por toda a parte se espalhavam.
Tímido? Sim. Sozinho, isolado, nunca!
Na nossa juventude, nesses anos de cinquenta, as dificuldades
materiais de todos nós, os alunos do ensino técnico, eram
grandes.
Muitos misturavam os estudos, de dia ou de noite, com o
trabalho, para subsistir.
A simbiose trabalho/escola técnica era enorme: os cursos
frequentados eram o prolongamento das tarefas laborais; estas
apeteciam e empurravam-nos para a frequência dos cursos
técnicos.
Os dirigentes de fábricas, muitas vezes, eram professores; os
seus alunos, muitas vezes também, viriam a converter-se em
empresários.
O Zé Augusto que todos nós nos habituámos a admirar é mesmo o
fruto deste difícil, porque doloroso, fundo de vida.
O que caracteriza verdadeiramente a obra de Zé Augusto é a
profunda coerência que sempre se verificou entre a sua maneira
de estar na vida e aquilo que ele foi produzindo em termos de
expressão artística.
Expressão essa que, quer nas suas estatuetas de barro ou grés, a
que ele gostava de chamar "bonecos", quer nos seus painéis e
palanganas (pratos cerâmicos), se traduz naquilo a que alguns
artistas de formação curricular vazada nas escolas se arrogam de
realismo expressionista.
Só que em Zé Augusto tal força de expressão resultou, sempre e
indubitavelmente, duma vida sentida e sofrida que se plasmou na
forma do barro ou na cor do painel, garantindo nelas essa mesma
vida...
Não de uma teoria que se absorve e que através de compromisso
ideológico força a que se traduza plasticamente uma leitura
crítica da sociedade.
A força imanente é mesmo a força emanente na obra de Zé Augusto.
E daí a espontaneidade e a linearidade que se percebem existir
em todas as obras de Zé Augusto, desde o momento da concepção
até ao surgir do trabalho acabado, sem contudo tal se poder
confundir com simplismo.
De todo em todo, não.
O que há é a honestidade que brotava de alguém que, sendo e
vivendo a sua circunstância, se assumiu como ele próprio, sem
rodeios, mostrando-se ele mesmo, sem compromissos, no excelente
manuseio dos instrumentos plásticos que tão bem soube dominar.
A importância da sua obra força, a que, desde já, se comece a
fazer um exaustivo inventário dos trabalhos deste grande artista
aveirense, coisa imprescindível, acima de tudo, para a história
da barrística e da pintura cerâmica em Aveiro. Apetece-nos
sugerir que seja o MUSEU DE AVEIRO a organizar uma exposição
antológica da obra de Zé Augusto e a coordenar o necessário
catálogo com depoimentos de quem acompanhou o artista no seu
devir criativo.
Certo dia, visitando uma galeria de arte em Espanha, fui
perguntado de que terra eu era. Disse que era de Aveiro.
– Ah! de Aveiro? Da terra do Zé Augusto?
Doutra feita, em Macau, dei comigo extasiado ao ver que na
montra dos Serviços de Turismo da então ainda colónia
portuguesa, o que representava o nosso País era, nem mais nem
menos, um conjunto de estatuetas polícromas das figuras típicas
de Aveiro, da lavra do nosso saudoso Zé Augusto.
Na última reunião da Comissão Municipal de Toponímia, tive a
honra de ver aprovada por unanimidade a proposta que apresentei
para que fosse dado o nome de Zé Augusto a uma artéria ou praça
da nossa terra.
A sua obra está espalhada por todo o mundo. Saibamos dignificar
quem, com enorme humildade mas com imenso talento, tanto soube,
ele sim, dignificar a nossa terra.
É que Zé Augusto foi capaz de dar vida às suas peças geradas no
barro de tão longas e ricas tradições na nossa região; no barro
que ele tão bem soube manusear e que fez dele um dos maiores
barristas de toda a história da nossa Aveiro.
GASPAR ALBINO – 13/Outubro/2012 |